Defasagem institucional

'Momento da magistratura federal é delicado e exige atuação de associações'

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29 de maio de 2023, 7h46

A nova presidente da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Ajufesp), juíza federal Taís Ferracini, da 14ª Turma Recursal da Justiça Federal de São Paulo, demonstra incômodo com a atual situação da categoria, a qual ela afirma que está passando por um "momento bastante delicado".

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"Dentre as carreiras jurídicas, a magistratura é a que possui a maior carga de responsabilidade, de trabalho e de restrições à vida comum. Diante desse quadro, a carreira precisa compensar esse estado de coisas. Seja por aspectos remuneratórios, seja por outros aspectos que não dizem respeito à remuneração, mas a uma valorização pessoal, ao prestígio da carreira."

Entre as pautas que serão prioritárias para a associação, diz a magistrada em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, estão as defasagens remuneratórias dos juízes federais, a melhoria estrutural e de mão de obra dos tribunais, que sofrem com a "impossibilidade de novas nomeações que decorre de limites impostos pelo teto de gastos", além de questões referentes ao teletrabalho na magistratura. 

Ferracini, magistrada desde 2006, já foi juíza estadual também no TJ-SP e atuou na Turma Nacional de Uniformização (TNU) entre 2018 e 2020. Empossada em 15/5 para chefiar a Ajufesp pelos próximos dois anos, ela é a segunda mulher a assumir o principal cargo da associação, que elegeu duas juízas consecutivamente na antiga e na atual gestão. Para a juíza federal, se valores como a igualdade de gênero fossem intrínsecos à sociedade, não haveria necessidade para essa discussão. 

"Esse fato é objeto de análise e de atenção porque ainda estamos perseguindo essa igualdade. Então, ao trazer finalmente mulheres nas posições de comando nas associações, não só na presidência, mas em outros cargos de direção, e todas engrossando as fileiras de dirigentes associativas, portanto, sua participação vai sendo cada vez mais naturalizada", argumenta. 

Leia a entrevista completa:

ConJur — Qual é o principal desafio ao assumir a presidência da Ajufesp e quais questões estão sendo mais discutidas dentro da organização?
Taís Vargas Ferracini de Campos Gurgel — O momento pelo qual passa a magistratura federal é bastante delicado, e ele vem exigindo uma atuação mais enérgica das associações. Há um desafio, portanto, pessoal para mim, que é essa mudança de paradigma de trabalho, que no geral, no dia a dia do juiz, é bastante solitário. E o trabalho da associação exige muita articulação política. Há também desafios externos que se avizinham com problemas múltiplos na carreira federal, que vão desde defasagens remuneratórias decorrentes da ausência de reajustes inflacionários, que perderam muito seu poder de compra, à ausência do sentido de carreira que temos pela estruturação atual. 

Na verdade, na carreira do juiz federal não há progressão funcional baseada no tempo de serviço. Além disso, a gente tem outros problemas de escassez de mão de obra, de piora estrutural, também decorrente de problemas de orçamento, um sentimento de falta de respaldo e de valorização do juiz pela cúpula do Judiciário.

ConJur —  E  na Justiça Federal em SP e MS, quais pautas têm se mostrado mais urgentes?
Taís Vargas Ferracini de Campos Gurgel — Há um problema generalizado de perda estrutural, em especial de mão de obra de servidor, principalmente da saída desses por exonerações e por aposentadorias, e uma impossibilidade de novas nomeações que decorre de limites impostos pelo teto de gastos. Essa perda está prejudicando a prestação jurisdicional adequada e célere, em especial nos juizados federais, que tiveram uma explosão de distribuição após o término da competência delegada nas justiças estaduais em relação ao julgamento de ações previdenciárias.

Temos ainda uma outra questão que diz respeito ao teletrabalho, que mostrou-se uma alternativa viável para melhor distribuição dos recursos, com economia de gastos, e ganhos de produtividade. É uma solução que vinha se mostrando bastante moderna e adequada. Entretanto houve a superveniência de uma regulamentação pelo CNJ sobre o tema, que no nosso modo de ver não atentou para as peculiaridades de cada tribunal e, especificamente no nosso caso, não permite os mesmos ganhos balanceados ao interesse público. 

ConJur — Qual a importância de duas mulheres assumirem a posição consecutivamente na organização?
Taís Vargas Ferracini de Campos Gurgel —  Importante ressaltar que essa gestão que assumiu agora é a primeira em que o número de juízas suplanta o de juízes dentro da diretoria.  Em um mundo em que a igualdade de gênero passa a ser um valor intrínseco, nenhum desses fatos deveria ser objeto de análise. É objeto de análise porque ainda estamos perseguindo essa igualdade.

Então, ao trazer finalmente mulheres nas posições de comando nas associações, não só na presidência, mas em outros cargos de direção, e todas engrossando as fileiras de dirigentes associativas, portanto, sua participação vai sendo cada vez mais naturalizada dentro da organização. A sua visão de mundo, as suas particularidades, também vão sendo inseridas de forma paulatina e natural dentro dessa gestão. 

ConJur — Dentro da magistratura ainda persistem comportamentos machistas e sexistas? 
Taís Vargas Ferracini de Campos Gurgel — O machismo e o sexismo dentro da magistratura já foram muito maiores. Em um passado não tão distante, as mulheres sequer eram aprovadas nos concursos de magistratura. No TJ-SP, um tribunal bastante conservador, as primeiras mulheres foram somente aprovadas no ano de 1980, que é recente se formos pensar em toda a luta da mulher pela igualdade, por sua inserção no mercado de trabalho. Ainda mais se pensarmos que no TJ existem concursos desde o ano de 1922.

Dentro do TRF-3, em relação à ascensão ao segundo grau, para o cargo de desembargador, nosso tribunal sempre teve uma representatividade muito grande. Recentemente três mulheres foram promovidas a desembargadoras, duas por merecimento e uma por antiguidade, e foi pela primeira vez formada uma lista tríplice por merecimento exclusivamente por juízas, o que é um marco muito importante. Mas ainda vemos nos pequenos atos os machismos do dia a dia, que são posturas que a gente percebe. Condescendência em relação às mulheres, apontamentos muitas vezes voltados às características físicas femininas ao invés de uma valorização da competência intelectual. Mas entendo que não é diferente do que acontece na sociedade.

ConJur — Como foram os últimos anos para a Ajufesp, o que evoluiu? E o que esperar dos próximos anos, quais pautas serão prioritárias e o que será discutido nesta nova gestão?
Taís Vargas Ferracini de Campos Gurgel — Cada gestão trouxe novos olhares, então vejo uma sucessão que está em constante evolução. Particularmente nessa última gestão, da (ex-presidente e juíza federal) Marcelle Carvalho, foram estreitados laços de comunicação com os associados. Foi uma gestão que se aproximou mais dos associados e também buscou se aproximar também da sociedade.

Para além das questões corporativas de carreira, houve um olhar muito apurado para questões sociais de alta relevância e que exigiam posicionamento institucional, como a rápida adesão da Ajufesp e de sua diretoria em relação à carta pela democracia ("Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito", lida no Largo São Francisco no ano passado). Para a nova gestão, existe um olhar cuidadoso para a situação atual da carreira, que está bastante difícil. Temos também uma preocupação especial em manter esse protagonismo em pautas que são institucionais, de relevância nacional. 

ConJur — Há um movimento de juízes federais para trocar a carreira na magistratura por outras carreiras de Estado? A que a senhora atribui esse desinteresse de alguns pela carreira na Justiça Federal?
Taís Vargas Ferracini de Campos Gurgel — A gente vem observando esse movimento de troca de carreira por magistrados. De magistrados antigos, altamente qualificados. É uma perda para a sociedade. Esse movimento era impensável até um tempo atrás, em que a magistratura era a carreira mais desejada entre as carreiras jurídicas de estado. E não existe só abandono para outras carreiras de Estado, mas também um abandono para ingresso na iniciativa privada. Esse êxodo é preocupante.

Dentre as carreiras jurídicas, a magistratura é a que possui  a maior carga de  responsabilidade, de trabalho e de restrições à vida comum. Diante desse quadro, a carreira precisa compensar esse estado de coisas. Seja por aspectos remuneratórios, seja por outros aspectos que não dizem respeito à remuneração, mas a uma valorização pessoal, ao prestígio da carreira. Então ou se faz uma reestruturação para dar à magistratura federal um sentido de carreira, para torná-la atrativa, para que com isso ela possa segurar e manter magistrados qualificados e experientes que possam fazer seu trabalho para a sociedade, ou nós continuaremos a perder esses talentos. 

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