Opinião

​​​​​​​Uma adequada ordenação territorial e a prevenção de desastres

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3 de março de 2023, 18h18

É aforismo corrente a assertiva ufanista de que "Deus é Brasileiro", com especial alusão para as condições naturais e meteorológicas que acompanham nossa história. A ausência de terremotos, furacões e erupções vulcânicas, bem como um clima essencialmente ameno, parecem corroborar esse senso comum.

Rovena Rosa/Agência Brasil
Rovena Rosa/Agência Brasil

Lamentavelmente, é forçoso reconhecer que as estruturas institucionais que regem as relações político administrativas no nosso país se nos afiguram tão ou mais perniciosas para o nosso desenvolvimento que eventuais intempéries naturais, já que essas quando ocorrem no Brasil tem aqui seus efeitos potencializados por uma caótica ocupação urbana.

Agora, como em tantas outras oportunidades, nos deparamos novamente com as trágicas consequências de chuvas que assolaram o litoral norte do estado de São Paulo, deixando um rastro de destruição humana, social e material. O fato é que se trata mais uma vez de uma tragédia anunciada, tragédias essas que se repetem ao longo do período de chuvas todos os anos.

Não há dúvidas que uma das causas para a magnitude de tais desastres naturais pode certamente ser reconduzida ao populismo na condução da ordenação territorial no âmbito dos municípios, atrelada à falta de fiscalização, omissão das autoridades e inexistência de sanções jurídicas eficazes.

Importa observar, nesse prisma, que o parcelamento do solo urbano é regulado pela Lei nº 6.766/79, que exige a aprovação de novos empreendimentos por diversos órgãos públicos, com o claro intuito de resguardar o regular desenvolvimento urbanístico das cidades.

A desobediência às disposições legais que regem a matéria propicia uma desordenada ocupação urbana, o que acarreta, dentre outras consequências, o adensamento populacional caótico e desprovido de equipamentos urbanos e comunitários definidos em lei, além de inúmeros danos ambientais e urbanísticos, bem como afeta toda a vida da população da cidade, causando males e dificuldades que atingem a toda uma sociedade do ponto de vista da sadia qualidade de vida.

Veja-se que a desordenada ocupação do solo, resultante da não-observância às normas urbanísticas, conduz à proliferação de habitações edificadas sem critérios técnicos (insegurança) e em condições sub-humanas; ao surgimento de focos de degradação do ambiente e da saúde (despejo de resíduos domésticos em córregos, poluição dos recursos hídricos, disposição de lixo a céu aberto — insalubridade); ao adensamento populacional desprovido de equipamentos urbanos e comunitários definidos em lei (artigo 4º, §2º e artigo 5, par. único, Lei 6.766/79) e incompatível com o meio físico (má localização), gerando o crescimento caótico da cidade, além da marginalização dos seus habitantes com o incremento das desigualdades sociais e reflexos na segurança da população.

Nesse contexto, a Lei Federal 6766/79, alterada pela Lei 9785/99 estabelece exigências quanto à execução de parcelamento do solo fins urbanos, dentre as quais se destacam: a) licença de instalação pela Cetesb, necessária para aprovação, implantação e registro de loteamento ou desmembramento, pois qualquer parcelamento do solo é considerado fonte de poluição, independente do fim a que se destina (artigo 5o, parágrafo único, da Lei Federal 996/76; artigos 57, inciso X, e artigo 58, inciso I, ambos do Decreto Estadual 8468/76, item 169, Cap. XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça; artigo 2o, da Lei 6766/79); b) aprovação pela prefeitura municipal (artigo 12, Lei 6766/79); c) efetivação do registro especial (artigo 18, Lei 6766/79); d) elaboração de contrato-padrão contendo cláusulas e condições protetivas ditadas por lei (artigos 25 a 36, Lei 6766/79); e) estar a gleba situada fora das áreas de risco ou de proteção ambiental (artigo 3o, parágrafo único, Lei 6766/79), e em zona urbana, de expansão urbana ou urbanização específica, sendo necessária prévia audiência do Incra, quando houver alteração de uso do solo rural para fins urbanos (artigos 3o, caput, e artigo 53, Lei 6766/79); f) aprovação do projeto pelo Graprohab; g) execução de obras de infraestrutura (artigo 18, inciso V, Lei 6766/79); h) reservas de áreas destinadas ao sistema de circulação, implantação de equipamento urbano e comunitário (praças, creches, escolas etc  artigo 4o, Lei 6766/79).

Impõe observar que a competência dos municípios em assuntos de urbanismo é ampla e decorre do preceito constitucional que lhes assegura autonomia para legislar sobre assuntos de interesse local (artigo 30, inciso I), promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (artigo 30, inciso VIII) e, ainda, executar a política de desenvolvimento urbano, de acordo com as diretrizes fixadas pela União (artigo 182).

As atribuições municipais, no campo urbanístico, desdobram-se em dois setores distintos: o da ordenação espacial, que se consubstancia no plano diretor e nas normas de uso, parcelamento e ocupação do solo urbano e urbanizável, abrangendo o zoneamento, o loteamento e a composição estética e paisagística da cidade; e o de controle da construção, incidindo sobre o traçado urbano, os equipamentos sociais, até a edificação particular nos seus requisitos estruturais, funcionais e estéticos, expressos no Código de Obras e normas complementares [1].

Assim, impõe-se aos municípios atribuições administrativas que se traduzem normativamente como autênticos deveres de natureza pública, dentre os quais destacam-se: a) realizar diretamente as medidas administrativas de sua competência, relativas ao parcelamento do solo, inclusive a expedição de autos de regularização, embargar e tomar as demais providências na regularização ou devolução da área loteada irregularmente ao status quo ante; b) solicitar aos órgãos municipais e estaduais a competente ação fiscalizatória e a promoção das medidas judiciais cabíveis para evitar o desenvolvimento ou nascimento de loteamentos ou desmembramentos clandestinos ou irregulares; c) identificar os loteamentos e desmembramentos clandestinos ou irregularmente implantados e adotar as providências necessárias à adequada estruturação do espaço urbano e à sua regularização; d) analisar e propor soluções sobre projetos relativos a intervenções urbanas a serem empreendidas.

Nesse diapasão, no exercício desse controle urbanístico, a Municipalidade pode: a) aplicar multas a quem efetuar parcelamento do solo sem prévia aprovação municipal ou em desacordo com o respectivo plano; b) embargar a obra e intimar o infrator a regularizá-la, nos termos da legislação específica, sob cominações; c) fiscalizar trabalhos que alterem o estado físico de imóveis (inclusive movimentos de terra) e, constatando infrações à legislação, intimar o infrator a corrigi-las, adotando os procedimentos administrativos apropriados para impedir que elas prossigam, dispondo, para isso, do embargo, da interdição, da multa e da força policial, bem como das medidas judiciais adequadas;

Em complemento a tais diretrizes e especialmente no referente a prevenção de desastres naturais, foi editada a Lei nº 12.608/12, que dispõe sobre a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, estabelecendo em seu artigo 2º que é dever da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre.

Consoante a referida legislação, a União deve expedir normas para implementação e execução do Plano Nacional de Prevenção de Desastres, coordenando a articulação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, bem como promovendo estudos referentes às causas e possibilidades de ocorrência de desastres de qualquer origem, sua incidência, extensão e consequência.

Incumbe-lhe também apoiar os estados, o Distrito Federal e os municípios no mapeamento das áreas de risco, nos estudos de identificação de ameaças, suscetibilidades, vulnerabilidades e risco de desastre e nas demais ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação, além de instituir e manter sistema de informações e monitoramento de desastres e cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos. No mais, cabe ainda à União realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, bem como dos riscos biológicos, nucleares e químicos, e produzir alertas sobre a possibilidade de ocorrência de desastres, em articulação com os demais entes federados.

Aos estados, por seu turno, incumbe executar o Plano Nacional de Prevenção de Desastres, coordenar as ações em articulação com a União e municípios, instituir um Plano Estadual de Proteção e Defesa Civil, além de identificar e mapear áreas de risco, também realizando o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, em articulação com a União e os municípios.

Por derradeiro, aos municípios se impõem os deveres mais prementes, dentre os quais destacam-se a incorporação das ações de proteção e defesa civil no planejamento municipal; a identificação e mapeamento das áreas de risco de desastres; a promoção da fiscalização das áreas de risco de desastre e a vedação de novas ocupações nessas áreas; a realização de vistorias em edificações e áreas de risco e promoção, quando for o caso, de intervenção preventiva e evacuação da população das áreas de alto risco ou das edificações vulneráveis.

Também se lhe incumbe a organização e administração de abrigos provisórios para assistência à população em situação de desastre, em condições adequadas de higiene e segurança, bem como o dever de manter a população informada sobre áreas de risco e ocorrência de eventos extremos, bem como sobre protocolos de prevenção e alerta e sobre as ações emergenciais em circunstâncias de desastres.

O fato é que a despeito de todo esse arcabouço normativo, a atuação institucional do Poder Público carece de mínima efetividade, como os recorrentes desastres e o adensamento populacional caótico nos comprova.

Importa notar, nessa senda, que a dificuldade de determinação de responsabilidades se dá por incontáveis elementos, podendo se destacar a difusa atribuição de deveres administrativos, a dificuldade histórica de determinação da ocupação do solo, bem como a falta de mecanismos jurídicos sancionatórios adequados aos responsáveis.

Tais fatores, lamentavelmente, continuarão a revelar o quadro de descaso geral no referente a ordenação territorial urbana em nosso País, tendo como resultado a recorrência de desastres naturais em áreas irregularmente ocupadas.


[1] cf. Hely Lopes Meirelles in Direito Municipal Brasileiro, 7ª ed. Malheiros, pág. 394.

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