Chefe da Defensoria Pública do Rio quer lutar pelos direitos das mulheres
26 de maio de 2023, 7h34
Patrícia Cardoso é a primeira mulher a chefiar a Defensoria Pública do Rio de Janeiro nos 68 anos de história da instituição. Ela pretende aproveitar a oportunidade para reforçar a atuação do órgão na defesa dos direitos de mulheres. Além disso, visa a criar um ambiente de trabalho interno com igualdade de oportunidades. Entre os cargos internos de sua gestão, 75% são ocupados por mulheres.
Patrícia também quer aumentar a eficiência do trabalho da Defensoria, com o uso de ferramentas tecnológicas. Ela ainda deseja aprimorar a defesa das prerrogativas e valorizar a carreira dos defensores públicos.
A atuação estratégica da Defensoria é um eixo que Patrícia busca fortalecer. Nos últimos tempos, o órgão vem atuando junto ao Supremo Tribunal Federal em casos de importância nacional. Em uma ação movida pela Defensoria do Rio, a Corte decidiu que as audiências de custódia devem ser feitas em até 24 horas em todas as modalidades de prisão. Em outro caso, a instituição está participando do debate de medidas para reduzir a letalidade policial no estado. A entidade também vem agindo para garantir vagas na rede pública de ensino à população carente.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Patrícia Cardoso ainda explicou as mudanças no trabalho da Defensoria implementadas durante a epidemia de Covid-19 e comemorou as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça de considerar ilegal o reconhecimento fotográfico e pessoal que desrespeitar o procedimento previsto no Código de Processo Penal.
Leia a entrevista:
ConJur — Quais serão os principais objetivos da sua gestão à frente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro?
Patrícia Cardoso — Nós vamos manter a centralidade de atuação na defesa dos direitos humanos, dos direitos das mulheres. Não poderia ser diferente. Eu sou a primeira defensora pública-geral mulher, depois de quase 70 anos da Defensoria do Rio, uma instituição que é majoritariamente feminina. Entre os cargos internos de gestão, 75% serão ocupados por mulheres. Eu não poderia ter um discurso da defesa dos direitos das mulheres se eu não praticar isso concretamente na minha gestão.
Também buscamos fortalecer a educação em direitos, levando-a para mais territórios. Isso foi um divisor de águas nos últimos anos, e vamos investir cada vez mais nisso, com trocas com a sociedade civil, usando como ponte a nossa ouvidoria externa. Outro eixo é o aperfeiçoamento das rotinas de trabalho, com o uso de ferramentas tecnológicas. Vamos criar uma secretaria só para tratar desse tema. Há a necessidade de se aprimorar a defesa das prerrogativas e valorizar a carreira dos defensores públicos. Mas vamos ter que fazer uma ginástica quanto a isso, porque o Rio de Janeiro está em regime de recuperação fiscal. Então temos uma limitação legal quanto ao preenchimento de cargos novos.
A consolidação da autonomia financeira, política e orçamentária da Defensoria Pública também é determinante para que possamos desenvolver um bom trabalho nos próximos anos. Sem orçamento forte, não conseguimos construir nenhuma pauta. Agora, com orçamento forte, podemos ter independência para fazer articulações com outros órgãos do Sistema de Justiça, outras instituições públicas e privadas. Além disso, nunca podemos deixar de olhar para a estrutura física dos órgãos. Por mais que tenhamos introduzido o atendimento à distância, temos todas as nossas sedes abertas, funcionando presencialmente. E há muitas estruturas que precisam ser melhoradas, especialmente no interior do Rio, para podermos proporcionar locais adequados de trabalho para os defensores e equipes de apoio e para receber os assistidos.
Buscamos um investimento cada vez maior no aprimoramento na atuação estratégica da Defensoria. Não só no Rio e nos tribunais superiores, mas também com a iniciativa privada, agências reguladoras, órgãos do Executivo. Atuação estratégica não significa somente trabalhar bem no processo judicial. É priorizar toda a pauta de resolução extrajudicial de conflitos, com mediação e conciliação. Ainda visamos ao aprimoramento da comunicação institucional e à oferta de cursos de capacitação, tanto internos quanto abertos ao público.
ConJur — Que práticas de trabalho implementadas pela Defensoria durante a epidemia de Covid-19 vieram para ficar?
Patrícia Cardoso — A Defensoria vem de um atendimento historicamente presencial. Foram quase 70 anos assim. Até que veio a epidemia. E, em um final de semana, nós transformamos nosso atendimento presencial no atendimento à distância. Foi uma loucura. Nós criamos um comitê de crise e colocamos toda a operação no virtual. Passamos a atender o público pelo WhatsApp, e-mail, telefone. Tudo para não interromper os serviços da Defensoria, que são essenciais.
A Defensoria voltou totalmente ao trabalho presencial em março de 2022. Mas algumas formas de atendimento chegaram para ficar. Então, a Defensoria faz muito atendimentos pelo aplicativo Verde. Ele iria entrar em operação depois, mas tivemos que acelerar por causa da epidemia. Mas o atendimento presencial é muito grande, até porque há muitos excluídos digitais.
Hoje, também há grande interação virtual com os outros órgãos do Sistema de Justiça. Por isso, criei uma secretaria que vai olhar estudar as novas tecnologias e rotinas de trabalho que vieram depois da epidemia. Mas o defensor continua trabalhando como sempre trabalhou. Mesmo quando os processos eram todos físicos, os defensores sempre trabalharam em casa e no órgão. E continuamos a fazer isso. Os defensores têm que atender o público presencialmente. Mas há servidores que podem trabalhar remotamente.
ConJur — As audiências virtuais e por videoconferência trouxeram prejuízos ao contraditório e à ampla defesa?
Patrícia Cardoso — Houve um momento difícil durante a epidemia. Hoje, a audiência virtual só acontece com a concordância do defensor. O defensor avalia se, naquele caso, pode ocorrer prejuízo para o contraditório e para a ampla defesa. Se o prejuízo for grande, ele pode se opor à realização do ato de maneira virtual. Alguns assistidos pedem para fazer virtual, para não precisarem se deslocar para o tribunal. Em algumas situações, a tecnologia beneficia o caso e as partes. Em outras, pode trazer prejuízos para as partes. Cabe ao defensor entender quando é necessário pedir para as audiências serem feitas de forma presencial.
ConJur — A Defensoria Pública do Rio de Janeiro enviou ao STF propostas para a redução da letalidade policial. Quais são algumas das medidas mais importantes nesse sentido?
Patrícia Cardoso — A Defensoria é amicus curiae nessa ação, não parte [o autor é o PSB]. O autor enviou algumas propostas. A Defensoria e outras tantas instituições que atuam como amicus curiae corroboraram essas propostas. E isso está sob avaliação do ministro Edson Fachin.
Hoje há uma letalidade no Rio de Janeiro muito grande, não só da população, mas também de policiais. É preciso chegar a uma solução estratégica do problema. A Defensoria tem um compromisso com a defesa dos direitos humanos, por isso que entrou como amicus curiae nessa ação. Existem determinações judiciais de cumprimento de algumas medidas. E nós estamos acompanhando o caso de maneira atenta, dentro do rigor da lei, da técnica jurídica. Sempre estamos abertos para contribuir, para trazer ideias e soluções. Esse é o papel de uma instituição pública do porte da Defensoria, com o respeito que tem, até por parte do governo do estado. Existe uma relação de respeito e de diálogo.
ConJur — Mas há algumas medidas específicas que a senhora considera especialmente importantes para reduzir a letalidade policial? Por exemplo, a instalação de câmeras nas fardas dos policiais.
Patrícia Cardoso — A questão das câmeras é uma determinação do ministro Fachin, proferida com base em uma lei estadual do Rio, de iniciativa do próprio Executivo. A medida foi inspirada em experiências positivas, como, por exemplo, a do estado de São Paulo, onde a letalidade policial caiu após a implementação de câmeras nos uniformes de policiais. Tudo isso foi considerado no processo. A Defensoria está acompanhando. E essa medida pode vir a diminuir a letalidade policial, sim. Pelo menos o Supremo, o Executivo e o Legislativo do Rio entendem dessa maneira.
ConJur — Por ordem do Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público do Rio de Janeiro deve ser informado previamente de operações policiais nas comunidades cariocas. Porém, tal medida não tem sido suficiente para conter abusos. Para mudar esse cenário, há quem defenda que a Defensoria Pública também seja notificada das ações das forças de segurança e as acompanhe in loco. A medida poderia ajudar a reduzir a letalidade policial?
Patrícia Cardoso — Segundo a Constituição, quem controla a atividade policial não é a Defensoria Pública, é o Ministério Público. Mesmo não sendo a nossa função constitucional, o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e a Ouvidoria externa têm dado assistência à população das favelas logo após as operações policiais. Então nós temos estado nesses locais quando acontecem operações. Não acompanhamos as operações porque não somos notificados delas, mas as comunidades entram em contato com a nossa Ouvidoria externa e cria-se um fluxo de acompanhamento.
A Defensoria está em contato constante com a sociedade civil organizada para resolver diversos assuntos. Não só relacionados a operações policiais. Nós fazemos um trabalho muito delicado dentro dos limites legais. Temos um relacionamento pacífico e respeitoso com as outras instituições, somos ouvidos por elas. Nosso trabalho é respeitado, independentemente da obrigatoriedade de notificação sobre as operações policiais ou não. A população conta com a gente, e isso é muito importante.
ConJur — As grandes operações policiais no Rio são quase sempre dirigidas contra o tráfico de drogas. Uma eventual descriminalização ou até legalização das drogas ajudaria a diminuir a letalidade policial?
Patrícia Cardoso — Essa é uma solução simplista para um problema complexo. Em minha opinião pessoal, não existe essa relação. Não tem como dizer que a descriminalização das drogas acabaria com a violência nas comunidades. O problema é muito maior. É um problema talvez de correição legal, talvez de alinhamento das instituições, da função de cada uma. Também é um problema da sociedade em vivemos, da exclusão social, da pobreza, da falta de equipamentos públicos, da falta de estudo.
ConJur — Por outro lado, há quem argumente que a polícia tem que ser rigorosa com supostos bandidos. Nesse sentido, operações policiais violentas ajudariam a reduzir a criminalidade. Como a senhora avalia esse argumento?
Patrícia Cardoso — A polícia tem que ser técnica, tem que trabalhar com inteligência. Se houver a ameaça de morte de um policial em uma operação, ele está protegido pela legítima defesa. A Defensoria não é um órgão que aponta como deve ou não ser a atuação das forças de segurança. O Estado brasileiro, o Executivo, as secretarias de Segurança devem trabalhar com inteligência e responsabilidade. Nós sempre partimos da premissa de que esses órgãos fazem um trabalho técnico. Não cabe à Defensoria avaliar se o policial tem que ser mais rigoroso ou menos rigoroso, mais violento ou menos violento em uma operação. Essa avaliação cabe ao Executivo, às secretarias de Segurança e às forças policiais.
Por outro lado, a Defensoria atende policiais e suas famílias. São todas pessoas que merecem proteção do Estado, que muitas vezes procuram a Defensoria Pública. E nós devemos sempre promover a defesa intransigente dos direitos humanos.
ConJur — Como a senhora avalia a decisão do STF de que as audiências de custódia devem ser feitas em até 24 horas em todas as modalidades de prisão, proferida na Reclamação 29.303, de autoria da Defensoria do Rio? Esse é o tipo que ação estratégica que a Defensoria do Rio deseja aumentar?
Patrícia Cardoso — A audiência de custódia é instrumento que busca resguardar direitos fundamentais, sendo direito subjetivo da pessoa presa. É necessário que haja a sua utilização em todas as modalidades de prisão, contribuindo para minimizar eventuais violências, quer de natureza física ou psicológica, que porventura possam ocorrer no momento da prisão. Em assim sendo, dar tratamento igualitário a todas as modalidades de prisão, e, a todas as pessoas presas reforçam e reafirmam direitos que norteiam o tema.
Permitir que o juiz tenha contato direto com a pessoa custodiada em todas as modalidades de prisão, bem como que verifique a validade do mandado, é garantia de extrema importância a todas as pessoas. Nesse sentido, as audiências de custódias não podem se cingir apenas às pessoas presas em flagrantes, sendo necessário que sejam atingidas todas as modalidades de prisão. Inclusive, as normas internacionais não estabelecem qualquer distinção quanto à espécie prisional.
ConJur — A Defensoria do Rio costuma apontar que há abusos em audiências de custódia e manutenção exagerada de prisões. Como avalia essa questão?
Patrícia Cardoso — A Defensoria está presente em todas as audiências de custódia de seus assistidos. As audiências de custódia são todas presenciais. E qualquer abuso que o defensor do caso concreto identifique, ele está ali pronto questionar. Temos quatro defensores designados por dia, um para cada sala de audiência de custódia, acompanhando todas as sessões de pessoas que desejam ser assistidas pela Defensoria. Nós temos um canal direto de comunicação com o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em caso de abusos sistemáticos.
ConJur — A Defensoria do Rio vem sendo muito atuante em casos de reconhecimento fotográfico. Como tornar o procedimento menos sujeito a injustiças, especialmente em virtude do racismo?
Patrícia Cardoso — Todo o trabalho da ilegalidade do reconhecimento fotográfico foi feito pela Defensoria do Rio. O ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, encampou essa nossa tese. O STJ afirmou ser ilegal o reconhecimento fotográfico e pessoal que desrespeitar o procedimento previsto no Código de Processo Penal. Isso está ligado à questão do racismo. Isso foi atestado por uma pesquisa da Defensoria Pública. Protocolamos muitas revisões criminais por conta da ilegalidade do reconhecimento fotográfico.
ConJur — A Defensoria Pública do Rio de Janeiro lançou recentemente o Núcleo de Investigação Defensiva, o primeiro órgão do tipo entre as defensorias do país. Como funciona esse setor?
Patrícia Cardoso — A criação desse setor foi uma grande conquista para a Defensoria. O Núcleo de Investigação Defensiva auxilia os defensores criminais na produção de provas para contestar a acusação. Há dois peritos trabalhando no setor. É algo que fazia falta, porque muitas vezes o trabalho dos defensores era prejudicado pela falta da contraprova técnica, de laudos periciais.
ConJur — A senhora coordenou o Núcleo de Direito do Consumidor da Defensoria Pública do Rio. Em 2017, o TJ-RJ extinguiu as câmaras especializadas em Direito do Consumidor. Como avalia essa mudança? Seria melhor ter essas câmaras?
Patrícia Cardoso — Eu gosto muito de especialização, mas penso que essa mudança não influenciou muito as decisões. Isso porque os magistrados já estão muito acostumados com as questões consumeristas. De uns anos para cá, as varas cíveis vêm sendo dominadas por questões consumeristas. Penso que isso serviu como motivação para a extinção das câmaras do consumidor.
ConJur — A Defensoria tem atuado muito em casos relacionados a escolas e creches públicas do Rio. Isso quer dizer que as prefeituras e o governo estadual não têm conseguido garantir vagas no sistema público de ensino a todos que precisam?
Patrícia Cardoso — A construção e implementação de políticas públicas que realmente atendam a população, principalmente crianças e adolescentes, é algo que nos é muito caro. Quando verifica que um serviço público não está sendo prestado de forma ideal, a Defensoria Pública atua, podendo recorrer à via judicial.
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