Opinião

Proteção da liberdade de religião

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2 de março de 2023, 11h18

"Universidade deve trancar curso de aluno que quer fazer pregação religiosa" é uma notícia recente do mundo jurídico em virtude de decisão proferida pelo juiz Bruno Anderson da Silva , da 3ª Vara Federal do Distrito Federal, que permitiu que um aluno de uma universidade pública trancasse o seu curso para sair para uma missão religiosa. A pergunta que fica é: sendo o Brasil um Estado laico, a referida decisão está em consonância com nosso ordenamento jurídico?

Da liberdade de religião

Há autores que defendem que a luta pela liberdade de religião é a verdadeira origem dos direitos fundamentais [1]. De qualquer forma, ainda que se defendam outras origens para os Direitos Fundamentais, é fato que a luta pela liberdade religiosa é um dos movimentos mais fortes no âmbito mundial.

O Brasil é um Estado laico, ou seja: não possui uma religião oficial.  Entretanto, na medida em que não possui religião de Estado, o Brasil deve respeitar as religiões escolhidas por cada um de seus cidadãos [2], pois laicidade não ignifica  antirreligião, sendo exatamente esse o conteúdo da laicidade: ao mesmo tempo em que os Estados não adotam uma religião oficial, eles são obrigados a proteger e respeitar todas as religiões [3], uma vez que não podemos confundir laicidade com laicismo, que seria a negativa da existência de religiões [4], até mesmo porque, por mais que os positivistas tenham se esforçado para "libertar" o direito dos valores religiosos, eles não conseguiram anular de forma definitiva a "contaminação" [5], haja vista que a Igreja, dentro de sua missão, também vem, assim como afirma Germán Doig K, a "preocupar-se pela dignidade da pessoa humana, promovendo-a e defendendo-a das mais diversas maneiras" [6].

No mais, da mesma forma em que deve ser respeitado o direito de ter qualquer religião, também deve ser respeitado o direito de não ter religião alguma, de não acreditar em qualquer deus, de não professar qualquer fé [7]para que efetivamente exista a plena liberdade de crença, existindo os ateus, que não acreditam em Deus e os agnósticos, que afirmam não ser possível comprovar se Deus existe ou não [8], ambos merecendo o devido respeito.

No âmbito normativo internacional, encontra-se a garantia de proteção de liberdade religiosa no artigo 26 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos que, ao falar do princípio da igualdade, veda a discriminação em decorrência de vários fatores, como cor, sexo, língua e religião [9]. Ainda no âmbito internacional, existe o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma que toda pessoa tem direito à liberdade religiosa, o que inclui o direito de escolher uma religião, de mudar de religião, de manifestar a sua religião sozinho ou em grupo pelo "ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos" [10]. Entretanto, por não se tratar de um tratado, a referida declaração apenas reforça a necessidade de se proteger o Direito de Liberdade de Religião, porém sem caráter normativo, o mesmo acontecendo com a Declaração Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas em Religião ou Crença, que aprofunda ainda mais a necessidade de respeito à liberdade religiosa e expressamente afirma na alínea h, do seu artigo 6º, que deve ser respeitado o dia de repouso das religiões [11]. Também existem no âmbito internacional diversos tratados regionais, como na Europa, na América, na África e nos países Árabes que proíbem a discriminação em virtude de religião [12].

Especificamente no Brasil, o artigo 5º da Constituição prevê, em seu inciso VIII [13], que nenhuma pessoa poderá ser privada dos seus direitos em virtude da sua crença religiosa, salvo se houver expressa previsão legal de prestação alternativa e a pessoa se negar a cumprir. Assim, por exemplo, uma pessoa do sexo masculino no Brasil pode se utilizar da sua crença religiosa para deixar de servir ao exército, tal como expressamente prevê o §2º do artigo 143 da Constituição da República [14] especificamente para os eclesiásticos, porém o cidadão será obrigado a realizar os serviços alternativos nos termos da lei 8239/92 [15].

Desse modo, claro está que o Brasil prevê como direito fundamental o Direito de Liberdade Religiosa. Assim, seja por meio do ordenamento jurídico internacional ou por meio da legislação local brasileira, o direito de professar determinada religião e de a ter garantida é um direito humano que deve ser protegido e efetivamente viabilizado.  A problemática é: seria possível obrigar o Poder Público a viabilizar o exercício dos preceitos de uma religião sem ofender os princípios que regem a Administração Pública? A questão, de antemão, é tormentosa porque, se de um lado deve existir uma separação entre o Estado e a religião, por outro lado o Estado deve, ao menos na medida do que for possível, respeitar a crença de cada cidadão.

Nesse sentido, Maciel Ramos afirma:

"Portanto, conforme dito, se o direito não pode prescindir dos seus aspectos formais, tampouco ele pode ignorar que o conteúdo do modelo de ação que estabelece é produto de uma decisão que é expressão da tradição cultural na qual se insere e que se funda em princípios e fins construídos historicamente. Desse modo, não podemos nos esquecer dos valores religiosos que fornecem conteúdos a essa experiência cultural e jurídica" [16].

Assim, de antemão, estar-se diante de uma, ao menos aparente, colisão de direitos, de um lado os princípios que regem a Administração Pública, como o princípio da impessoalidade e o princípio do respeito às formalidades; do outro o direito de preservação à liberdade religiosa.

No mais, é importante destacar que possivelmente a dificuldade encontrada no decorrer dos anos de viabilizar o exercício de determinadas religiões decorre do fato de que, apesar de laico, o Brasil ainda possui uma maioria populacional adepta da religião Católica, o que gera um preconceito com outras religiões. O referido preconceito é até mesmo levado ao Poder Judiciário. A título de exemplo, recentemente causou polêmica uma decisão do Supremo Tribunal Federal permitindo o sacrifício de animais em rituais.

O voto vencedor da decisão acima teve o seguinte teor:

"CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. SACRIFÍCIO RITUAL DE ANIMAIS. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Não é inconstitucional a Lei 12.131/04-RS, que introduziu parágrafo único ao artigo 2º da Lei 11.915/03-RS, explicitando que não infringe ao 'Código Estadual de Proteção aos Animais' o sacrifício ritual em cultos e liturgias das religiões de matriz africana, desde que sem excessos ou crueldade. Na verdade, não há norma que proíba a morte de animais, e, de toda sorte, no caso a liberdade de culto permitiria a prática( RECURSO EXTRAORDINÁRIO 494.601 RIO GRANDE DO SUL RELATOR: MINISTRO MARCO AURÉLIO)" [17].

A decisão em testilha gerou uma grande polêmica nos meios de comunicação e nas redes sociais. Entretanto, nos parece que a referida repercussão negativa decorreu de um preconceito com as liturgias das religiões de matriz africana. Ora, o peru na ceia natalina não seria um sacrifício de um animal para a comemoração de uma data religiosa? Por que existe a polêmica no caso das religiões de matriz africana e não existe nas religiões cristãs? No mais, matamos animais todos os dias para nos alimentar quando poderíamos adotar uma alimentação vegana ou vegetariana, como proibir então o sacrifício de animais em rituais religiosos?

Desse modo, a tentativa de proibição do sacrifício de animais de especificamente alguns rituais religiosos é a demonstração de um preconceito existente no Brasil em relação às religiões que possuem menos adeptos no Brasil, o mesmo nos parece acontecer com o espanto em se permitir que um aluno tranque um curso para poder seguir os preceitos da sua religião.

Da necessidade de viabilizar o exercício das religiões
O caso estudado no presente artigo no qual um aluno não conseguiu administrativamente trancar o seu curso por causa das regras internas da universidade pública mais se aproxima de uma colisão entre os princípios que regem a Administração Pública e o princípio da proteção à liberdade religiosa. Seguindo a linha de Alexy, a colisão entre os princípios é solucionada de forma distinta da colisão entre as regras, ou seja, a solução diante de uma colisão de princípios não se dá com base em analisar se o princípio é válido ou não e sim em fazer uma ponderação no caso concreto de qual princípio vai prevalecer [18]. Desse modo, quando diante da proteção à liberdade de crença de um lado e do outro dos princípios da Administração Pública, deve-se fazer uma ponderação no caso concreto para analisar qual princípio irá prevalecer.

Diante do exposto, imagine-se, por exemplo, uma prova de um concurso público marcada para o sábado. Poderia se pleitear a mudança para um domingo a pedido de um candidato que professe a religião adventista, que guarda o referido dia da semana? Depende do caso concreto. Se o pedido trouxesse novos custos para o Poder Público ou prejudicasse outros candidatos ou ainda trouxesse um benefício específico para o requerente, parece que o pleito deve ser indeferido. Por outro lado, se o pleito não gera qualquer vantagem na seleção para o requerente, não traz gastos adicionais ao Poder Público e não prejudica outros candidatos, parece que o pleito de mudança de data deve vir a ser atendido como forma de preservar o direito de proteção à liberdade religiosa. No mais, é possível que no caso concreto os interesses em jogo sejam facilmente conciliáveis, como, por exemplo, os adventistas ficarem isolados no horário da prova ao sábado para só a realizarem após o pôr do sol, quando a religião já permite a realização de toda e qualquer atividade, tal como o MEC já permitia desde 2009 [19].

Ainda que seja desejável a existência de um Estado laico, o mesmo não pode se exigir dos indivíduos, que devem ter o direito de professar os ditames de sua religião, não podendo ninguém os obrigar a deixar de exercer direitos em decorrência de sua fé [20], até mesmo porque as pessoas que professam uma fé também estão sujeitas a sanções no campo eclesiástico, uma vez que cada religião possui as suas regras e suas punições [21].

De qualquer forma, é possível imaginar situações nas quais a conciliação não seria possível, como, por exemplo, de forma bem hipotética, sete pessoas de religiões diferentes e cada uma preservando um dia diferente de guarda solicitassem que a data da prova não caísse no referido dia. Nesse caso, naturalmente, a prova seria no dia que fosse mais conveniente para a entidade que a estivesse organizando. De qualquer forma, não se tem notícia de uma situação como essa, sendo o ideal sempre a busca de uma solução harmonizadora.

Entretanto, no caso analisado no presente artigo é totalmente possível a conciliação, pois o trancamento de um curso de um aluno não gera qualquer prejuízo para a Universidade nem para as outras alunas e os outros alunos, não gerando qualquer benefício extraordinário para o aluno que pediu o trancamento, salvo o benefício de professar a sua fé, que deve ser assegurado a todas e todos. Além disso, não há qualquer custo adicional ao Poder Público, uma vez que, após cumprir sua missão religiosa, o aluno poderá voltar para outra turma que necessariamente vai existir.

Conclusão
Não deveríamos em pleno 2023 sequer discutir se seria razoável uma pessoa trancar o seu curso sem prejudicar qualquer pessoa para poder professar a sua fé. De qualquer forma, é natural não compreender os preceitos de uma religião diferente da nossa.

Entretanto, vivemos em um Estado Laico e respeitar isso não quer dizer apenas que cada pessoa pode proferir a sua fé, mas sim que o Poder Público deve efetivamente viabilizar o exercício da religião de todas e todos.

Desse modo, mais do que acertada foi a decisão do juiz que, afastando regras meramente internas de uma Universidade Pública, permitiu que um aluno trancasse o seu curso para cumprir sua missão religiosa.

Hoje é esse aluno que vai poder seguir os preceitos da sua religião, amanhã pode ser o articulista ou leitor.

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Referências
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2ªed. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 19ª Reimpressão da 7ªed. Coimbra: Almedina, 2017.

CUNHA JUNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 2ed. Salvador: Juspodivm, 2008.

DOIG K, Germán. Direitos Humanos: e Ensinamento Social da Igreja. [Trad. J.A. Ceschin]. São Paulo: Edições Loyola, 1994p.11.

GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito, Religião e Sociedade no Estado Constitucional. Lisboa: IDILP, 2012.

JERÓNIMO, Patrícia. Intolerância, Religião e Liberdades Individuais. In Jerónimo, Patrícia (org.) et al. Temas de Investigação para os Direitos Humanos para o Século XXI. Lisboa: Centro de Investigação Interdisciplinar, 2016. [303-328].

JERÓNIMO, Patrícia. Os Direitos dos Homens à Escala das Civilizações: Proposta de Análise a partir do Confronto dos Modelos Ocidental e Islâmico. Coimbra: Almedina, 2001.

MIRANDA, Maria Bernadete. Aspectos Gerais do Direito Positivo e do Direito Canônico. Revista Virtual Direito Brasil. v. 3. nº 1. São Paulo: 2009. Disponível em: <http://www.direitobrasil.adv.br/artigos/can.pdf>. Acesso em 11/07/2019>.

RAMOS, Maciel. Direito e religião: reflexões acerca do conteúdo cultural das normas jurídicas. Meritum: Belo Horizonte, 2010. v. 5. nº 1. [49-76].2010.

SHERKEKEWITZ, Isso, Cliatz. O direito de Religião no Brasil. Revista da PGE. 2 Ed. Artigo5.Acessívelem:<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista2/artigo5.htmp>. Acesso em: 14 jan. 2021. RAMOS, Maciel. Direito e religião: reflexões acerca do conteúdo cultural das normas jurídicas. Meritum: Belo Horizonte, 2010. v. 5. nº 1. [49-76].2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.


[1]CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 19ª Reimpressão da 7ªed. Coimbra: Almedina, 2017. p.383

[2]SHERKEKEWITZ, Isso, Cliatz. O direito de Religião no Brasil. Revista da PGE. 2 Ed. Artigo5.Acessívelem:<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista2/artigo5.htmp>. Acesso em: 14 jan. 2021.

[3]CUNHA JUNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 2ed. Salvador: Juspodivm, 2008.p655.

[4]GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito, Religião e Sociedade no Estado Constitucional. Lisboa: IDILP, 2012. p.27.

[5]JERÓNIMO, Patrícia. Os Direitos dos Homens à Escala das Civilizações: Proposta de Análise a partir do Confronto dos Modelos Ocidental e Islâmico. Coimbra: Almedina, 2001. p.194.

[6]DOIG K, Germán. Direitos Humanos: e Ensinamento Social da Igreja. [Trad. J.A. Ceschin]. São Paulo: Edições Loyola, 1994p.11.

[7]SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. P.221.

[9] Artigo 26. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer opinião

[10] Artigo 18º. Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

[11] "Artigo 6º. O direito à liberdade de pensamento, consciência, religião ou crença incluirá as seguintes liberdades: h) observar o dia de repouso e celebrar feriados e cerimônias de acordo com os preceitos da sua religião ou crença". 

[12] JERÓNIMO, Patrícia. Intolerância, Religião e Liberdades Individuais. In Jerónimo, Patrícia (org.) et al. Temas de Investigação para os Direitos Humanos para o Século XXI. Lisboa: Centro de Investigação Interdisciplinar, 2016. [303-328]. p.43.

[13] CRFB. Artigo . VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

[14] CRFB. Artigo 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. §2º As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.

[15] Essa lei "Regulamenta o artigo 143, §§1º e 2º da Constituição Federal, que dispõem sobre a prestação de Serviço Alternativo ao Serviço Militar Obrigatório".

[16] RAMOS, Maciel. Direito e religião: reflexões acerca do conteúdo cultural das normas jurídicas. Meritum: Belo Horizonte, 2010. v. 5. nº 1. [49-76].2010.p.25.

[18] ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2ªed. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008.p.70/71.

[20] JERÓNIMO, Patrícia. Intolerância, Religião e Liberdades Individuais. In Jerónimo, Patrícia (org.) et al. Temas de Investigação para os Direitos Humanos para o Século XXI. Lisboa: Centro de Investigação Interdisciplinar, 2016. [303-328]. p.66/67.

[21] MIRANDA, Maria Bernadete. Aspectos Gerais do Direito Positivo e do Direito Canônico. Revista Virtual Direito Brasil. v. 3. nº 1. São Paulo: 2009. Disponível em: <http://www.direitobrasil.adv.br/artigos/can.pdf>. Acesso em 11/07/2019.p.9.

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