Público & Pragmático

A composição de um ecossistema regulatório para ecossistemas digitais

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5 de março de 2023, 8h00

A vida em sociedade e suas atividades econômicas acontecem predominantemente, hoje, por meio de plataformas digitais. O convívio e a comunicação acontecem por diversas redes sociais e aplicativos de mensagens, a venda e o consumo acontecem em comércios eletrônicos e marketplaces, operações financeiras, consultas médicas, atividades acadêmicas, pedidos de comida ou de transporte, entretenimento e atividades físicas. Praticamente tudo que um ser humano faz hoje está ou pode estar integrado a alguma plataforma digital, e é necessário compreender esta versatilidade de relações e dinâmicas para se vislumbrar o tamanho do desafio de sua regulação.

Lidar com a transformação tecnológica ocasionada por plataformas digitais exige muito mais que se reconhecer a destruição criativa (SCHUMPETER, 1950) dos ciclos de inovação, bem como a disrupção (CHRISTENSEN, 2016) e ruptura com práticas econômicas e regulatórias preexistentes, porque já não basta a mera revisão e atualização de premissas, mas se exige a atenção e o reconhecimento de que no ambiente digital, e em uma economia baseada no uso de dados, coexistem diversas relações e as consequências tendem a ser exponenciais.

Plataformas digitais são a base das relações desenvolvidas na internet, normalmente definidas como um modelo de negócio inovador, uma nova tecnologia social, uma nova infraestrutura computacional ou a combinação destas três características (JACOBIDES e LIANOS, 2021, p.1201). O crescimento e a interação de plataformas acaba por evoluir ao que passou-se a chamar de ecossistemas digitais, um ambiente em que atuam múltiplos atores, se desenvolvem diversos tipos de relação, em uma estrutura que é referida como multilateral.

Assim, dentro de um mesmo ecossistema digital, é possível desempenhar distintas posições, simultaneamente. O mesmo usuário "comum" pode comprar, vender, comunicar-se ativa ou passivamente, ou simplesmente navegar em um ambiente em que seus dados são observados e coletados para operações de tratamento. Usuários em posições mais engajadas podem usar dessas bases de dados para otimizar anúncios, direcionamentos de campanhas, integração com outras bases para ofertas de produtos. A multilateralidade de um ecossistema digital se destaca pelo fato de que a partir de um usuário e de seus dados é possível desenvolver diversas outras relações e produtos ou serviços.

Neste sentido, sob qual ótica jurídica se deve regular um ecossistema digital que pode envolver, ao mesmo tempo, um fabricante de celular, um provedor de internet, uma rede social, um gestor de anúncios, um marketplace? Qual o nível de responsabilidade de cada ator em um emaranhado de dados e algoritmos sobrepostos que se complementam no que se conhece por big data, a partir da reunião exponencial de dados e informações?

Três microssistemas jurídicos se destacam quando o assunto são os ecossistemas digitais, tutelando diferentes bens jurídicos: a defesa do consumidor, a proteção de dados pessoais e a defesa da concorrência (PEREIRA NETO e RENZETTI, 2020, p. 88). O primeiro se destaca pela posição de hipossuficiência do usuário/consumidor e necessidade de imposição de deveres de transparência às plataformas, diante da assimetria informacional inerente ao ambiente digital. O segundo pela posição de dados pessoais como principal insumo para o desenvolvimento dessas dinâmicas, agravado pelo reconhecimento tardio da proteção de dados como um direito fundamental e pela insuficiente tutela implementada. O terceiro, pela tendência de surgimento de gatekeepers em plataformas, os guardiões do acesso a bancos de dados, capazes de afetar a livre concorrência e o ingresso de novos atores, em uma dinâmica que foge aos tradicionais parâmetros de defesa econômica.

A proteção dos dados pessoais, que somente passou a figurar como direito fundamental em fevereiro de 2022, com a Emenda Constitucional 115, desenvolveu-se por interpretação sistemática, decorrente da inserção da privacidade no âmbito da proteção da dignidade humana e das garantias instrumentais do Habeas Data (MENDES, 2014). Da mesma forma, no âmbito infraconstitucional, o tema por muito tempo dependeu da combinação dialógica do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) e do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), suprindo momentaneamente a lacuna de uma lei geral de proteção de dados (MENDES, 2015, p.472).

O desenvolvimento da regulação da proteção de dados pessoais é essencial aos demais bens jurídicos mencionados acima, na medida em que impõe parâmetros à forma de relação das plataformas com os consumidores e entre si, na formação de suas bases de dados. A partir destas noções, viabiliza-se a compreensão de distorções de consumo como o self-preferencing em market places e de atos de concentração à margem dos parâmetros quantitativos tradicionais, com capacidade de composição de bases de dados herméticas, prejudiciais à concorrência. Ainda, a superação do paradigma da privacidade no sentido de intimidade foi fundamental para se endereçar questões referentes à proteção de dados para temas como a autodeterminação informativa e da confiabilidade da democracia (FRAZÃO, 2019, p.38), que extrapolam o recorte econômico deste exame.

É evidente o entrelaçamento entre estes microssistemas, e isso se percebe desde o advento da LGPD, quando muitas das competências fixadas à Autoridade Nacional de Proteção de Dados, naquela época ainda não constituída, demonstravam grande sinergia com a defesa da concorrência promovida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que buscou incorporar tais funções (CADE, 2021, pp. 19-20). O mesmo se percebe quando ferramentas de proteção de dados se mostram a serviço da proteção do consumidor e da defesa da concorrência. É o que se observa quanto à portabilidade de dados pessoais entre plataformas, a exemplo do open banking no setor financeiro (GRAEF, et al., 2018,p.1363). Ainda que seu escopo seja a proteção do titular de dados contra tratamento irregulares, seus efeitos são percebidos no estímulo à competição e inovação no mercado.

Um bom ponto de partida sobre a composição de um ecossistema regulatório é a Lei de Agências (Lei Nº 13.848/2019), que prevê formas de articulação entre as agências reguladoras nacionais entre si, com órgãos de defesa da concorrência, do consumidor e do meio ambiente. Da mesma forma, a própria ANPD tem colaborado com a estruturação desse ecossistema, por meio de acordos de cooperação técnica, como os firmados com a Senacon e com o Cade, entre outros.

Diante disso, é digno de crítica o conteúdo do PL nº 2768/2022, que se apresenta como proposta de Marco Legal das Plataformas Digitais, alheio às especificidades da economia baseada no tratamento de dados ao considerar plataformas como detentoras de poder de controle de acesso essencial somente com base no volume de sua receita anual. Ainda, ao fixar competência da Agência Nacional de Telecomunicações, o projeto contraria a lógica de posicionar a ANPD como o eixo principal deste ecossistema regulatório, com aberturas para o diálogo entre reguladores dos sistemas mencionados e outros mais, como financeiro ou sanitário. Por fim, reforça-se a necessidade de alocação de recursos adequados à ANPD para o desempenho de suas atividades, e meios de desempenhá-las conjuntamente aos demais órgãos competentes.

Assim, ao se defender a composição de um ecossistema regulatório para ecossistemas digitais, não se defende a incorporação de um microssistema por outro em nome de um único regulador, mas sim o desenvolvimento de ramos independentes do Direito, orientados à tutela de bens jurídicos próprios, com seus princípios e métodos de trabalho que lhe são peculiares. Todavia, assim como os ecossistemas digitais são multilaterais, integrados por uma ou mais bases de dados, também devem agir assim os sistemas regulatórios, capazes de integrar suas ações e extrair colaborações a partir das aptidões de cada, com propósitos bem estabelecidos, a fim de se evitar sobreposições e redundâncias.

 


Referências bibliográficas

BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. CADE como Autoridade de Defesa da Concorrência e de Proteção de Dados. Brasília, agosto de 2020.

CHRISTENSEN, Clayton M. The innovator’s dilemma: when new technologies cause great firms to fail. Massachusetts: Harvard Business Review Press, 2016.

FRAZÃO, Ana (2019). Fundamentos da proteção dos dados pessoais – noções introdutórias para a compreensão da importância da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA. Milena Donato. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo, Revista dos Tribunais.

GRAEF, Inge; HUSOVEC, Martin; PURTOVA, Nadezhda (2018) Data portability and data control: Lessons for an emerging concept in EU law. In: German Law Journal, v. 19, n. 6, , pp. 1359-1398. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/german-law-journal/article/data-portability-and-data-control-lessons-for-an-emerging-concept-in-eu-law/5904FB88DDC1B9E6EC651A7F89058433

JACOBIDES, M. G., & LIANOS, I. (2021). Ecosystems and competition law in theory and practice. Industrial and Corporate Change, 30(5), 1199-1229

MENDES, Laura Schertel (2015). "A tutela da privacidade do consumidor na internet: uma análise à luz do Marco Civil da Internet e do Código de Defesa do Consumidor". In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito e internet III: Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014). Tomo I. São Paulo: Quartier Latin, 2015.

PEREIRA NETO, C. M. D. S & RENZETTI, B. P. (2020). Big data entre três microssistemas jurídicos: consumidor, privacidade e concorrência. In Pereira Neto et al. Defesa da concorrência em plataformas digitais. FGV.

SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, Socialism and Democracy. New York, NY: Harper Perennial Modern Thought, 1950.

Autores

  • é advogado em São Paulo, mestrando em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Advocacia e MBA em Gestão de Política Públicas e Governamentais pela Escola Paulista de Direito.

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