Dignidade humana

Jornalista é condenada por se referir a mulher trans como 'cara'

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31 de maio de 2023, 18h08

As pessoas têm o direito de escolher a sua identidade de gênero e o respectivo nome social. Com base nesse entendimento, a 4ª Turma Cível e Criminal do Colégio Recursal de Itapecerica da Serra (SP) reformou parte de uma sentença para condenar a jornalista Madeleine Lacsko, colunista do portal UOL, a indenizar uma mulher transexual por falas transfóbicas nas redes sociais.

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Recstockfootage/FreepikTJ-SP condena jornalista Madeleine Lacsko a indenizar mulher trans por falas transfóbicas

Originalmente, a ação foi movida pela jornalista após ser chamada de "transfóbica" no Twitter pela mulher trans. Em primeira instância, a ré foi condenada ao pagamento de indenização por danos morais, de R$ 3 mil, pois o magistrado entendeu que a postagem "extrapolou os limites da licitude e do direito de expressão e livre manifestação".

No entanto, a sentença foi reformada em parte pelo Colégio Recursal que entendeu que Madeleine também deveria indenizar a mulher trans por ter se dirigido a ela no masculino, utilizando a expressão "cara". A decisão foi por maioria de votos para condenar a jornalista ao pagamento de indenização por danos morais de R$ 3 mil e reduzir a reparação a ser paga pela mulher trans para R$ 1,5 mil.

"A recorrida, jornalista, referiu-se à recorrente, mulher transgênero, no gênero masculino, em uma postagem em que a chamou de 'cara', como a própria inicial deixa claro. Essa conduta por si só já é suficiente para concluir que houve grave violação dos direitos da personalidade da recorrente, resultando em sua humilhação perante os usuários das redes sociais", disse o relator, juiz Filipe Mascarenhas Tavares.

Para o magistrado, é "evidente" que os direitos da personalidade da mulher trans, protegidos de forma veemente pelo artigo 5°, X, da Constituição Federal, foram afetados pela postagem da jornalista. Tavares lamentou que o episódio não seja um fato isolado e disse que "as experiências de exclusão, marginalização e preconceito são parte do dia a dia de mulheres e homens trans no Brasil".

"As pessoas trans são sujeitos de direitos, protegidos pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Possuem direitos inerentes à sua personalidade, como o direito à intimidade e ao próprio corpo. A identidade de gênero é uma escolha pessoal, que surge dentro do âmbito subjetivo e é resultado da autonomia individual. Isso significa que cada pessoa tem o direito de decidir o que é melhor para si mesma, sendo essa uma responsabilidade exclusiva do próprio indivíduo", completou.

Além do direito à liberdade de escolha, que deriva do princípio da autodeterminação, o juiz ressaltou que a Constituição, em seu artigo 3º, inciso IV, estabelece como um dos fundamentos da República a promoção do bem de todos, sem discriminação: "A interpretação desse dispositivo constitucional nos leva ao princípio da não-discriminação, que é corolário da dignidade humana, igualdade e liberdade."

Na visão de Tavares, uma sociedade plural é inerente à existência da democracia, ao reconhecer e respeitar a diversidade de formas de se viver e se organizar como comunidade, sem imposição da vontade da maioria hegemônica sobre tudo e todos indiscriminadamente. Para ele, somente assim é possível a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”, como preconiza o artigo 3º, I, da Constituição.

"A promoção do pluralismo é um objetivo fundamental da República e que democracia, na verdade, não é a vontade da maioria se impondo, mas a convivência respeitosa de todos, com especial respeito às minorias. Portanto, onde não há respeito às minorais, não existe democracia. Neste passo, ao contrário do que alega a recorrida em sua petição inicial, o próprio Judiciário já reconheceu o direito de a pessoa transexual ser chamada no seu pronome correto, independentemente do registro civil."

O magistrado destacou que, embora a jurisprudência sobre o assunto seja escassa, a tendência é de defender os direitos humanos das pessoas transexuais e garantir o respeito à sua dignidade conforme estabelecido pela Constituição. Assim, para Tavares, mostra-se incabível a alegação defensiva de exercício de liberdade de expressão como uma justificativa para a prática de transfobia, "que foi exatamente o que praticou a recorrida ao se referir à recorrente como 'cara'".

"Não pode a autora subverter o que é aceitável do que não é dentro dos limites da liberdade de expressão, ajuizando demanda em face da vítima do preconceito que ela mesma perpetra, como se a vítima fosse. Em consequência, esta ação judicial revitimiza a recorrente, que foi atacada em seu direito mais básico de identidade como pessoa humana (direito a um nome)", explicou Tavares.

Conforme o relator, em nenhum momento a jornalista afirmou que usa a expressão “cara” para se referir a outras mulheres, o que poderia ser demonstrado com a juntada de outras publicações. Ele também disse que a autora se referiu à mulher trans como "réu" em duas ocasiões, "inclusive defendendo expressamente que tem o direito de chamá-la no masculino (o que demonstra que não houve mero erro de digitação)".

"Não há como rejeitar que houve prática de transfobia no uso proposital da expressão 'cara' para se referir à recorrente. Isso não significa, é bom que fique claro, que todas as vezes em que uma mulher trans for chamada de 'cara' haverá, por si e automaticamente, a pecha de transfóbico. Há um contexto fático, explicado ao longo deste voto, que deixa claro que na situação aqui discutida a expressão 'cara' foi usada com fins transfóbicos pela recorrida para atacar a recorrente", concluiu.

O relator votou para afastar a condenação da mulher trans e para condenar somente Madeleine ao pagamento de indenização de R$ 10 mil. Porém, ele ficou vencido. Os outros integrantes da turma julgadora decidiram reduzir a condenação da mulher trans para R$ 1,5 mil, além de fixar em R$ 3 mil a reparação a ser paga pela jornalista. Pela decisão, as publicações de ambas no Twitter também deverão ser apagadas.

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Processo 1008671-58.2022.8.26.0152

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