Opinião

Regulamentação das mídias é defensável juridicamente e reclame de nosso tempo

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5 de março de 2023, 9h22

Dizer o que é verdade ou o que é mentira não é o papel do Estado, mas da mídia responsável. Quando a Lei de Imprensa foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, se firmou entendimento de que o controle da imprensa só pode ocorrer a posteriori.

A mídia tem um poder incrível. Ela mostra todo seu vigor quando as instituições estabelecidas falham. Recentemente, numa casa noturna em Belo Horizonte, foi por força da imprensa que um caso de importunação sexual foi levado à apuração, não pela força normativa dos textos legais, mas sob manchetes chocantes de que policiais teriam desencorajado a vítima de fazer um registro de ocorrência porque "não vai dar em nada" [1].

Mas deu. E só por causa da imprensa livre e responsável.

O STF, ao firmar o entendimento, fez muitas referências ao passado, quando a censura cerceava a liberdade de imprensa, artísticas e até mesmo de agentes públicos. Em 1974, quando o Brasil vivia uma epidemia de meningite, o ministro da Saúde deu entrevista que foi censurada sobre a doença que assolava o país [2]. Não foram poucas as referências à Lei de Imprensa como "entulho autoritário" na ADPF nº 130.  Houve uma fixação a priori dos limites do direito. "Quando se tem um conflito possível entre a liberdade e sua restrição deve-se defender a liberdade", decidiu o ministro Menezes Direito. De qualquer sorte, inegavelmente se tratou de uma decisão histórica.

Mas a liberdade também pode ser exercida com abuso e se voltar contra a mídia responsável até mesmo para descredibilizá-la. Fake news, haters, robôs atuando de forma coordenada ou até mesmo erros jornalísticos grosseiros agora despertam preocupação de regulamentar as mídias sociais. A Unesco, órgão das Nações Unidas, fez em Paris fórum sobre o assunto, entre os dias 21 e 23 de fevereiro deste ano.

A liberdade, um dos direitos mais sagrados, é sujeita a limites. Até a liberdade ambulatorial pode ser previamente monitorada pela segurança pública ostensiva (regulamentação) ou ser até completamente aniquilada, numa sentença condenatória transitada em julgado, sob o devido processo legal. Por que não se pode regulamentar a liberdade nas mídias sociais?

Para mim, o problema é o como fazê-lo. O Marco Civil da Internet, a Lei 12.965/2014, confere primazia à decisão judicial em algumas questões-chave objeto de comunicação digital, como o acesso ao "conteúdo de comunicações privadas" (artigo 10, §2º), e a prévia decisão judicial de remoção de conteúdo gerado por terceiros como precondição para a responsabilização das plataformas digitais (artigo 19, caput). Alguma regulamentação já existe, mas não especificamente sobre os problemas que despertam a atenção mundial.

Regulamentar pode passar a impressão de que se está restringindo direitos, mas é justamente o contrário do que ocorre. Se não é possível identificar limites imanentes aos direitos, dizer que direito está protegido ou pode ser exercido, pois os direitos devem proteger o máximo de situações possíveis.

Segundo Virgílo Afonso da Silva [3], "não se deve excluir de antemão, da proteção dos direitos fundamentais, condutas, estados e posições jurídicas que possuam algum elemento, por mais ínfimo que seja, que justificaria tal proteção". Não se pode, assim, deixar de distinguir o direito de sua restrição e trazer o ônus argumentativo constitucional ao administrador, legislador e julgador de externar os fundamentos pelos quais se deu primazia a essa ou aquela posição. É por aí que vem o controle democrático da regulamentação, afastada qualquer censura ou mesmo controles disfarçados que são defendidos com argumentações a priori.

A liberdade nas mídias sociais é passível de regulamentação como qualquer direito e regulamentar pode funcionar, não apenas para restringir, mas até mesmo para expandir a eficácia do direito. A regulamentação das mídias sociais, que terá na Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia da Advocacia-Geral da União um dos seus agentes provocadores, sob escrutínio público e democrático, é juridicamente defensável, possível e desejável. É um reclame de nosso tempo.


[3] SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado 4. 2006, p. 49

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