Opinião

Compliance, cadeias de fornecimento e violações de direitos humanos

Autores

  • Vinícius Adami Casal

    é advogado graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com a distinção da Láurea Acadêmica mestre em Direito Econômico pela UFRGS e autor do livro A Lei da Liberdade Econômica à Luz do Direito Econômico: Análise da Lei 13.874/2019 (Lumen Juris 2023).

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  • Juliano Pozatti Moure

    é advogado graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) certificado pela Certified Information Privacy Manager (CIPM) e pela International Association of Privacy Professionals (Iapp).

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6 de março de 2023, 20h37

O Brasil entrou em choque com a recente notícia do resgate de 207 pessoas que viviam em condições análogas à escravidão, em Bento Gonçalves, no interior do Rio Grande do Sul. Além da crueldade em si, o fato causa ainda maior perturbação em razão de esses trabalhadores prestarem serviços a empresas que fazem parte da cadeia produtiva de vinícolas brasileiras com grande reputação nacional e internacional [1]. O caso é inadmissível e merece resposta das autoridades, seja na esfera penal, vide artigo 149 do Código Penal [2], quanto a eventuais indenizações cíveis e trabalhistas.

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Todavia, para além das referidas instâncias (posteriores à ocorrência do fato, e as quais estão sendo deveras abordadas após o episódio [3]), fundamental sublinhar o dever de cuidado e responsabilização de empresas em momentos anteriores à celebração de contratos com terceiros e durante o seu cumprimento. Na prática, estamos a tratar da necessidade de aplicação de mecanismos de análise e mitigação de riscos efetivos em seus processos internos, inclusive, relacionados à rede de terceirização de seus produtos e serviços, permitida praticamente de modo irrestrito a partir da decisão do STF no Tema 725 [4].

Muito se tem falado, é verdade, a respeito da necessidade de adoção de práticas de ESG (Environmental, Social and Governance [5]) como valor de negócio. Todavia, pouco se vê sobre uma efetiva aplicação dos valores insertos na "sigla", especialmente em processos de compliance frente à contratação de terceiros, bem como de reconhecimento em eventual fato adverso à empresa. Ao contrário, comumente nota-se uma tentativa, a todo custo, da empresa tomadora de serviços "lavar as mãos" e "empurrar" a responsabilidade para a empresa efetivamente empregadora.

Não se ignora que a cada dia isso se torna ainda mais enfraquecido no âmbito da Justiça do Trabalho [6], mas casos como os relatados na mídia e narrados supra demonstram que isso não tem sido o suficiente para resguardar trabalhadores e a sociedade como um todo de situações não críveis e que remontam a tempos obscuros da história. Para tanto, talvez seja chegado o modo deste cenário efetivamente mudar e, para isso, o que pode ser feito pelo legislador brasileiro é buscar inspiração estrangeira.

Um bom ponto de partida para tal "inspiração" é a Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz (ou LkSG [7]), em tradução livre tida por Lei da Diligência em Cadeias de Fornecimento, legislação aprovada na Alemanha em 2021, e que entrou em vigor somente em 2023 [8]. Tal norma, inspirada nitidamente nas diretrizes da ONU intituladas "UN Guiding Principles on Business and Human Rights (UNGP)", visa a tornar as empresas responsáveis a garantir (com cariz fortemente presente no "G" da sigla ESG, ou seja, na ideia de "governança") que suas cadeias de suprimentos não envolvam danos ambientais ou violações a direitos humanos (o que abarca, a nosso ver, a terceirização no caso brasileiro).

Vejamos parte da introdução da redação desta norma internacional, da ONU [9], com destaque para a proteção "em cadeia":

"Os Princípios Orientadores esclarecem o que se espera das empresas em relação aos direitos humanos e descrevem o processo pelo qual as empresas podem identificar seus impactos negativos sobre os direitos humanos e demonstrar que suas políticas e procedimentos são adequados para abordá-los.
Os Princípios Orientadores afirmam que as empresas devem prevenir, mitigar e, quando apropriado, remediar os abusos de direitos humanos que causam ou para os quais contribuem. Os negócios devem buscar prevenir ou mitigar quaisquer impactos adversos relacionados às suas operações, produtos ou serviços, mesmo que esses impactos tenham sido executados por fornecedores ou parceiros de negócios." (Grifamos)

Desse modo, a norma busca uma postura ativa das empresas, as quais devem colocar seus processos e procedimentos internos em sintonia com a legislação relativa aos cuidados com a ocorrência, notadamente, de: 1. Trabalho infantil; 2. Trabalho forçado; 3. Escravidão e figuras análogas; 4. Desrespeito a normas de segurança; 5. Desrespeito à liberdade de associação; 6. Discriminação; 7. Abusos de direitos humanos no que tange a questões ambientais; 8. Política salarial indecente; 9. Violência por parte de agentes estatais (forças de segurança); e 10. Deslocamento ilegal de pessoas.

O caso ocorrido em solo gaúcho seria, notadamente, albergado pela norma, a qual, para buscar evitar a ocorrência das práticas supra, elenca algumas obrigações para as empresas, notadamente e de modo sintético – sendo feitos, por nós, comentários após cada uma das ‘obrigações’:

1. Criação de um sistema interno de gerenciamento de risco: política esta que vai muito na linha da governança, sendo que dentro deste sistema, a empresa resta obrigada, também consoante a norma, a elencar e determinar quem será a pessoa, dentro da organização, responsável pelo supervisionamento e funcionalidade desse "sistema";

2. Periodicamente realizar análises de risco: isso para mapear os processos e eventuais pontos que merecem maior atenção;

3. Criar uma normativa interna que verse sobre direitos humanos: prática deveras comum na lógica ESG, temos, aqui, um dever de governança alinhado aos direitos humanos, o que se demonstra inafastável para que empresas consigam, por intermédio de seus valores, somar à lógica de proteção das pessoas;

4. Criar mecanismos internos de processos, denúncias e procedimentos: atuar, resumidamente, como um "legislador interno", criando os mecanismos necessários a albergar os processos fiscalizatórios e as denúncias relativas aos descumprimentos das normas de direitos humanos;

5. Divulgação e accountability: mais do que implementar e fiscalizar, dar a devida divulgação dos processos internos é fundamental para que terceiros(as) possam observar se os procedimentos implementados seguem a lógica das normas relativas à proteção dos direitos humanos.

A realidade alemã, embasada na norma internacional da ONU, como se vê, é deveras avançada em face ao Brasil, que não tem, até o presente momento e ano (2023), normas parecidas com a citada disposição, o que caracteriza certo atraso do legislador brasileiro em face às normativas internacionais de proteção aos direitos humanos, principalmente se atentando para os cuidados na "cadeia produtiva".

As cautelas da norma alemã em face dos fornecedores da cadeia produtiva são deveras extensas, sendo de se destacar que existe, na norma, até mesmo a conceituação de fornecedores diretos e indiretos. Ou seja, evidentemente os "terceirizados" se enquadrariam em algum destes conceitos, sendo defendido, por nós, que se tratariam, inclusive, de fornecedores tidos por "diretos" na acepção da norma alienígena. Vejamos o que esta diz para fins de conhecimento:

"De acordo com o § 2 Abs. 5 da lei, cadeia de fornecimento refere-se a todos os produtos e serviços de uma empresa, incluindo todas as etapas no país e no exterior necessárias para fabricar produtos e fornecer serviços, desde a extração da matéria-prima, até a entrega ao cliente final. A cadeia de fornecimento cobre ainda as ações de uma empresa em seu próprio negócio (§ 2 Abs. 6 LDCF), as ações de fornecedores diretos (§ 2 Abs. 7 LDCF) e as ações de fornecedores indiretos (§2 Abs. 8 LDCF). O termo “próprio negócio” (§ 2 Abs. 6 LDCF), no sentido da lei, cobre todas as atividades da empresa para alcançar o objetivo da organização. Isto inclui toda atividade para a produção e uso de produtos e para a prestação de serviços, independentemente de ser realizada em um local no país ou no exterior. Em grupos empresariais, considera-se 'próprio negócio' as operações comerciais da matriz, sendo ela capaz de exercer uma influência determinante sobre as demais empresas pertencentes ao grupo. Para os fins do § 2 Abs. 7 LDCF, 'fornecedor direto' é parte de um contrato de fornecimento de bens ou prestação de serviços cujo fornecimento é necessário para a fabricação do produto da empresa ou para o fornecimento e utilização do serviço relevante. 'Fornecedor indireto', na acepção do § 2 Abs. 8 LDCF, é qualquer empresa que não seja um fornecedor direto e cujos fornecimentos sejam necessários para a fabricação do produto da empresa ou para o fornecimento e utilização do serviço em questão" [10].

Logo, para nós, se demonstra premente a trazida, para o cenário pátrio, desta lógica protetiva pela via da legislação. No entanto, não vemos motivos para que grandes empresas brasileiras não cumpram, diretamente, as normativas da ONU, dentre as quais, em específico, a UNGP supracitada (que serviu de base à norma alemã, como apontado), norma esta que somente tem a colaborar com o cenário internacional de desenvolvimento de melhores condições de trabalho e, mais do que isso, que pode significar uma adoção, ainda mais forte, do conceito de ESG e, principalmente, de governança aliada ao lado "social" da sigla!

Para tanto, a título de sugestão, propomos, de modo sintético, o seguinte:

1. Que grandes empresas brasileiras adotem práticas como as expostas supra, retiradas da legislação alemã, notadamente da LkSG, mas também de normativas da ONU, dentre outras a citada UNGP, o que é plenamente possível e que ressalta o dever de compliance destas empresas para com o mercado e a sociedade, atitude esta que estaria em consonância com o "princípio do compromisso voluntário corporativo", consoante destacado pela doutrina [11].

2. Que o legislador brasileiro consiga incorporar no cenário pátrio normas como a LkSG, sendo adotados todos os seus principais tópicos, ou seja, o que visaria a norma a abarcar (no que se refere a mecanismos e atitudes a serem evitados) e, também, políticas e deveres a serem criados para as empresas;

3. Que, todavia, isso seja alinhado à realidade nacional, tanto no que se refere às penalidades, mas também, ao seu âmbito de aplicação; no nosso caso, defendemos, pela realidade brasileira — que tem em sua grande maioria empresas de pequeno e médio porte como grandes empregadoras — que sejam "diminuídos" os requisitos para aplicação da eventual e futura norma (nem de perto legislando apenas para empresas com mais de mil ou três mil funcionários(as);

As normativas da ONU e a norma alemã são bons exemplos que devem ser seguidos, mas, como dito, a realidade brasileira nem de perto se assemelha à realidade europeia, devendo, pois, tanto as empresas, quanto o legislador, estarem atentos para as particularidades e peculiaridades de nossa realidade.

Por fim, que consigamos, com mais esta ferramenta, o compliance, este somado às leis penais, civis e trabalhistas a extirpar de nossa realidade social práticas como as observadas recentemente, que somente servem para envergonhar e fazer corar as faces dos brasileiros.

 


[1] Dentre muitas as notícias, destaquemos a trazida pelo UOL, a qual é rica em detalhes e traz o horror das práticas sofridas pelos(as) trabalhadores(as) resgatados(as): https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2023/02/25/escravizados-na-producao-de-vinho-no-rs-recebiam-choques-e-spray-de-pimenta.htm. Acesso em 26 de Fevereiro de 2023.

[2] Esta norma foi acrescentada ao Código Penal em 2003 pela Lei nº 10.803, tendo a seguinte redação: "Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência".

[4] É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.

[5] Ambiental, Social e Governança, em tradução livre.

[6] Vide, por exemplo, jurisprudência do TRT – 4, do Rio Grande do Sul, baseado em precedentes do TST: "RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. TOMADOR DE SERVIÇOS. Em caso de inadimplência do empregador (prestador de serviços), o tomador de serviços que não exerce seu dever de fiscalização relativamente ao cumprimento das obrigações trabalhistas pela empresa contratada para prestar serviços, possui responsabilidade subsidiária pelo adimplemento do crédito trabalhista. Adoção da Súmula 331, IV e VI, do TST. (TRT da 4ª Região, 1ª Turma, 0020414-10.2020.5.04.0122 ROT, em 01/12/2022, Juiz Convocado Edson Pecis Lerrer)".

[7] O que o legislador brasileiro pode tomar "emprestado" da Alemanha é muito mais do que a própria norma em si, mas o próprio processo legislativo, consoante se depreende abaixo de doutrina especializada: "A Alemanha elaborou um Plano de Ação em 2016, com o objetivo de transpor os Princípios da (ONU) sobre Empresas e Direitos Humanos no direito alemão. O Plano de Ação estabeleceu a expectativa do governo alemão de que até 2020 pelo menos 50% das empresas com mais de 500 funcionários estabeleceriam processos internos para garantir a devida diligência em matéria de direitos humanos de forma adequada ao seu tamanho, setor e posição na cadeia de fornecimento e valor". in SANTOS, Jorgete Vitorino Clarindo dos. A nova lei alemã de diligência em cadeias de fornecimento: novas tarefas para o departamento de compliance de empresas multinacionais. Revista Científica do CPJM, Rio de Janeiro, Vol.1, N.03, 2022, p. 482.. Ademais, como se verá abaixo, talvez um "plano de ação" nestes moldes, incentivasse o próprio compliance das empresas , as quais, consoante se defenderá, principalmente em relação às de grande porte, deveriam/poderiam desde já adotarem práticas similares às aqui tratadas, por mais que, conforme se observará mais adiante do texto, esse 'compromisso empresarial' tenha sido infrutífero na Alemanha.

[8] De modo apenas parcial, isso em razão de somente vir a obrigar empresas com mais de 1.000 (mil) funcionários(as) a partir do ano que vem (2024), hoje somente tornando imperativos seus mandamentos para empresas com mais de 3.000 (três mil) funcionários(as).

[9] O inteiro teor da normativa pode ser acessado no seguinte link: https://www.ohchr.org/sites/default/files/documents/publications/guidingprinciplesbusinesshr_en.pdf. Acesso em 26 de Fevereiro de 2023. Já a introdução, de onde foi retirado o excerto supracitado, pode ser acessado em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/Documents/Issues/Business/Intro_Guiding_PrinciplesBusinessHR.pdf. Acesso em 26 de Fevereiro de 2023.

[10] SANTOS, Jorgete Vitorino Clarindo dos. A nova lei alemã de diligência em cadeias de fornecimento: novas tarefas para o departamento de compliance de empresas multinacionais. Revista Científica do CPJM, Rio de Janeiro, Vol.1, N.03, 2022, p. 484..

[11] Na Alemanha, isso, infelizmente, não teve sucesso, exsurgindo, daí, mais um motivo para a existência de legislação própria. Vejamos a partir da doutrina da já citada, SANTOS: "Tomando como base o princípio do compromisso voluntário corporativo, o governo alemão se comprometeu em 2018 a introduzir por lei a obrigação de due diligence corporativa para as cadeias de fornecimento, caso as suas expectativas resultantes do compromisso voluntário não fossem atendidas.5De acordo com Dohrmann, até a metade do ano 2020, a implementação das metas do Plano de Ação foi revista como parte do processo de monitoramento planejado de dois anos, liderado pelo Ministério das Relações Exteriores Federal. O resultado do monitoramento demonstrou que apenas 13 a 17% das empresas entrevistadas cumpriram com o disposto no Plano de Ação e que 83 a 87% das empresas alemães indagadas não o fizeram, ou seja, a auto-regulamentação corporativa fracassou. Dessa forma, o governo alemão considerou necessária a elaboração de uma norma de diligência legalmente vinculativa e compatível internacionalmente, resultando na Lei Alemã de Diligência em Cadeias de Fornecimento (LDCF)." in SANTOS, Jorgete Vitorino Clarindo dos. A nova lei alemã de diligência em cadeias de fornecimento: novas tarefas para o departamento de compliance de empresas multinacionais. Revista Científica do CPJM, Rio de Janeiro, Vol.1, N.03, 2022, pp. ,482- 483.

Autores

  • é advogado, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com a distinção da Láurea Acadêmica, mestre em Direito Econômico pela UFRGS e autor do livro A Lei da Liberdade Econômica à Luz do Direito Econômico: Análise da Lei 13.874/2019 (Lumen Juris, 2023).

  • é advogado, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), certificado pela Certified Information Privacy Manager (CIPM) e pela International Association of Privacy Professionals (Iapp), associação da qual faz parte.

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