Opinião

Price gouging: manipulação abusiva de preços em períodos de extremos

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5 de março de 2023, 6h32

Eventos extremos e estado de emergência ou calamidade
Durante os últimos anos vivenciamos, por conta de eventos extremos, tanto o melhor quanto o pior do ser humano. Os eventos extremos podem ser uma pandemia, uma enchente, uma seca, ou, até mesmo, eventos que poderiam ser imputados a fator humano, como o rompimento de barragens, vazamentos em poços de exploração de petróleo, acidentes com materiais radioativos ou contaminantes, e situações afins. A expressão "eventos extremos" no presente texto pode ser atribuída aos tradicionais conceitos de emergência e calamidade. Mas a simples decretação de emergência ou calamidade pode não ser suficiente para combater o "price gouging".

Nestes momentos extremos podem ser afetados um município inteiro ou parcela de seu território, um estado ou apenas parcela de seu território, até casos de proporção mais elástica, afetando territórios de mais de um estado.

Diante de dificuldades extremas, é quando aflora o melhor e pior do ser humano. Vive-se a solidariedade. Recuperando as palavras ditas em 1979 pelo então arcebispo de Vitória dom João Batista: "Só o povo salva o povo". Na ocasião havia a extrema necessidade decorrente das enchentes [1] ocorridas no estado do Espírito Santo. Viu-se o povo ajudando o povo. Aflora a bondade no coração humano. Mas, a mobilização popular muita vez ocorre pela desorganização e escassez da ajuda estatal.

Nos períodos de desastres, infelizmente, também vivenciamos o lado negativo, com pessoas buscando lucrar com a miséria alheia. Nestes tempos de eventos extremos abate-se sobre a localidade afetada uma escassez de produtos e serviços, muitos dos quais essenciais como alimentos, água, combustíveis, material para proteção de pessoas e imóveis, produtos para primeiros socorros, e afins. E, com base neste momento, fornecedores de bens e serviços essenciais podem maliciosamente alterar os preços dos produtos e serviços já à disposição. Ou seja, produtos e serviços que não foram sequer afetados em sua aquisição por qualquer efeito do evento extremo.

Price gouging
Os sistemas jurídicos de diversos países, mesmo os mais liberais e mais capitalistas, possuem legislação apropriada para o combate ao "price gouging", ou, em português, a manipulação de preços:

"A manipulação de preços refere-se à quando os varejistas e outros aproveitam os picos de demanda cobrando preços exorbitantes por necessidades, geralmente após um desastre natural ou outro estado de emergência.37 [americanos], [além de] Guam, Porto Rico, as Ilhas Virgens dos EUA e o Distrito de Columbia têm estatutos ou regulamentos que definem a manipulação de preços durante um período de desastre ou emergência. Na maioria dos estados, a manipulação de preços é definida como uma violação da lei de práticas comerciais injustas ou enganosas. A maioria dessas leis prevê penalidades civis, aplicadas pelo procurador-geral do estado, enquanto algumas leis estaduais também impõem penalidades criminais por violações de preços exorbitantes [2]."

A manipulação de preços ocorre quando as empresas aumentam os preços a níveis injustos. A identificação é complexa, e merece cautelas: "Não há regra para o que se qualifica como manipulação de preços, mas não é uma ocorrência incomum" [3]. Inclusive, uma publicação na Harvard Business Review refere que, em tese, os próprios "períodos de preço dinâmico" em determinados aplicativos de transporte, são uma forma de preço alterado. Ocorre que, nem sempre, acarretam um efeito negativo:

"Em períodos de demanda excessiva ou oferta escassa, quando há muito mais passageiros do que motoristas, o Uber aumenta suas tarifas normais com um multiplicador cujo valor depende da escassez de motoristas disponíveis. Esse chamado aumento de preços usa a microeconomia para calcular um preço de mercado para passageiros e motoristas. O objetivo do aumento de preços é encontrar o 'preço de equilíbrio' no qual a oferta do motorista corresponda à demanda do passageiro e o tempo de espera dos passageiros seja minimizado. Estudos mostram que o preço dinâmico atinge o que foi projetado para fazer: traz mais motoristas online e aloca as viagens disponíveis para aqueles que as valorizam mais [4]."

Não se deseja afirmar que o "aumento de preços" em períodos de extrema necessidade seja algo positivo. Apenas que pode ocorrer o seu controle, não necessariamente sua vedação legal absoluta, pois, muitas vezes, um certo acréscimo controlado pode servir para a própria sobrevivência posterior dos pequenos comerciantes, que também terão, de uma forma ou de outra, custos adicionais. Até por outra razão:

"Em tempos como estes [de desastres], a demanda por itens não essenciais e luxos diminui, levando muitas empresas a perder as vendas das quais normalmente dependem. Para compensar essa perda, os varejistas podem aumentar os preços de itens essenciais em um esforço para permanecer no mercado[5]."

Insuficiência do Código do Consumidor e a complexidade da questão
O Código do Consumidor possui um dispositivo desde a década de 1990, consubstanciado no Inciso X do artigo 39 [6]:

"Artigo 39 […]
X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços."

Os economistas alertam:

"Aumentos de preços devido a desastres naturais são um exemplo clássico de manipulação de preços, e o governo geralmente intervém e impede diretamente que as empresas o façam. Mas pode haver consequências não intencionais para tais intervenções no mercado, o que explica o debate em andamento entre economistas e formuladores de políticas sobre a resposta adequada a desastres naturais e manipulação de preços.
Para os empresários, decidir como ajustar os preços durante um período de crise é uma questão prática e moral. Em muitos casos, aumentar os preços de itens de alta demanda pode ajudar a compensar a perda de receita dos itens de baixa demanda e manter uma empresa no mercado. Ao mesmo tempo, os empresários são moralmente obrigados a fornecer aos clientes acesso justo a itens essenciais em momentos de necessidade" 
[7].

Salvo melhor juízo, a previsão do Código do Consumidor parece ser insuficiente e, até mesmo, inapropriada para o caso. Inapropriada por ver o fenômeno do price gouging de forma incompleta. Não é um simples "proibir aumento de preço". A situação não atinge apenas uma relação de consumo. Na falta de regra melhor, fique-se com o CDC, mas, é preciso pensar um regramento legal específico.

Nem todo aumento, ainda que substancial, será "manipulação"
É preciso compreender, inclusive, que nem todo aumento de preço, ainda que em alto percentual, será necessariamente uma "manipulação". No estado do Oregon, por exemplo, temos exceções explicitadas no sítio eletrônico do Departamento de Justiça Estadual:

No entanto, não pode ser considerado manipulação de preços se o aumento for atribuível a qualquer um dos seguintes:
— Custos adicionais impostos pelos fornecedores.
— Despesas adicionadas para o negócio adquirir os bens ou serviços essenciais devido à emergência. Por exemplo, os suprimentos tiveram que ser transportados de avião para uma área inacessível.
— Aumento dos custos internos ou despesas relacionadas com a declaração, tais como pagamento de horas extraordinárias, pessoal adicional, segurança, distribuição, etc [8].

Uma legislação de combate ao "price gouging" deve estar muito melhor equipada do que a simples previsão do Código do Consumidor Brasileiro, contida no artigo 39, Inciso IV.

A participação da população para prevenção: não se torne vítima
Por fim outra questão a ser considerada, e essa situação é essencialmente ausente da legislação brasileira, e, principalmente, inexiste na prática dos governos em nosso país. Os sistemas de combate aos desastres — no que temos uma boa tradição de Defesa Civil — vem estar melhor preparados para o enfrentamento dos efeitos dos desastres de forma a mitigar os efeitos negativos. Não apenas ser "reativos", mas, "preventivos".

No caso do combate ao "price gouging" a população nos lugares onde pode ser suscetível de eventos extremos já é treinada a se preparar. No Estado da Flórida, por exemplo, há verdadeira doutrinação para que os moradores se preparem [9]:

Como posso evitar ser vítima de manipulação de preços?
Planejar com antecedência. Prepare-se para um desastre antes que aconteça. Tenha sempre em mãos os seguintes itens:

– Cinco galões de água potável por pessoa em sua casa
– Pelo menos duas lanternas funcionando
– Um rádio portátil
– Um telefone com fio. Se a energia elétrica for perdida, um telefone sem fio não funcionará
 Um amplo suprimento de baterias para alimentar esses e outros itens
 Um tanque cheio de propano e carvão se você tiver uma churrasqueira a carvão
 Alimentos não perecíveis
 Fórmula e fraldas, se tiver crianças pequenas em casa
 Qualquer equipamento de proteção pessoal que você possa precisar, como máscaras, luvas ou desinfetante para as mãos

Embora não sejam essenciais, jogos de tabuleiro, livros e cartas de baralho podem ser úteis para entreter as crianças. Além disso, não se esqueça de fazer planos para cuidar de qualquer animal de estimação.

Logicamente há situações nas quais o evento extremo ocorre de forma a não permitir qualquer preparação. Nesses casos, é ainda mais imperiosa a celeridade na ação governamental.

Conclusão
Em termos gerais, como visto, os períodos de eventos extremos acarretam o incremento das necessidades. Há de ser combatida a manipulação abusiva de preços. O Código do Consumidor brasileiro traz um dispositivo insuficiente para tal enfrentamento.

Por isso, é urgente a edição de regramento específico que veja todas as perspectivas do chamado "price gouging":

– Delimitar os eventos extremos capazes de gerar a regra de controle;
– Identificar critérios de mensuração de um aumento abusivo;
 Fixar sanções específicas;
 Envolver a população para que se previna, não sendo vítima nestes casos e, principalmente, catalogue informações para denunciar as ocorrências;
 Aparelhar especialmente os órgãos de advocacia pública para o combate judicial;
 Fixar um rito célere (preferencialmente via juizados especiais);
 Indicar um órgão ou autoridade da área atingida para receber os pedidos de aumento de preços em períodos de eventos extremos, de forma a separar efetivamente os casos nos quais os aumentos, ainda que elevados, possam ser tidos como legítimos para a sobrevivência do comerciante ou prestado de serviços.

A legislação necessita separar as ocorrências de abusividade (e as combater), para a salvaguarda dos consumidores, e os casos


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