Ambiente jurídico

O processo administrativo climático

Autor

  • Gabriel Wedy

    é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

27 de maio de 2023, 14h44

O processo administrativo climático segue, em suas características essenciais, o processo administrativo ambiental.1 Contudo, sua finalidade predominante é regular os procedimentos de aplicação de sanções2, por exemplo, instaurados contra: os emissores de gases de efeito estufa em geral; os desmatadores; os destruidores de mangues e dunas; os empresários rurais que praticam queimadas; os agropecuaristas que exercem o agro de modo insustentável ambientalmente, com técnicas rudimentares e medievais, entre outras situações específicas, várias das quais podem ser observadas nas atividades minerárias.

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Nesta senda, como referido em doutrina, "não se pode compreender a atividade punitiva do Estado sem que prevista em lei em sentido formal, uma vez que a imposição de penalidades administrativas a particulares significa atingi-los em suas atividades, seus bens e seu patrimônio, restringindo, portanto, direitos individuais".3 Ademais, a legalidade estrita “exige que tanto o tipo delitivo administrativo quanto a correspondente sanção estejam previstos em lei formal”.4

Em razão disso, o STF5 e o STJ6 assentaram que é vedada ao IBAMA a aplicação de sanção prevista unicamente em portarias, por violação ao princípio da legalidade. Ademais, também se entendeu que é defeso ao IBAMA impor penalidade decorrente de ato tipificado como crime ou contravenção, ainda que a conduta também configure infração administrativa, cabendo ao Judiciário referida medida. De notar, porém, que essa orientação não afasta a tríplice responsabilidade penal, civil e administrativa. Os acórdãos relacionam-se com a contravenção do art. 26 do revogado Código Florestal (Lei nº 4.771/65), o qual previa, além de prisão simples, pena de multa, que não poderia ser aplicada pelo IBAMA em razão de seu caráter penal.7

As infrações administrativas ambientais (de cunho climático) encontram previsão legal no art. 70 da Lei nº 9.605/98,8 pelo qual: “Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente”. Assim, essa regra definiu a infração ambiental administrativa de forma ampla e genérica, tratando-se de um “tipo infracional aberto”, semelhante às normas penais em branco, que se concretizam pela só violação ao ordenamento jurídico-climático, dispensada a prova do dano.9 A respeito, o STJ decidiu, em precedente que pode ser aplicado por infração a legislação climática, que

(…) a sanção penal ou administrativa ambiental pode se referir tanto à ocorrência do dano em si mesmo (= resultado da conduta degradadora) quanto, à alternativa ou cumulativamente, à violação de exigências técnicas para o exercício da atividade ou do procedimento operacional do empreendimento (= iter da conduta degradadora).10

No plano federal, as infrações administrativas estão especificadas atualmente no Decreto nº 6.514/2008,11 nos arts. 24 a 93, os quais repetem os tipos penais da Lei nº 9605/98 e preveem outras condutas infracionais. A redação dos dispositivos ensejou discussão sobre o atendimento ao princípio da legalidade, diante da ausência de descrição em lei de condutas infracionais, cuja função ficou reservada a atos infralegais.

Contudo, o STJ firmou posição no sentido de que a norma regulamentar, combinada com o disposto no art. 70 da Lei nº 9.605/98, confere toda a sustentação legal necessária à imposição da pena administrativa, não se podendo falar em violação do princípio da legalidade estrita.12 Assim, nada obsta que o legislador ordinário “apenas estabeleça as condutas genéricas (ou tipo genérico) consideradas ilegais, bem como o rol e limites das sanções previstas, deixando a especificação daquelas e destas para a regulamentação, por meio de Decreto”.13

Semelhante controvérsia emergiu da infração prevista no art. 14, inc. I, da Lei nº 6.938/81, para se definir se a expressão “não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental(na qual está incluído a estabilidade do clima)” atenderia ao princípio da legalidade. Da mesma forma que decidiu quanto ao art. 70 da Lei nº 9.605/98, o STJ reputou que o art. 14, inc. I, da Lei nº 6.938/1981, por si só, constitui fundamento suficiente para embasar a autuação de infração, afastando o argumento de que se trataria de norma genérica.14

A identificação do agente que pratica a infração administrativa climática coincide com o conceito de poluidor do art. 3º, inc. IV, da Lei nº 6.938/81, considerado como “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”. Avultam-se as figuras do infrator que comete queimadas, desmatamentos, constroi em zonas protegidas como mangues e dunas, gera emissões irregulares de gases de efeito estufa em sua atividade industrial, empresarial e de agronegócio. No campo do Direito Administrativo Sancionador não se requer a capacidade civil do infrator/climático para que se possa infligir-lhe penalidade, embora o menor de 18 anos deva estar assistido ou representado. Contudo, o sujeito tem de possuir capacidade de discernimento no momento da prática da infração.15

Convém mencionar que o órgão ambiental pode autuar outro ramo do Poder Público, independentemente da pessoa política a que pertencer, pela prática de infração climática, pois inexiste hierarquia entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Assim, p. ex., um órgão ambiental municipal pode lavrar auto de infração climático contra uma autarquia federal.

A aplicação da sanção administrativa/climática se sujeita ao princípio da intranscendência das penas, de modo que, diversamente da responsabilidade civil, não pode ser cobrada de terceiro que não o próprio infrator. Não é outra a orientação do STJ, aplicável a uma infração climática, ao afirmar que a “responsabilidade civil por dano ambiental é subjetivamente mais abrangente do que as responsabilidades administrativa e penal, não admitindo estas últimas que terceiros respondam a título objetivo por ofensas ambientais praticadas por outrem”.16 Desse modo, v.g., o caráter propter rem da obrigação ambiental, como definido na súmula n. 623 do STJ, não se aplica às multas e outras penalidades administrativas, mas apenas à responsabilidade civil.

A vinculação do Poder Público ao direito fundamental ao meio ambiente equilibrado e o princípio da proporcionalidade na perspectiva da vedação de proteção insuficiente (ou da obrigatoriedade da intervenção estatal na proteção ambiental e do sistema climático) permitem concluir que a apuração de infração climática pelo órgão competente é obrigatória e não se encontra no campo da livre discricionariedade da Administração Pública. Essa ideia é reforçada pelo art. 70, §3º, da Lei nº 9.605/98, ao dispor que a “autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena de corresponsabilidade”.

O STJ tem afirmado a “inexequibilidade de vigilância ubíqua”, a inviabilidade de se imputar ao Estado a “posição de segurador universal da integralidade das lesões sofridas por pessoas ou bens protegidos”, ou a irrazoabilidade de exigir que a Administração, “por carecer de onipresença”, “impeça todo e qualquer ato de infração a lei”. Porém, a Corte Superior entende que “incumbe ao Estado o dever-poder de eficazmente e de boa-fé implementar as normas em vigor”, sendo mister responsabilizar o Estado, em certas situações, por omissão, de forma objetiva e solidária, mas com execução subsidiária, “notadamente quando não exercida, a tempo, a prerrogativa de demolição administrativa ou de outros atos típicos da autoexecutoriedade ínsita ao poder de polícia”.17

Em outro acórdão, estabeleceu o STJ que é dever de todos os entes federativos o exercício do poder de polícia ambiental diante de uma infração ambiental, sob pena de responsabilidade objetiva por dano ambiental, mesmo causado por quem tenha contribuído indiretamente para a ocorrência da lesão.18 Igualmente, afirmou o STJ que a Administração Pública é solidária, objetiva e ilimitadamente responsável por danos urbanístico-ambientais decorrentes da omissão do seu dever de controlar e fiscalizar, na medida em que contribua, direta ou indiretamente, tanto para a degradação ambiental em si mesma como para o seu agravamento, consolidação ou perpetuação, tudo sem prejuízo da adoção, contra o agente público relapso ou desidioso, de medidas disciplinares, penais, civis e no campo da improbidade administrativa.19

O processo administrativo climático instaurado para apuração de infrações e, eventualmente, para aplicar as penalidades cabíveis, obviamente tem de ser exercido nos limites do devido processo legal (CF, art. 5º, inc. LIV), assegurado o direito ao contraditório e ampla defesa (inc. LV; Lei nº 9.605/98, art. 70, §4º), vedada a utilização de provas obtidas por meios ilícitos (inc. LVI). Aplica-se subsidiariamente, na esfera federal, a Lei do Processo Administrativo (Lei nº 9.784/99), a qual confere a oportunidade de defesa, contraditório, participação, comunicação e o direito à prova.

Em relação ao direito à prova no processo administrativo, o STF entendeu que: “Mostra-se claramente lesiva à cláusula constitucional do ‘due process’ a supressão, por exclusiva deliberação administrativa, do direito à prova”.20 Também é obrigatória a motivação21 suficiente da decisão administrativa, na forma do art. 50 da Lei nº 9.784/99, sob pena de nulidade.

No âmbito federal, o processo administrativo climático é regulado pelo Decreto nº 6.514/08, o qual estabelece regras detalhadas sobre autuação, formalidades, formas de intimação, nulidades e convalidação (arts. 96-100); defesa administrativa (arts. 113-117); instrução e julgamento (arts. 118-126); e recursos administrativos (arts. 127-133). Importante referir que, consoante orientação jurisprudencial consolidada, o autuado tem direito ao recurso administrativo, afigurando-se inconstitucional subordinar seu exercício a depósito prévio ou a caução.22 Não cabe recurso da órbita municipal para a estadual, nem desta para a federal ou para o CONAMA, pois o SISNAMA não suprime a federação e a autonomia dos entes federativos.

Constatada a prática de uma infração climática, a autoridade competente tem o dever de agir – preventiva e repressivamente – para impedir e/ou sancionar a violação de normas ambientais e climáticas. Essa atividade tem de ser sopesada com outros princípios e direitos fundamentais, notadamente com o princípio da segurança jurídica. O instituto da decadência e da prescrição, embora não se aplique ao campo da responsabilidade civil por danos climáticos, tem incidência na seara da responsabilidade administrativa por infrações às normas ambientais climáticas, pois a leniência e a inércia por parte dos agentes públicos atritam com o princípio da proporcionalidade.23 Portanto, a violação da legislação climática dá ensancha a apuração da responsabilidade administrativa climática que é regida por normas procedimentais atinentes ao processo administrativo tradicional.


1 Em relação ao tema, ver: WEDY, Gabriel; MOREIRA, Rafael. Manual de direito ambiental: de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019.p. 211-254.

2 A respeito do processo administrativo ambiental, ver: BURMANN, Alexandre. Fiscalização ambiental. Teoria e prática do processo administrativo para apuração de infrações ambientais. Londrina: Editora Thoth, 2022.

3 GARCIA, Flávio Amaral; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A principiologia no direito administrativo sancionador. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, n. 37, jan./fev./mar. 2014. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-37-JAN-2014-FLAVIO-AMARAL-DIOGO-NETO.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2022. p. 12.

4 Ibid. p. 13.

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Pleno, ADI 1823 MC, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 30.04.1998, DJ 16.10.1998.

6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2ª T., AgRg no REsp 1164140/MG, Rel. Min. Humberto Martins, j. 13.09.2011, DJe 21.09.2011.

7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 1ª T., AgRg no REsp 1284780/ES, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 02.08.2016, DJe 16.08.2016.

8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2ª T., REsp 1137314/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 17.11.2009, DJe 04.05.2011.

9 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 357-361.

10 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2ª T., REsp 1142377/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 18.03.2010, DJe 28.02.2012.

11 O Decreto nº 6.514.2008 revogou o Decreto nº 3.179/99, que antes regulamentava o processo administrativo ambiental federal.

12 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 1ª T., REsp 1080613/PR, Rel. Min. Denise Arruda, j. 23.06.2009, DJe 10.08.2009.

13 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2ª T., REsp 1137314/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 17.11.2009, DJe 04.05.2011).

14 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, REsp 996.352-PR, Rel. Min. Castro Meira, j. 5.2.2013, informativo nº 515 do STJ.

15 CAPPELLI, Sílvia; MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Direito Ambiental. 7. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013. p. 172-173.

16 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 1ª S., EREsp 218.781/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 09/12/2009, DJe 23/02/2012).

17 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2ª T., REsp 1376199/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 19.08.2014, DJe 07.11.2016).

18 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2ª T., AgRg no REsp 1417023/PR, Rel. Min. Humberto Martins, j. 18.08.2015, DJe 25.08.2015).

19 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2ª T., REsp 1071741/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 24/03.2009, DJe 16.12.2010.

20 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RMS 28517 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª T., j. 25.03.2014.

21 Sobre o dever de motivação das decisões administrativas, vide: FREITAS, Juarez; MOREIRA, Rafael Martins Costa. Decisões administrativas: conceito e controle judicial da motivação suficiente. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 17, n. 91, p. -, maio/jun. 2015.

22 Súmula vinculante do STF nº 21: “É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”. Súmula do STJ nº 373: “É ilegítima a exigência de depósito prévio para admissibilidade de recurso administrativo”.

23 MOREIRA, Rafael Martins Costa. Prescreve em cinco anos, contados do término do processo administrativo, a pretensão da Administração Pública de promover a execução da multa por infração ambiental. Teses jurídicas dos tribunais superiores: Direito Ambiental I. Norma Sueli Padilha (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 287-311. p. 295.

Autores

  • é juiz federal, membro do grupo de trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, do CNJ, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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