Opinião

Os direitos fundamentais frente à administração pública

Autor

  • Acácia Regina Soares de Sá

    é juíza de Direito substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios especialista em Função Social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) mestre em Políticas Públicas e Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) coordenadora do Grupo Temático de Direito Público do Centro de Inteligência Artificial do TJDFT integrante do Grupo de Pesquisa de Hermenêutica Administrativa do UniCeub e integrante do Grupo de Pesquisa Centros de Inteligência Precedentes e Demandas Repetitivas da Escola Nacional da Magistratura (Enfam).

3 de março de 2023, 6h30

Para Ingo Wolfgang Sarlet [1], utilizando a conceituação de Robert Alexy, os direitos fundamentais são as posições jurídicas relativas às pessoas, que em razão do seu conteúdo e importância integram o texto constitucional, observados os parâmetros do ponto de vista da fundamentalidade material e da formal.

Ainda segundo o autor [2] acima referido os direitos fundamentas são distintos dos direitos humanos, ainda que estejam interligados.

Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet [3] informa que existem diferenças jurídicas e filosóficas entre os direitos humanos e fundamentais, estes considerados como os direitos no nível constitucional interno. No entanto, em alguns momentos, a abrangência de ambos se encontra.

E segue dizendo que "o conceito de direitos fundamentais também entre nós não se limita à condição de direitos positivados expressa (ou mesmo implicitamente) em determinada constituição em direito fundamental não é, portanto, apenas um direito de matriz constitucional" [4].

No mesmo contexto para o autor a mudança de paradigma teve início com a promulgação da Lei Fundamental da Alemanha de 1949, que procurou reverter a fragilidade dos direitos fundamentais da Constituição de Weimar (1919), os quais não vinculavam, diretamente, todos os órgãos estatais, razão pela qual a referida lei fundamental o fez.

Aliado a essa alteração de paradigma, também foi criação, na Alemanha, o Tribunal Constitucional Alemão, entre outras medidas como forma de fortalecer a aplicação e proteção aos direitos fundamentais.

Para Alexy os direitos fundamentais podem ser observados do ponto de vista material como "posições jurídicas relacionadas pelo constituinte histórico como sendo suficientemente relevantes para serem alçados à condição de direitos fundamentais" [5] e do ponto de vista formal como um "conjunto de garantias atribuídas a tais direitos e que lhes assegura um regime jurídico diferenciado e qualificado na arquitetura constitucional" [6].

Nesse contexto, o direito fundamental é sempre um direito de matriz constitucional, independentemente de ser ou não classificado como um direito humano.

Para Konrad Hesse preconiza os "direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica de direitos fundamentais" [7].

Já no Brasil os direitos fundamentais passaram a ter uma proteção mais efetiva com a promulgação da Constituição de 1988, a qual, diferente de outras constituições que trataram a proteção dos direitos fundamentais de forma genérica, trouxe uma proteção de forma mais específica, enumerando quais serem tais direitos, sem prejuízo de outros não especificados.

Nesse sentido, o §1º do artigo 5º da nossa Constituição Federal [8] estabeleceu, de forma expressa, que as garantias fundamentais têm aplicação imediata, ou seja, são autoaplicáveis, não havendo a necessidade de edição de uma lei ordinária para sua regulamentação.

Com a sedimentação dos direitos humanos surgiu então a problemática quanto à sua eficácia, vez que, por muito tempo, perdurou a concepção acerca da impossibilidade da aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações, debate que ocupou a centralidade acerca da extensão da sua aplicabilidade.

Nesse sentido, ainda que tenham sido travadas intensos debates acerca do tema, é de se considerar que todas as constituições, em maior ou menor grau, trazem garantia da eficácia dos direitos fundamentais.

Para Ingo Salert há uma distinção entre a eficácia dos direitos fundamentais sobre o Poder Público e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares [9].

Para Luiz Guilherme Marinoni "as normas que estabelecem direitos fundamentais, se podem ser subjetivadas, não dizem respeito somente ao sujeito, mas sim a todos aqueles que fazem parte da sociedade" [10].

A teoria da eficácia imediata ou direta nasceu na Alemanha, idealizada por Hans Carl Nipperdey, que defende a teoria da eficácia imediata defende que os direitos fundamentais são aplicáveis de forma direta em relação aos particulares e que as normas constitucionais devem possuir um caráter primário e justificador, independentemente de haver ou não normas infraconstitucionais em determinada decisão.

A tese da eficácia direta foi adotada expressamente por Portugal na sua Constituição de 1976 [11], o que não ocorreu no Brasil, o que não afasta a vinculação e aplicabilidade de forma direta dos direitos fundamentais tantos nas relações públicas como nas relações privadas. Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica [12].

Nesse sentido, resta claro que não há divergências quanto à aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações públicas ou privadas o que impõe, principalmente para a Administração Pública, de modo os entes não podem se esquivar da aplicação de nenhum direito fundamental ao cidadão sob fundamento diverso de um fundamento constitucional.

 


[1] SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 90.

[2] Salert, Ingo. O conceito de direitos fundamentais na Constituição de 1988. https://www.conjur.com.br/2015-fev-27/direitos-fundamentais-conceito-direitos-fundamentais-constituicao-federal-1988. Acesso em 14.02.2023. "Os direitos fundamentais na condição de direitos constitucionalmente assegurados possuem uma abrangência em parte distinta dos direitos humanos, seja qual for o critério justificador de tal noção, por mais que exista uma maior ou menor convergência entre o catálogo constitucional dos direitos fundamentais e o elenco de direitos humanos, convergência que será maior quanto maior a sinergia com os níveis de positivação dos direitos humanos na seara internacional".       

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federal da alemanha. Traduzido por Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1998.

[8] Constituição Federal da República Federativa do Brasil, 1988: Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) §1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

[9] Mister salientar que, parte da doutrina entende no caso de manifesta desproporção econômico social entre dois particulares, que também existe relação de natureza vertical (SARLET, Ingo Wolfgang. A constituição concretizada: construindo pontes entre o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 155).

[10] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.168

[11] Constituição de Portugal: Artigo 18/1: "Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas".

[12] SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à 16/02/2023, 22:02 A Eficácia Dos Direitos Fundamentais – Âmbito Jurídico – Educação jurídica gratuita e de qualidade https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/a-eficacia-dos-direitos-fundamentais/29/37 proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃOESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores (UBC), sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do Ecad e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (artigo 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (RE 201819 / RJ – Rio de Janeiro Recurso Extraordinário – relatora: ministra ELLEN GRACIE – Relator p/ Acórdão: ministro GILMAR MENDES. Julgamento:11/10/2005 – Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação: DJ 27/10/2006, PP 064 – Ement Vol – 02253-04 PP 00577).

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  • é juíza de Direito substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, especialista em função social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), mestre em políticas públicas e Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), coordenadora do grupo temático de Direito Público do Centro de Inteligência Artificial do TJ-DF, integrante do Grupo de Pesquisa de Hermenêutica Administrativa do UniCeub e integrante do Grupo de Pesquisa Centros de Inteligência, Precedentes e Demandas Repetitivas da Escola Nacional da Magistratura (Enfam).

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