Opinião

Implantação de pisos salariais para uma federação heterogênea

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30 de maio de 2023, 6h06

Os efeitos das políticas públicas podem, paradoxalmente, contrariar as boas intenções que as inspiraram. É crucial, portanto, que os formuladores dessas políticas, especialmente no campo social, tenham um cuidado meticuloso. Um exemplo que ilustra essa realidade pode ser a implementação do novo piso salarial nacional da enfermagem. Assim como já ocorreu com a fixação da taxa de juros na Carta Magna original, de 1988, estabelecer um valor salarial único em todo o país pode ter consequências indesejadas. Entre elas, a deterioração das relações de trabalho, a piora nas condições de emprego e a desorganização das entidades que atuam na área da saúde, especialmente as de menor porte e aquelas presentes em locais mais remotos ou regiões distantes do país.

Ancorada na Emenda Constitucional nº 124/2022, a Lei 14.434, do mesmo ano, fixou o piso salarial nacional em R$ 4.750 para os enfermeiros do país. Para técnicos de enfermagem e para auxiliares, os pisos variam entre 70% e 50% desse valor.

Diversas análises e simulações dos economistas alertaram para os impactos, sobretudo sobre as finanças de estados e municípios, além de entidades filantrópicas e empresas privadas de saúde de menor porte. Acionado, o Supremo Tribunal Federal (STF), lucidamente, pediu aos interessados estudos mais aprofundados.

Segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais — 2021), as ocupações afetadas pela nova lei representam 1.408.584 profissionais enfermeiros apenas do setor privado, sendo que 55,2% (ou 778.233) se encontravam abaixo do novo piso. O destaque maior é dos profissionais técnicos de enfermagem, que estão 68,7% (ou 559.124) abaixo do piso estipulado. Essa fonte de dados indica que o custo da implantação do novo piso seria de cerca de R$ 12,5 bilhões anuais.

As entidades privadas seriam as mais impactadas, enfrentando um aumento anual de despesas da ordem de R$ 4,8 bilhões. Por sua vez, as entidades da administração pública teriam que desembolsar, adicionalmente, cerca de R$ 4 bilhões. As entidades sem fins lucrativos sofreriam um impacto financeiro de aproximadamente R$ 3,5 bilhões. Considerando que o Sistema Único de Saúde (SUS), além de fornecer serviços por meio da rede pública, também contrata serviços das redes privada e filantrópica, e o valor total adicional necessário excederia os R$ 7,9 bilhões anuais.

Para financiar esses custos adicionais, foi promulgada a Emenda nº 127, em 22 de dezembro de 2022. Essa emenda autoriza o orçamento federal a realocar recursos de fundos originalmente destinados a outras finalidades, a fim de compensar as perdas financeiras dos governos regionais, das entidades filantrópicas e dos prestadores de serviços que atendem pelo menos 60% de seus pacientes pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Com a promulgação da Lei 14.581 em 11 de maio de 2023, o Fundo Social se comprometeu a transferir R$ 7,3 bilhões para sustentar os pagamentos aos profissionais do SUS. No entanto, três questões principais geram um clima de forte tensão:

a) A incerteza sobre a continuidade dessas transferências, que agora estão sob o escrutínio do controle de expansão do gasto fiscal;

b) A maneira como esses recursos se refletirão nos contracheques dos trabalhadores;

c) A pressão exercida por trabalhadores que já recebiam salários acima do piso e por profissionais de outras ocupações que demandam aumentos salariais.

Além disso, as estimativas indicam que os valores necessários excedem os R$ 7,9 bilhões, e outros cálculos sugerem montantes ainda maiores.

É importante chamar a atenção para o fato de que não se trata de um aumento de custos homogêneos, porque a implementação do piso afeta de forma bastante desigual a rede de saúde como um todo. Na maioria dos Estados brasileiros com renda per capita inferior, a distância dos salários atuais em relação ao piso é elevada, e vai requerer pesados aportes de recursos. Podemos dizer que há uma questão federativa subjacente.

Num quadro geral, as indicações eram de grandes riscos de geração de turbulências no setor privado, onde poucas garantias estão postas. Vale notar que há grande presença de clínicas e hospitais de pequeno porte dentre as entidades que registram grande massa de diferenças entre os salários pagos e o novo piso. Os estados como Roraima, Piauí, Pernambuco e Sergipe, por exemplo, serão os mais afetados e poderão ser perdidos mais que 70% dos postos de trabalho, nas ocupações relativas ao piso.

Um pequeno ensaio com base na Rais, mostra que, se todos os vínculos do setor privado, que superam 50% de aumento de custos na implantação do piso fossem encerrados, teríamos então cerca de 245 mil postos de trabalho perdidos, nada menos que 27,7% dos vínculos existentes atualmente.

A tabela a seguir ilustra o montante de novos recursos que cada unidade federativa precisará alocar para manter seus trabalhadores empregados e para cumprir os valores do piso salarial. Para exemplificar o caso mais crítico, a Paraíba, no setor privado e nas ocupações de interesse, terá que mobilizar um valor adicional de 59% além dos pagamentos de salários atuais.

Reprodução

Por fim, a disparidade regional entre o piso salarial e os salários atuais é bastante acentuada. Este fenômeno não surpreende, pois é inerente a uma federação como a brasileira, estruturada para administrar diferenças notáveis em aspectos políticos, sociais e econômicos entre suas regiões e até localidades. Há tempos isso tem sido equacionado com soluções que dão respostas diferentes para problemas muito diferentes.

O exemplo do salário básico da economia é um caso histórico. Como é inegável e inevitável que empregadores tenham condições muito diferentes para pagar salários em distintos locais, foi estabelecida uma política de salário-mínimo que faculta a cada estado fixar um valor superior ao nacional, para pagamento de tais valores.

Em face da vasta heterogeneidade regional do Brasil e das incertezas sobre os impactos nos custos, principalmente considerando as condições sustentáveis de financiamento do piso salarial de enfermagem, uma alternativa viável seria adotar a mesma abordagem do salário mínimo nacional. Essa opção permitiria uma diferenciação regional e, talvez, até mesmo entre as entidades contratantes, facilitando assim o progresso rumo a uma remuneração mais justa, garantindo segurança para o trabalhador e responsabilidade para com o sistema público.

Promover uma modulação do processo de implantação do piso nacional é possível. Pode-se fixar um prazo de, por exemplo, doze anos, para que pisos estaduais realizem a convergência para o piso nacional. Desta forma, as diferenças regionais seriam reconhecidas, mas a dinâmica do setor saúde estaria ganhando movimento no sentido da implantação de uma valorização ao profissional, que é pertinente.

Caso um estado, em uma avaliação individual, identifique que possui condições para acelerar o processo, será concedida a ele a opção de promover uma expansão mais acentuada do seu piso salarial através de legislação estadual.

Vale frisar que a política de regionalização do salário mínimo conseguiu acomodar a realidade de uma federação heterogênea. As decisões no sentido da modulação de políticas conseguiram colocar os objetivos no horizonte palpável, sem destruir os atores sociais e econômicos.

Por que então não se pode repetir soluções bem-sucedidas neste caso?

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