Opinião

Lei 14.133: agente de contratação é carreira de Estado e não de governo

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

1 de março de 2023, 16h19

A nova Lei de Licitações define o agente de contratação como servidor ou empregado público dos quadros permanentes, em forte indicativo de que se trata de servidor/empregado da carreira de Estado, e não da carreira de governo.

Assim:
"Art. 6º (…)
LX – agente de contratação: pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação."

A "nova" figura não é assim tão nova na medida em que o pregoeiro e outros atores licitatórios já desempenham funções muito assemelhadas na administração pública.

O ponto central deste texto é se o agente de contratação poderia ser uma figura ligada às funções de chefia, direção e assessoramento (ou funções chamadas de "gratificadas") previstas no artigo 37, V da Carta Federal ou se deveriam ser carreiras típicas de Estado tais como procuradores, fiscais, médicos, etc.

A diferenciação entre carreiras de Estado e carreiras de governo é muito mais uma obra doutrinária do que uma previsão explícita do sistema jurídico.

Há, porém, uma previsão legal que auxilia na diferenciação. O decreto-lei 6.185/1974 prevê:

"Art. 2º – Para as atividades inerentes ao Estado como Poder Público sem correspondência no setor privado, compreendidas nas áreas de Segurança Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização de Tributos Federais e Contribuições Previdenciárias, Procurador da Fazenda Nacional, Controle Interno, e no Ministério Público, só se nomearão servidores cujos deveres, direitos e obrigações sejam os definidos em Estatuto próprio, na forma do art. 109 da Constituição Federal. (Redação dada pela Lei nº 6.856, de 1980)"

O artigo 109 da Constituição anterior (1967) previa:

"Art 109 – É vedado ao Juiz, sob pena de perda do cargo judiciário:
I – exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo um cargo de magistério e nos casos previstos nesta Constituição;
II – receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, percentagens nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento;
III – exercer atividade político – partidária,"

Apesar do texto da carta anterior prever vedações ao magistrado, o sentido previsto é o de vedar práticas do magistrado que acabem por confundir o público e o privado.

A regra semelhante de nossa Carta atual é o parágrafo único do artigo 95

"Parágrafo único. Aos juízes é vedado:
I – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;
II – receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;
III – dedicar-se à atividade político-partidária.
IV – receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
V – exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração."

Parece que a hermenêutica do conceito de carreira de Estado não pode — evidentemente — restringir-se à interpretação literal e vinculado ao exercício da magistratura e carreiras explicitamente indicadas no artigo 2º do Decreto-lei 6.185/1974.

Se interpretássemos pela literalidade da norma, somente na área federal existiriam carreiras de Estado e figuras patológicas como o "procurador comissionado" ressurgiriam das trevas do atraso civilizatório.

O autor alemão Robert Alexy [1] faz referência à superioridade axiológica dos princípios em relação às normas. Os princípios a serem utilizados para a interpretação do referido decreto-lei são aqueles previstos no artigo 37, "caput" da Constituição Federal e não uma interpretação literal e rasteira da regra/norma do referido decreto-lei.

Opinamos, portanto, pela interpretação extensiva do conceito de carreira de Estado, incluindo tudo aquilo em que pode haver locupletamento através da confusão deliberada entre público e privado. É o caso do agente de contratação já que a carreira que não tem exata reprodução no mundo corporativo/privado. O comprador de uma empresa privada não tem (nem de longe) a mesma carga de responsabilidade que tem um agente de contratação.

Qualquer comparação com o setor privado será mero exercício de elocubração desprovida de fulcro na realidade da nova lei de licitações.

Nesse diapasão é a previsão do novo códex licitatório:

"Art. 8º A licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.
§ 1º. O agente de contratação será auxiliado por equipe de apoio e responderá individualmente pelos atos que praticar, salvo quando induzido a erro pela atuação da equipe." (grifos nossos)

Inobstante nos grotões e cidadezinhas de reduzida inserção civilizatória tenha existido figuras esdrúxulas como procurador comissionado, controlador comissionado e fiscal comissionado tais figuras devem ser relegadas ao lixo histórico diante de sua natureza sociológica de resquícios autoritários da pior qualidade axiológica.

As figuras "comissionadas" em carreiras típicas de Estado demonstram a atualidade de autores como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire, já que há evidente confusão entre público e privado e repetição dos modelos "Casa-Grande e Senzala" com a criação pretendida em urbes retrógradas da figura do "agente de contratação de confiança" ou "agente de contratação gratificado".

O agente de contratação só pode ser um servidor/empregado de carreira sob pena de ressuscitarmos, sob novas vestes, as figuras de do "controlador comissionado", "procurador comissionado" e outras formas de exercício do autoritarismo que faz questão de confundir o interesse público com o interesse pessoal ou partidário do prefeito/governador/presidente. Sérgio Buarque de Holanda faria sua versão jurídica de Raízes do Brasil (editora José Olympio) se descrevesse esse anomalia do direito administrativo que se pretende criar em anacrônicas urbes brasileiras.

Da mesma forma Gilberto Freyre em sua obra Casa-Grande e Senzala (editora José Olympio) teria novo material de estudo diante da reprodução do modelo de cooptação dos agentes de contratação como "mucamas" da casa-grande na função de agentes de contratação.

Mucama era a escrava negra que tinha a "permissão" de trabalhar junto aos brancos fazendo serviços domésticos ou até mesmo como "ama de leite" do filho dos senhores da "casa-grande".

É essa reprodução do modelo escravocrata que se repetiu — não por acaso — em urbes agrícolas e de reduzido desenvolvimento civilizatório com as figuras do "procurador comissionado", "fiscal comissionado" dentre outros anacronismos caipiras. O senhor da Casa-grande estaria "permitindo" figuras de governo que deveriam ser figuras de Estado.

A ideia de criar figuras "comissionadas", gratificadas ou que tenham algum vínculo de confiança com o detentor do poder revela vilipêndio ao artigo 37, V da Constituição que prevê tais figuras para a carreira de governo e não para a carreira de Estado. Fere, ainda, o princípio da impessoalidade, moralidade e eficiência.

Não há argumento jurídico para pessoalizar uma figura do dia a dia do Estado como pretendido por alguns grotões. Só serviria para manter o "dedo" do chefe do Poder Executivo em atividades que não são do seu partido tampouco do seu grupo político mas da coletividade como um todo. Trata-se, aqui, do fenômeno do "patrimonialismo" arraigado no Poder Público de país subdesenvolvido e, substancialmente, feudal.

Tal "pessoalidade" somente serviria para facilitar atos de corrupção e negociações pouco republicanas com licitantes que "bondosamente" deram auxílio financeiro em campanhas políticas e esperam um retorno lucrativo de tal "bondade".

A questão da moralidade e eficiência acaba por desmoronar com a indicação "comissionada" ou "gratificada" do agente de contratação. A imoralidade e a ineficiência também acabam se destacando em razão da "eficácia" que pode ser conduzida pela ótica do licitante/patrocinador de campanha e não pelo interesse público propriamente dito.

Apesar de citado em questão sobre a necessidade de reforma constitucional e não sobre a administração pública, parece adequada o temor de Thomas Paine e Thomas Jeferson [2] sobre o "governo dos mortos sobre os vivos" pois este é o fundamento implícito de tais ideias desprovidas de fundamento constitucional.

Nas acanhadas urbes é comum apelar-se para "argumentos" do tipo "sempre foi assim", "sempre foi comissionado", e variações da mesma preguiça mental institucionalizada e corrupção enrustida.

Aliás, foram "argumentos" desse naipe que criminosos sexuais — também em acanhadas e retrógradas urbes — utilizam para justificar o abuso reiterado de menores em orgias que levaram a CPMI da Pedofilia a investigações em cidades como Porto Ferreira e Catanduva, distopias do respeito à mulher e à dignidade humana.

O próprio autor deste texto é procurador municipal apenas em razão da visão de primeiro mundo do Ministério Público Estadual de São Paulo que conseguiu eliminar a figura do "procurador comissionado" exigindo que os procuradores fossem concursados como manda a regra elementar e republicana do artigo 37, V da CF e o bom senso civilizatório.

Os agentes de contratação devem ter previsão na carreira de Estado e não na carreira de Governo. Com o aumento do grau de responsabilidade de tais agentes, uma solução seria a transformação de compradores/analistas de contração/cargos afins concursados em agentes de contratação com maior número de atribuições e mudança compatível da referência salarial. A simples inclusão de uma "gratificação", "comissionamento" ou figura assemelhada é amesquinhamento da função e tentativa de cooptação do servidor/empregado de carreira para o clientelismo e para a corrupção, verdadeira construção real de uma distopia que mescla a mucama da casa-grande de Gilberto Freyre com a confusão entre o público e o privado de Sérgio Buarque de Holanda.

Nossa opção é pelo Estado democrático de Direito e pelo merecido respeito ao agente de contração da nova Lei de Licitações.

 


[1] "Teoria dos Direitos Fundamentais", Ed. Malheiros, tradução de Virgílio Afonso da Silva, abril de 2008, passim

[2] BRITO, Miguel Nogueira de. A constituição constituinte: ensaio sobre o poder de revisão da constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, apud revista eletrônica do MPF: http://www.prrj.mpf.mp.br/custoslegis/revista_2010/2010/aprovados/2010a_Dir_Pub_Brandao.pdf

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal e autor do livro, Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª Ed. Dialética, 2.023) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (Coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm, 2.023).

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