Opinião

O domínio do fato como teoria probatória: um equívoco a ser superado

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1 de março de 2023, 21h16

Já vimos esse filme, como disse um magistrado de nossa Suprema Corte, cuja fala foi recentemente reproduzida em nota jornalística [1]. Com efeito, no julgamento do chamado mensalão houve largo recurso à teoria do domínio do fato com vistas a atribuir responsabilidades a determinados acusados. Em certa medida, no entanto, foi a teoria utilizada de forma equivocada, como se domínio do fato tivesse algo que ver com prova do envolvimento (participação lato sensu) de alguém nos fatos típicos sob julgamento.

À época, poucos não foram os artigos jurídicos criticando os fundamentos da referida condenação, precisamente no ponto em que se afirmou que a posição de comando na estrutura hierárquica seria suficiente para demonstrar a implicação nos crimes objeto da acusação. Nada menos verdadeiro. Como já tivemos oportunidade de esclarecer logo após aquele julgamento histórico, a teoria do domínio do fato serve exclusivamente à distinção entre autores e partícipes (instigadores ou cúmplices), em nada dizendo respeito à comprovação de que alguém tenha tomado parte em determinada empreitada criminosa [2]. Também Alaor Leite e Luis Greco, este último hoje professor Catedrático da Universidade de Berlim, afirmaram na ocasião, com absoluta propriedade, que "a teoria não serve para responsabilizar um sujeito apenas pela posição que ele ocupa", acrescentando ainda que "a teoria do domínio do fato não condena quem, sem ela, seria absolvido; ela não facilita, e sim dificulta condenações", bem como que "sempre que for possível condenar alguém com a teoria do domínio do fato, será possível condenar sem ela" [3]. Por fim, ainda na mesma época, embora sem se debruçar sobre esse ou qualquer outro caso concreto, o professor Claus Roxin, maior teórico do domínio do fato, esclareceu que "a posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato" [4]. Curioso por fim notar que, mais recentemente, a citada entrevista foi mencionada pelo ministro Ricardo Lewandowski em relevante artigo publicado no mesmo periódico, no qual ele criticou a condenação de dirigentes de empresas, à míngua de provas de sua efetiva participação em fatos típicos, em razão justamente do mau uso da teoria do domínio do fato para justificar condenações indevidas no âmbito empresarial [5].

Pois agora, novamente, torna-se a buscar amparo na celebrada teoria para justificar a imputação de determinados crimes ao ex-presidente Jair Bolsonaro, notadamente daqueles vinculados aos atos golpistas, praticados diretamente por seus seguidores e eleitores. Aqui e ali pululam entrevistas e artigos nos quais se afirma que Bolsonaro poderá ser responsabilizado criminalmente por tais atos, com base na teoria do domínio do fato [4]

A tese é esdrúxula, para dizer o mínimo. Por mais graves que sejam os crimes sob investigação — e são — não se pode lançar mão do nome de uma teoria que em nada diz respeito à prova da prática de crimes e que não foi desenvolvida para que se pudesse renunciar à dogmática penal e a regras de processo penal, de forma a realizar imputações absolutamente descabidas  

Nunca é demais repetir: para que se impute determinado crime a alguém, é preciso verificar se houve ação ou omissão, que, culposa ou dolosamente, tenha causado o resultado.

Nem mesmo a gravidade dos crimes sob investigação, muito menos a pessoa do investigado, deve fazer com que se subverta o direito e se criem teorias de ocasião. É que, a rigor, teorias nunca são verdadeiramente de ocasião. Os investigados vão, o direito criado, mesmo que para determinado caso específico, fica. Não será a partir de invencionices teóricas que o sistema jurídico penal será aperfeiçoado. Que se investigue de forma aprofundada e que Bolsonaro seja punido, por ação ou omissão, seja como autor, seja como partícipe, se provas houver para tanto.

 


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