Opinião

Full disclosure, 90 anos como pilar da regulação do mercado de capitais

Autor

  • Rafael Andrade

    é doutorando e mestre em Direito dos Negócios pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) associado ao L. Dias Advogados professor convidado em cursos de pós-graduação do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e IBMEC/SP e ex-assessor do Colegiado e assistência técnico na área de supervisão de empresas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

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26 de maio de 2023, 11h17

A história das sociedades anônimas (ou companhias) é bastante turbulenta. Desde o surgimento das primeiras sociedades com características semelhantes ao que hoje conhecemos como sociedades anônimas  qual seja, a Companhia das Índias Orientais, fundada no século 17 pelo governo holandês e que, surpreendentemente para os dias de hoje, gozava de privilégios estatais como a emissão de própria moeda e declaração de guerra , esse tipo societário está envolto em disputas, fraudes e bolhas, suscitando paixões das mais acaloradas [1].

Exemplo famoso de suspeição com essas sociedades veio de Adam Smith, para quem a biografia das companhias não teria muitos capítulos: para algum sucesso, em sua opinião, elas dependeriam da concessão de privilégio de exclusividade e, ainda assim, serviriam apenas para exercer atividades produtivas cujas operações poderiam "ser reduzidas ao que se chama rotina, ou a tal uniformidade de método que comporte pouca ou nenhuma variação" [2]. Felizmente para os que estudam e advogam com as sociedades anônimas, o economista que revolucionou a teoria econômica, ao menos neste ponto, tropeçou.

Reprodução
Reprodução da Companhia das Índias Orientais do governo holandês

Mas a apreensão de Smith, assim como de outros que se insurgiram contra as sociedades por ações ao longo dos anos, não é de todo descabida. Afinal, as suas duas características mais marcantes  a limitação de responsabilidade de seus sócios e a divisão de seu capital social em papéis voltados à livre negociação  romperam com importantes paradigmas das formas associativas da época, em que o patrimônio dos sócios, muitas vezes pertencentes a um mesmo núcleo familiar, respondia ilimitadamente pelas obrigações perante os credores.

A possibilidade de livre negociação de ações, aliás, deu azo à toda sorte de especulação. É bastante conhecido, por exemplo, a bubble mania vivenciada nas primeiras décadas do século 18, na Inglaterra, na esteira do então (aparente) sucesso envolvendo a South Sea Company, cujas ações com valor nominal de 100 libras eram vendidas, em janeiro de 1720, por 129 libras; em maio, por 550 libras; em agosto, por 1.050 libras, mas que, em outubro, após o estouro da bolha, caíram para o valor de 140 libras. Uma história de bolha especulativa marcada por euforia, pânico, assimetria informacional e corrupção. E tudo ao mesmo tempo em que, na França, o banco fundado por John Law  talvez o "homem mais rico da história" e inventor do sistema monetário moderno  acentuava o seu declínio [3].

As fraudes e bolhas em que as companhias foram inseridas ensejaram a criação de diversas leis restringindo, ou até proibindo, sua constituição. Na Inglaterra, por exemplo, a Bubble Act, editada em 1720 com o (alegado [4]) intuito de conter o avanço de companhias especulativas, proibiu a sua constituição naquele país  sua revogação somente ocorreu em 1825.

Em muito, o resgate das companhias do limbo a que haviam sido relegadas, mesmo após seu início no mínimo turbulento, se deu por um imperativo fático. Em decorrência dos efeitos da revolução industrial, os comerciantes, agora no papel de industriais, não mais conseguiam atender às suas constantes necessidades de arrecadação de recursos para investimento no desenvolvimento de suas atividades por meio do uso das ferramentas jurídicas então disponíveis para tanto, como a reunião de recursos com outros industriais (na forma de sociedades de pessoas) ou a obtenção de empréstimos para financiamento. Foi assim que, ante a crescente necessidade de capital, as companhias reavivadas pelos particulares.

O retorno não foi sem percalços ou desconfianças: muitas jurisdições passaram a exigir que a criação de companhias fosse precedida de uma autorização prévia estatal, o que foi sendo paulatinamente abandonado. É o caso do Brasil [5], cujo Código Comercial de 1850, inspirado no modelo francês, previa que "as companhias ou sociedades anônimas (…) só podem estabelecer-se por tempo determinado, e com autorização do Governo, dependente da aprovação do Corpo Legislativo quando hajam de gozar de algum privilégio, e devem provar-se por escritura pública, ou pelos seus estatutos, e pelo ato do Poder que as houver autorizado" (artigo 295), exigência que foi abolida três décadas depois, em 1882, pela Lei nº 3.150.

Full disclosure como pilar da regulação do mercado de capitais
No início do século 20, seguindo a linha protecionista adotada por muitas jurisdições após as inúmeras fraudes envolvendo as sociedades anônimas, praticamente todos os estados norte-americanos possuíam, em alguma medida, leis que ficaram conhecidas como blue sky laws, visando à proteção dos investidores do mercado de capitais e que, em alguns casos, exigiam prévia autorização administrativa para a emissão de ações.

Ocorre que, como se sabe, a presença dessas leis não foi suficiente para evitar a especulação que culminou no crash de 1929 da Bolsa de Nova York [6]. No cenário de depressão e desemprego que seguiu àquele evento, assumiu como presidente Franklin Roosevelt, que tomou posse sob a promessa de introdução de medidas voltadas à recuperação da economia norte-americana (o chamado New Deal), dentre elas, uma regulação mais firme do mercado de capitais em âmbito federal.

Nesse contexto, travou-se uma disputa entre dois grupos acerca do melhor caminho a ser seguido. De um lado, havia os defensores da edição de uma lei federal nos moldes das blue sky laws, com a introdução de regras exigindo o prévio controle estatal do mérito dos negócios que se pretendia financiar por meio do mercado de capitais; de outro, na linha da doutrina do Justice Brandeis de que "a luz do sol é o melhor desinfetante", estavam aqueles que defendiam a proteção dos investidores por meio da publicidade das informações sobre os emissores.

A escolha foi um meio-termo entre as posições: ao mesmo tempo em que se decidiu pela criação de um órgão federal para a supervisão do mercado de capitais a Securities and Exchange Commission ou SEC  e a exigência de registro perante o órgão regulador, entendeu-se que não lhe caberia avaliar o mérito dos empreendimentos, mas tão-somente zelar para que os emissores disponibilizassem aos investidores todas as informações necessárias à correta avaliação e precificação do investimento. De posse dessas informações, então, caberia ao investidor tomar sua decisão quanto ao negócio.

Na mensagem enviada ao Congresso submetendo sua proposta de lei  que se transformou no Securities Act de 1933 , escreveu o presidente Roosevelt:

"Apesar da existência de muitas leis estaduais, o público no passado tem sofrido graves perdas pelas práticas que não são nem éticas nem honestas por parte de muitas pessoas e companhias que vendem valores mobiliários.
Certamente, o Governo Federal não pode e não deve tomar qualquer ação que possa ser entendida como aprovando ou garantindo que os valores mobiliários emitidos são bons, no sentido de que o seu valor será mantido ou de que as propriedades que representam produzirão lucros.
Temos, entretanto, a obrigação de insistir que cada emissão de novos valores mobiliários a serem vendidos no comércio interestadual seja acompanhada de plena publicidade e informação, e que nenhum elemento essencialmente importante e ligado à emissão fique encoberto para o público comprador.
Esta proposta adiciona à regra antiga do caveat emptor a doutrina ulterior de "que o vendedor também se comporte". Ela põe sobre o vendedor o ônus de dizer toda a verdade. Ela deve impulsionar as negociações honestas em valores mobiliários e, portanto, fazer retornar a confiança pública.
A finalidade da legislação por mim sugerida é proteger o público com o mínimo possível de interferência nos negócios honestos. (…) O que procuramos é a volta a entendimento mais claro da antiga verdade de que aqueles que administram bancos, companhias e outras entidades que manipulam ou usam dinheiro de outras pessoas são agentes fiduciários agindo por conta de terceiros." [7]

Está aí, portanto, a origem do que hoje conhecemos como o sistema do full disclosure, pedra angular da atual regulação do mercado de valores mobiliários, adotado nas mais diversas jurisdições ao redor do globo, inclusive, no Brasil. E, mesmo após tantos anos, o que se percebe é que, apesar de todos os percalços vivenciados esse segmento mundo afora e dos inúmeros desvio identificamos nas últimas décadas, o princípio de que a ampla transparência representa a base fundamental da regulação do mercado de capitais continua cada vez mais consolidado.

 


[1] Para uma narrativa a respeito da evolução das sociedades anônimas, ver LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 3-22.

[2] SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: Investigação Sobre sua Natureza e suas Causas. Vol II. Trad.: Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 225.

[3] Para uma descrição sobre a fascinante história de John Law, bem como dos percalços da South Sea Company, vide STATHERN, Paul. Uma Breve História da Economia. Trad.: BORGES, Maria Luiza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 39-66.

[4] Adicionando uma reviravolta à história das companhias, Ron Harris conclui, em estudo de 1994, que o verdadeiro propósito da Bubble Act foi impedir a constituição de outras companhias para evitar o direcionamento de investimentos para outras sociedades que não a South Sea Company. Segundo o autor: "Thus the wording of the act and the contemporary context of interests and discourses favor the third explanation: that the BA [Bubble Act] was a special-interest legislation for the SSC [South Sea Company], which controlled its framing and its passage" (HARRIS, Ron. The Bubble Act: Its Passage and Its Effects on Business Organization. The Journal of Economic History, vol. 54, nº 3, 1994, pp. 623, disponível em www.jstor.org/stable/2123870).

[5] A exigência de prévia autorização estatal para a constituição das sociedades anônimas já constava de decreto promulgado em 1849, o qual Mariana Pargendler considera ser a primeira lei societária do Brasil. Para uma exposição sobre a evolução histórica do direito societário brasileiro, vide PARGENDLER, Mariana. Evolução do Direito Societário: Lições do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 41-119.

[6] Para uma ótima narrativa sobre os eventos que culminaram na quebra da bolsa, vide o sempre lembrado "The Great Crash, 1929", de John Kennedy Galbraith (Mariner Book).

[7] LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 138-139.

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  • é doutorando e mestre em Direito dos Negócios pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), associado ao L. Dias Advogados, professor convidado em cursos de pós-graduação do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e IBMEC/SP e ex-assessor do Colegiado e assistência técnico na área de supervisão de empresas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

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