Opinião

Prefeito deve negociar termos da prestação do saneamento básico

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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26 de maio de 2023, 15h19

Durante o curso sobre técnicas de negociação, perguntei ao instrutor: "E se a outra parte se nega a negociar? O que podemos fazer?". Ele pensou por um momento, refletiu e afinal respondeu nos seguintes termos: "Olha, é uma situação difícil. Mas se poderia dizer, entre outras coisas, que, se a parte está ali à mesa, é porque as opções do mundo lá fora são piores, o que indica que a solução negociada tende a ser mais eficiente", de modo que se poderia tentar persuadir a outra parte a buscar a negociação. A pergunta que fica é: "mesmo assim, poderia existir o dever de negociar e refazer as bases contratuais?".

Poderia.
Com a edição do Novo Marco do Saneamento Básico (Lei nº 14.026/2020), houve alterações muito além daquelas promovidas na Lei nº 11.445/2007, porque uma nova racionalidade se instaurou, requalificando notadamente a forma com que a prestação de serviço operará. A lógica dos contratos de programa feitos com companhias estaduais gradualmente deveria ser substituída por contratos precedidos de licitação — na linha do artigo 175 da Constituição (não que outras formas de prestação não sejam admitidas, como aquelas feitas diretamente, por autarquias, por entidades transnacionais etc.).

Contudo, ajustes de toda ordem estavam em curso no momento em que tal marco normativo foi editado, o qual determinou que todos eles incorporassem os elementos necessários para a universalização do serviço. Então, principalmente os artigos 10-A, 10-B e 11-B determinaram que os negócios jurídicos em vigor fossem adaptados para cumprir com as metas arrojadas de dispensação de água potável e tratamento do esgoto sanitário. E o legislador deixou claro que essa é uma obrigação das partes contratantes — não há espaço para um juízo de oportunidade e conveniência. Enfim, as partes devem colaborativamente procurar a melhor forma para adaptar os pactos vigentes de acordo com as cláusulas mandatórias por disposição legal.

Por conseguinte, poder-se-ia perguntar se é possível que legislação posterior altere o regime jurídico de contratos já firmados e em curso? Isso não prejudicaria o ato jurídico perfeito? Para responder a este questionamento, podemos tomar em conta a experiência italiana e francesa, que consideram que um negócio jurídico-administrativo possui duas secções com naturezas jurídicas distintas: (1) uma parte estatutária e (2) outra parte negocial. Os contratos de programa e similares possuem estas mesmas duas partes: a primeira relacionada ao atingimento de metas de expansão, de qualidade, de redução perdas etc., e a parte negocial relacionada às condições da proposta e matriz de risco, caso esta última exista. Logo, não há de se falar em direito adquirido ou ato jurídico perfeito quanto à secção estatutária do contrato, tema justamente pertinente às disposições dos artigos 10-A, 10-B e 11-B. As obrigações legais ali previstas não se referem à parte negocial, apesar de certamente refletir no seu conteúdo.

Mas se porventura os pactos não forem objeto de aditivo a incorporar aquele mencionado caderno de encargos previsto em lei, qual seira o efeito jurídico programado pela norma? A Lei nº 11.445/2007, alterada pelo novo marco, diz que os contratos são considerados precários.

Então, vamos imaginar a seguinte cena: um prefeito, detentor da titularidade do serviço público de saneamento básico, nega-se a negociar e a incluir as metas e demais obrigações dos artigos 10-A, 10-B e 11-B. Até mesmo recebe propostas da companhia estadual, mas ou fica silente, ou faz contrapropostas ilegais ou absurdas, gerando dolosamente a precariedade do ajuste pela não incorporação das ditas obrigações. O que fazer em uma situação como esta?

TV Brasil/Reprodução
TV Brasil/Reprodução

Há de se notar que os contratos ou ajustes de que estamos a falar são de longo prazo e, portanto, ditos evolutivos. Significa dizer que, ao longo da sua execução, necessariamente serão remodelados ou renegociados a se adaptar às modificações jurídicas ou econômicas eventualmente suportadas. Em 2020, com a edição da Lei nº 14.026, um novo estatuto incidiu sobre os pactos, impondo sua redefinição coordenadamente — ocorreu o que em direito privado se chamaria de hardship. Nesta situação, o legislador poderia ter optado por presumido a inserção das cláusulas, ou seja, ele poderia ter coativamente incorporado um caderno de encargos nos contratos por via da lei. Mas não: preferiu deixar que as partes concertadamente chegassem a um modelo negocial que pudesse customizar a realidade da prestação do serviço e os interesses dos contratantes. Por isso que adentrar no âmbito da negociação não é uma opção, é um dever.

Então, caso uma das partes se veja diante de situação de oposição negocial indevida, no limite o prejudicado poderia pleitear uma negociação mandatória e, permanecendo a resistência, pretender subsidiariamente uma sentença determinativa. Em um primeiro momento, o magistrado poderia tentar a mediação dos contratantes, o que poderá ser conduzido por um observador. Caso não se chegue a um consenso, poderia começar a estabelecer diretrizes de acordo com as balizas normativas citadas e com a finalidade do ajuste. Em outras palavras, se as partes não chegarem a um acordo, não se nega a possibilidade de o recalcitrante sofrer os efeitos de uma sentença injuntiva ao negócio, acoplando nele o que determina a lei.

Guardadas as devidas proporções, foi o que aconteceu no caso E.D.F v. Shel, julgado pela Cour d'Appel de Paris: o magistrado determinou que as partes negociassem para compor a controvérsia contratual, sob pena de se sujeitarem a uma sentença determinativa. No caso, os litigantes chegaram a um acordo antes de ser exarada a mencionada decisão injuntiva. Os juízes justificaram esse poder pela vontade declarada pelas partes ao pactuarem o contrato, restando claro, pela inserção da cláusula de hardship, que queriam ver a relação contratual perdurada no tempo. O mesmo aconteceu no arrêt Huard, de 3/11/1992.

Há de se perceber que, aqui, o caso é ainda mais amplo, porque o negócio jurídico feito para a prestação do serviço de saneamento básico baseia-se em uma teia contratual envolvendo o titular do serviço, o prestador, os usuários, a eventual agência reguladora etc. Logo, os efeitos de uma decisão viriam a resolver um problema da coletividade, notadamente relacionado às metas de universalização, o que justifica com mais vigor a necessidade de se adaptar os pactos em curso.

Ao final, respondo à pergunta feita inicialmente: os ajustes vigentes para a prestação do saneamento básico foram requalificados pelos artigos mencionados, os quais pautam às partes para que ajam com lealdade, colaboração e boa-fé. Seriam "sentimentos" ou condutas pressupostas a qualquer contratante, mas que foram, no limite, impostas pela Lei nº 14.026/2020. Logo, quem se nega negociar ou cria condições adversativas para tanto deve suportar os efeitos do abuso do direito ou da atuação contra os termos da lei.

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