Embargos culturais

Processo Constitucional Brasileiro, de Georges Abboud, um livro diferente

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

28 de maio de 2023, 8h00

"Processo Constitucional Brasileiro", de Georges Abboud, é um livro diferente, exatamente no que esse adjetivo de dois gêneros exprime enquanto conceito: não é semelhante, igual, idêntico; é distinto.

Spacca
O autor inicia com inusitada referência a Paul Klee (1879-1940), suíço de nacionalidade alemã, artista plástico versátil, associado de algum modo a tendências que variam do expressionismo ao pontilhismo, do surrealismo à Bauhaus. Abboud explora tema central do direito constitucional (e, portanto, um livro que se espera dogmático) principiando com referências a um pintor, aproximando direito e arte, no sentido de que "a arte é um farol que ilumina um caminho na construção da vigília". Para o autor, que é um jovem e bem preparado professor e advogado brasileiro, o direito, "como tantos outros produtos do espírito humano [seria] uma ferramenta de comprometimento com a manutenção dessa vigília".

Segue (ainda na parte introdutória) com referências a Vassily Kandinsky (1866-1944) e a Murits Cornelis Escher (1898-1972); é do quadro "Construções Impossíveis", desse último pintor, que Abboud fixa a capa desse livro diferente. Acostumados com livros de direitos que reproduzem colunas gregas e romanas ou martelos ou togas, temos, na expressão do canadense Marshall McLuhan a confirmação de que o meio é também mensagem.

Uma parte introdutória vincula o constitucionalismo ao processo civilizatório. Em passo inusitado (o que reforça a dissemelhança desse livro com qualquer outro no assunto) o autor retoma personagem de Chico Buarque de Holanda (Geni, da Ópera do Malandro) como indício comparativo e representativo da Constituição.

Se a cidade culpava Geni por tudo o que de errado e ruim havia, suplicando ajuda quanto tudo estava quase perdido, na mesma medida a cidade moderna culpa a Constituição por todos os nossos males, deprecando auxílio quando um mal maior se abate sobre nós. A comparação é inesperada e desafiadora.

O autor já havia tratado do tema em artigo publicado na RT (vol. 996/2018), quando dissertou sobre mitos (um mito é uma mentira) que marcam nossa percepção de Constituição, a exemplo de sua extensão, que é lugar comum entre os jogadores de pedra na Geni. Ela é maldita; a rainha dos detentos, das loucas, dos lazarentos, dos moleques do internato; mas, e a deitar com homem tão nobre, preferia amar com os bichos.

Abboud é corajoso; captou com metáfora uma prostração que sintetiza um capítulo de ciência política. Ainda em tema de mitologia jurídica Abboud discorre na parte introdutória sobre pesada crítica que indevidamente pesa sobre o positivismo, isto é, que teria sido a fórmula jurídica que propiciou o pesadelo nazista. O assunto foi tratado (e esclarecido) por Rodrigo Borges Valadão (Positivismo Jurídico e Nazismo) bem como no capítulo IV de livro de minha autoria com Ingo Sarlet (História Constitucional da Alemanha).

A jurisdição constitucional é o ponto central do livro. O autor apresenta-nos uma teoria geral do controle de constitucionalidade, opondo defensores e críticos desse arranjo institucional, com foco em suas funções principais: extensão e limites do poder público, reconhecimento e garantia de direitos de minorias, operacionalidade da proteção dos direitos humanos (dispostos na Constituição e nos Tratados Internacionais), a par da preservação da autonomia do Direito, no limite, a defesa da própria Constituição.

O autor em seguida explica os vários modelos de controle de constitucionalidade. Há ponto que chama a atenção pela clareza dos conceitos. Define sentenças interpretativas (distinguindo interpretação conforme à Constituição e arguição de nulidade sem redução de texto), trata das sentenças manipulativas (quando a Corte comporta-se como se legislador fosse), bem como do aliciante tema das sentenças aditivas, que Abboud define como “aquelas nas quais a Corte declara a ilegitimidade constitucional de uma disposição legislativa dada, na parte em que não expressa certo conteúdo [que} deveria estar expresso e contido no texto legislativo para que (…) fosse conforme a Constituição”.

Nesse passo invoca a autoridade de Carlos Blanco de Morais e de Augusto Cerri, com exemplos da casuística italiana. Esse capítulo vale o livro, especialmente na parte referente à classificação das sentenças aditivas.

Aqueles que advogamos nos tribunais superiores nos encantamos com o capítulo relativo aos direitos fundamentais e as ações constitucionais. O autor explora a Reclamação, um tema difícil, que conta com uma história (interna) própria cujo ponto central é o alargamento que está contido no art. 988 do CPC de 2015. Abboud explica, com base em Nelson Nery Júnior, que o CPC retomou nesse ponto disposições da Lei n. 8.038 de 28 de maio de 1990, com plena vigência, que institui normas procedimentais para processos que correm no STF e no STJ.

O tema do controle de constitucionalidade é explorado também no contexto da arbitragem. Cuida do controle em face da Administração Pública; nesse tópico há alusões sobre o que o autor denomina de “desaplicação da lei” o que se desdobra na explosão da litigância que há contra o Estado. Essa patologia é incontrolável, e chega a ser esquizofrênica, quando o Estado litiga contra si mesmo. Trata-se da litigância intragovernamental. Eu já vi execução da Fazenda Nacional em face do IBAMA, além de conflitos opondo MDA, INCRA, MME, ICMBio, ANEEL, EMGEPRON, FUNASA, INSS e tutti quanti.

Abboud conclui o livro com um excerto sobre ativismo judicial e juristocracia. A leitura é facilitada com resumos sintéticos que fecham os capítulos. O livro tem mais de 1.700 páginas, exige leitura calma, do estilo dos herbívoros, hostil à leitura apressada, do estilo dos carnívoros.

É, na essência, uma obra de doutrina, expressão que tomamos emprestado da Teologia Sistemática, enquanto apresentação coerente e codificada de um campo do saber. É um livro que ensina e que instrui. Nesse ponto também, é diferente e inusitado, comprovando que ainda há qualidade e bom gosto no mercado editorial de Direito.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!