O artigo invisível do Direito Societário
23 de maio de 2023, 21h41
A sociedade limitada é um tipo societário que admite flexibilidade, sendo veículo tanto de pequenas empresas como de organizações que recebem investimento via equity. Tanto é assim que existem limitadas que controlam companhias de capital aberto com faturamento multimilionário, como, por exemplo, BTG Pactual, BRProperties e Engie, possuindo obrigações previstas na Lei n° 11.638/2007.
Contudo, apesar da flexibilidade, tem se aplicado disposições da sociedade simples à sociedade limitada de forma indiscriminada. Não se está tratando aqui das remissões legais do capítulo das limitadas, mas de uma aplicação direta decorrente da visão do capítulo da sociedade simples no Código Civil como equivalente às disposições gerais do Direito Societário no Código Comercial [1] [2].
Abrem-se parênteses: não é novidade que identificar a norma aplicável à sociedade limitada acaba sendo mais difícil do que deveria. Para além das normas dispositivas, a quantidade de remissões aliada à possibilidade de opção da regência supletiva cria um sistema que gera mais dúvida do que certeza [3]. Sobre o assunto, Gustavo Saad Diniz interpreta que a técnica legislativa utilizada foi o estabelecimento de "regramentos supletivos superpostos dedutivamente" [4].
Independentemente da linha doutrinária, parece existir consenso no sentido de que as normas específicas do tipo têm preferência na interpretação. Se o próprio capítulo da sociedade limitada estabelece uma regra, não há, portanto, necessidade de se buscar a aplicação das "regras gerais" da sociedade simples e tampouco, caso seja esta a opção, de eventuais "regras supletivas" da sociedade anônima.
Ocorre que o artigo 1.029 do Código Civil, que trata da retirada na sociedade simples, vem sendo aplicado à sociedade limitada a despeito da existência de uma norma específica do tipo, qual seja o artigo 1.077, também do Código Civil. De forma similar com o que acontece na anônima, o dispositivo prevê que a retirada da sociedade limitada se condiciona a determinadas hipóteses de dissidência (modificação do contrato social, fusão ou incorporação de sociedades). Então, em resumo, enquanto a primeira norma dispõe que o direito de retirada é imotivado, a segunda, ao contrário, dispõe que o direito de retirada precisa ter motivo.
Apesar da norma específica, cada vez mais, na doutrina e jurisprudência, reconhece-se o direito de retirada imotivada na sociedade limitada. O STJ, inclusive, sem observar a previsão do artigo 4º da LINDB, decidiu pela aplicação do artigo 1.029 do Código Civil à limitada regida supletivamente pela LSA por força do artigo 5º, XX, da CF [5].
Nas sociedades de prazo indeterminado, o entendimento é que a retirada imotivada constituiria um direito potestativo do sócio da sociedade limitada à luz dos princípios da autonomia da vontade e da liberdade de associação. Para uma maior objetividade, opta-se por deixar de reproduzir o voto. De toda sorte, ignorando a flexibilidade da sociedade limitada, a aplicação do dispositivo foi fundamentada a partir da suposta dicotomia estanque entre a sociedade limitada, vista como de pessoas, e a S/A, vista como de capitais, ainda que, ao final, tenha-se reconhecido suposta flexibilidade da companhia fechada de caráter familiar.
Em sentido contrário à tendência, argumenta-se que o artigo invisível não só deve ser aplicado por ser uma norma expressa do tipo, mas, além disso, em virtude da sua relevância para a responsabilidade limitada.
Analisando o surgimento do capital social, Alfredo Lamy Filho expõe que, de início, tratando-se de sociedades de responsabilidade ilimitada, não havia problema maior para o credor caso o sócio confundisse o patrimônio pessoal com o da sociedade. Entretanto, "nas sociedades limitadas, o problema muda de figura, porque, estando os sócios liberados das obrigações da sociedade, quando os negócios não iam bem, sobrevinha o risco de o administrador tentar pagar com os bens sociais o que investira na sociedade, antes de quitados os credores" [6].
A irrevogabilidade das prestações e a intangibilidade do capital social servem para proteção dos credores da sociedade, sobretudo quando os sócios não respondem pelas dívidas com os respectivos patrimônios pessoais. Uma vez que se admite a retirada imotivada dos sócios da sociedade limitada, o que implica, por sua vez, a redução do capital social, prejudicam-se os credores, considerando a consequente redução dos bens sociais para a quitação da dívida e a impossibilidade de se atingir o patrimônio pessoal do sócio retirante.
Interpretando o princípio da intangibilidade, Eduardo Secchi Munhoz identifica o que denomina como “princípio de estabilidade patrimonial da sociedade”, disposição que, em acepção ampla, cuida de todas as possíveis transferências patrimoniais da sociedade aos sócios, incluindo, no caso, o direito de retirada em hipóteses taxativas. Em análise da companhia fechada, conclui que "a consequência econômica do ocaso do princípio da intangibilidade do capital […] é o aumento do custo do investimento e do crédito, ou mesmo sua inviabilização, exatamente o contrário do que a lei societária pretendeu ao regular o instituto" [7].
Sendo assim, ainda que seja ignorado, o artigo 1.077 do Código Civil cumpre a função de diferenciar o regime aplicável à sociedade limitada, porque, enquanto o sócio desta tem responsabilidade restrita ao valor de suas quotas, o sócio da sociedade simples possui responsabilidade subsidiária. É relevante, portanto, considerando que não poderá executar os bens pessoais, que o credor da sociedade limitada tenha garantia que haja estabilidade patrimonial para cumprimento das obrigações, razão pela qual os sócios não podem se retirar de forma imotivada.
Ainda que a liberdade de não permanecer associado se trate de garantia fundamental, não pode ser interpretada isoladamente, sendo necessária a devida ponderação a partir da liberdade econômica, da força vinculante dos contratos e, principalmente, da estabilidade patrimonial das sociedades.
[1] Considerando a consolidação jurisprudencial histórica do entendimento de que o contrato social é primeiro complementado pelas regras gerais das sociedades comercais para, se necessário, apenas depois, admitir-se a aplicação da Lei das S/A, Paula A. Forgioni defende que "as regras das sociedades limitadas completam-se sempre com aquelas gerais postas na disciplina das sociedades simples, e somente após chamam a ‘regência supletiva’ das sociedades anônimas" (FORGIONI, Paula A. A unicidade do regramento jurídico das sociedades limitadas e o artigo 1.053 do CC: usos e costumes e regência supletiva. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº 147, jul./set. 2007, p. 11).
[2] Fábio Ulhôa Coelho, por outro lado, divide as sociedades limitadas: 1) limitadas sujeitas à regência supletiva das sociedades simples e 2) limitadas sujeitas à regência supletiva das sociedades anônimas, não se aplicando, por isso, as normas da sociedade simples. A sujeição a um subtipo ou a outro dependeria apenas de previsão contratual (COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 406-408).
[3] Artigo 1.053, CC. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.
Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.
[4] Diniz observa o seguinte escalonamento: a) regras do tipo; b) regras do contrato; c) regras de ordem pública e direitos indisponíveis; d) regras gerais das sociedades simples, aplicáveis como provedoras do sistema; e) regras supletivas da LSA, de acordo com a compatibilidade. Identifica a existência de regras das sociedades simples aplicáveis às limitadas mesmo que o regramento supletivo seja o das sociedades anônimas (DINIZ, Gustavo Saad. Os quatro estratos de integração das regras societárias brasileiras. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 163, set. 2012, p. 65).
[5] REsp 1.839.078/SP, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 9/3/2021, DJe de 26/3/2021.
[6] LAMY FILHO, Alfredo. Capital social. In: Temas de S/A. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 180 (palestra realizada em 25/9/1997 na EMERJ).
[7] MUNHOZ, Eduardo Secchi. A tipologia societária e sua função econômica: dissolução parcial da sociedade anônima fechada, princípio da intangibilidade do capital e caráter institucional da empresa. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Processo societário. v. 4. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 334.
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