Seguros Contemporâneos

A recuperação judicial e o contrato de seguro garantia

Autor

  • Márcio Souza Guimarães

    é professor doutor visitante da Université Paris-Panthéon-Assas doutor pela Université Toulouse Capitole professor da Universidade de Saint Gallen (Suíça) acadêmico fundador da Academia Brasileira de Direito Civil e ex-membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

2 de março de 2023, 8h00

Incertezas são elementos que se encontram presentes em todas as escolhas e ações humanas, em todas as esferas da sociedade.

Por ser inafastável, o risco tornou-se um fator a ser minorado e bem enfrentado com o manejo de diversas ferramentas, criadas com o fim de proporcionar maior segurança e previsibilidade frente aos inevitáveis imprevistos e infortúnios porventura encontrados [1].

No universo jurídico, revelam-se, dentre essas ferramentas de controle de incertezas, diversas modalidades de contratos de seguro, os quais estarão submetidos ao regime de recuperação judicial previsto na Lei 11.101/2005, na hipótese de crise da empresa.

Pelo seu escopo próprio, a legislação de insolvência empresarial tem aplicação destinada aos agentes econômicos listados na lei, com a exclusão de outros, que ficam submetidos a regime diverso [2]. É esse o caso das companhias seguradoras, que se submetem à regulação própria, estipulada, especialmente, pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), lastreada no Decreto-Lei nº 73/1966, artigos 94 a 107 [3].

Referido regime regulatório tem por objetivo evitar a ocorrência de eventos de insolvência, com potencial impacto sistêmico [4] a todo o mercado securitário, por meio do estabelecimento de regras de caráter prudencial:

"Regulação prudencial diz respeito ao estabelecimento de regras que visem a resguardar a solvência das sociedades e entidades supervisionadas pela Susep (ou seja, sua capacidade financeira para cumprir os compromissos assumidos junto aos segurados e beneficiários) mesmo em face de eventuais acontecimentos desfavoráveis" [5].

Nesse sentido, a intervenção regulatória do Estado no mercado de seguros objetiva dupla proteção, tanto do ponto de vista do segurado, quanto das próprias seguradoras [6].

Assim, na eventual ocorrência de crise de uma seguradora, não se aplica, em um primeiro momento, o regramento disposto na Lei 11.101/2005, mas sim o regime próprio regulatório consubstanciado no regramento estabelecido pelo órgão regulador do mercado, adstrito, essencialmente, aos termos constantes no Decreto-Lei 73/1966 [7].

Em que pese a distinção posta entre a legislação aplicável, é inegável que a submissão de determinado agente econômico ao regime de insolvência empresarial implica em consequências a diversos players econômicos que com ele se relacionem, a exemplo das companhias seguradoras.

São diversas as controvérsias encontradas na interface entre recuperação judicial e seguros, não sendo naturalmente nossa pretensão exaurir o tema posto nesse breve ensaio. Assim, cite-se o caso dos contratos de seguro garantia [8], nos quais a sociedade em regime de recuperação judicial figure como tomadora do contrato [9]. Na referida modalidade de seguros, o tomador (proponente do contrato de seguro) é o devedor da obrigação principal garantida e contrata, junto à seguradora, uma apólice, que garante ao credor (segurado) o fiel cumprimento da obrigação pactuada. Trata-se de importante instrumento contratual de minoração de riscos, muito utilizado em contratos de prestação de serviços e na construção civil.

Por meio desta modalidade de contrato, na hipótese da ocorrência do evento não desejado (sinistro), em que o tomador do seguro não arque com a obrigação garantida (objeto principal do contrato), a seguradora indenizará o segurado (credor) mediante: (1) pagamento em dinheiro dos prejuízos ou (2) a execução da obrigação garantida.

Em vista das disposições do artigo 6º, II [10] e 49, §1º [11], da Lei 11.101/2005, questiona-se: na eventual submissão do tomador do contrato de seguro ao regime de recuperação judicial, a seguradora pode ser acionada, devendo arcar com o pagamento da indenização, relativa à obrigação principal pactuada?

A controvérsia foi objeto de decisão do Superior Tribunal de Justiça, em sede de conflito de competência suscitado entre a justiça trabalhista e a comum (cível), definindo que a natureza da relação existente entre a seguradora e o credor da obrigação principal garantida (exequente) difere substancialmente daquela mantida com os coobrigados em geral, razão pela qual a execução pode seguir contra estes (coobrigados), mas nem sempre contra a seguradora, uma vez que a sua obrigação se origina diretamente do contrato de seguro firmado e não do título da obrigação [12].

Assim, no entendimento do relator do recurso, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a submissão da tomadora de um seguro garantia ao regime de recuperação judicial, além de extinguir a execução contra o devedor principal da obrigação, só implica em obrigação para a seguradora de arcar com o prejuízo naqueles casos em que o fato gerador da obrigação (sinistro) tenha ocorrido em momento anterior ao pedido de recuperação judicial [13]:

"Diante de tais premissas, ou seja, de que o dever de pagar a indenização por parte da seguradora nasce a partir da ocorrência do fato gerador do sinistro e de que a aprovação do plano de recuperação judicial implica a novação da dívida garantida, é possível concluir que: 1) se o fato caracterizador do sinistro não tiver ocorrido até o deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial, a novação da dívida garantida impede a execução da apólice, e 2) se o fato caracterizador do sinistro tiver ocorrido antes do deferimento do pedido de recuperação judicial e por qualquer motivo ainda não houver sido realizado o pagamento da indenização, poderá o juízo determinar que a seguradora o faça, sobretudo porque tal determinação: a) não acarreta a diminuição do patrimônio da empresa recuperanda, visto que a incumbência do depósito recairá sobre a companhia seguradora e b) não ofende o princípio da pars conditio creditorum, considerando que a seguradora, ao se sub-rogar nos direitos e privilégios do segurado contra o tomador, terá que habilitar seu crédito na recuperação judicial".

O julgado proferido consubstancia, em nosso sentir, importante marco para o mercado securitário, atribuindo maior previsibilidade e segurança jurídica a todos os seus participantes.

Os contratos de seguro e a recuperação judicial são, ambos, instrumentos de relevantíssima função social, de forma que a sua harmonização e adequada compreensão tornam-se fundamentais para cumprirem, cada qual, com seus objetivos na seara econômica, como bem concretizado no âmbito do relevante julgado do Superior Tribunal de Justiça.

 

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

 


[1] "Na Análise Econômica do Direito (AED), os contratos e as sociedades aparecem como instrumentos cuja primeira razão está na redução das incertezas nas interações sociais que regulam." SALDANHA Jr, Roland Veras. Economia do direito securitário. In: SCHALCH, Débora. Seguros e Resseguros. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 121.

[2] "A lei 11.101/05 restringe sua incidência ao devedor empresário e à sociedade empresária, e assim remete à teoria da empresa disposta no art. 966 e p.ú do Código Civil, abrindo a possibilidade de uma série de discussões sobre a classificação de tais destinatários, tornando inseguro e, não raro, injusto o alcance do sistema de insolvência empresarial." GUIMARÃES, Márcio Souza. A ultrapassada teoria da empresa e o direito das empresas em dificuldades. In: WAISBERG, Ivo e RIBEIRO, J. Horácio H. Rezende (coord.). Temas de Direito da Insolvência – estudos em homenagem ao professor Manoel Justino Bezerra Filho. São Paulo: IASP, 2017. p. 799.

[3] A demonstrar a subsidiariedade da LRF perante o Dec. Lei nº. 73/1966, confira-se o disposto no art. 107, caput, do Decreto: "Art. 107. Nos casos omissos, são aplicáveis as disposições da legislação de falências, desde que não contrariem as disposições do presente Decreto-lei".

[4] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 77.

[6] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 76.

[7] A incidência das regras da Lei 11.101/2005, estão previstas no art. 26 do Decreto-Lei nº 73/1966: "As sociedades Seguradoras não poderão requerer concordata e não estão sujeitas à falência, salvo, neste último caso, se decretada a liquidação extrajudicial, o ativo não for suficiente para o pagamento de pelo menos a metade dos credores quirografários, ou quando houver fundados indícios da ocorrência de crime falimentar".

[8] Disciplinado pela Circular Susep nº 662/2022.

[9] "O Seguro Garantia é o seguro que visa garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo tomador junto ao segurado no objeto principal. Em outras palavras, é o seguro destinado a garantir/cobrir um objeto principal contra o risco de default/inadimplemento, pelo tomador, de obrigações garantidas. Na prática, mediante o pagamento de prêmio, a seguradora obriga-se ao pagamento da indenização, caso o tomador não cumpra a obrigação garantida, conforme estabelecido no objeto principal ou em sua legislação específica, respeitadas as condições e limites estabelecidos no contrato de seguro." Disponível em: https://www.gov.br/susep/pt-br/planos-e-produtos/seguros/seguro-garantia. Acesso em: 12.02.2023.

[10] "A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: (…). suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativa a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência."

[11] "Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso."

[12] "No seguro-garantia judicial, a relação existente entre o garantidor (seguradora) e o credor (segurado) é distinta daquela existente entre credor (exequente) e o garantidor do título (coobrigado), visto que no primeiro caso a relação resulta do contrato de seguro firmado e, no segundo, do próprio título, somente sendo devida a indenização se e quando ficar caracterizado o sinistro." Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Conflito de Competência nº 161.667-GO. Relator: ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Data de julgamento: 26.08.2020. DJe: 31.08.2020.

[13] Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Conflito de Competência nº 161.667-GO. Relator: ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Data de julgamento: 26.08.2020. DJe: 31.08.2020. p. 16.

Autores

  • é professor da Escola de Direito RIO da FGV, doutor pela Université Toulouse 1 Capitole, professor visitante da Harvard Law School, Max Schmidheiny Foundation Guest Professor at the Institute for Public Finance, Tax Law and Law & Economics at Saint Gallen University, acadêmico da Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Ministério Público do Rio de Janeiro.

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