Opinião

A inércia estatal frente ao pedido de socorro das vítimas

Autores

  • Aline Padilha Martins e Silva

    é advogada criminalista em Nishizawa Advocacia pós-graduada em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e membro das comissões de Ciências Criminais de Diretos Humanos e de Liberdade Religiosa da OAB-DF.

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  • Thainá Rodrigues Leite

    é advogada criminalista em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados pós-graduanda em Penal e Processo Penal pela Associação Brasileira de Direito Constitucional e membra das comissões de Direitos Humanos e de Ciências Criminais da OAB-DF.

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21 de maio de 2023, 6h06

Em 26 de janeiro de 2023, Sophia de Jesus Ocampo foi recebida morta em uma Unidade de Pronto Atendimento de Campo Grande (MS). Sophia, criança de apenas 2 anos e 7 meses, estava com o pescoço quebrado e o hímen rompido. Segundo o médico legista, o óbito teria ocorrido entre 9h e 10h, quase sete horas antes de a mãe da vítima, Stephanie de Jesus da Silva, tê-la levado até o hospital. No depoimento prestado por Stephanie perante a delegacia, ela confessou saber que a sua filha já estava morta quando a levou à UPA.

No decorrer das investigações, com a quebra de sigilo telefônico, foi possível constatar que a mãe e o padrasto da criança, Christian Campoçano Leitheim, estariam acordando qual versão apontar para a polícia. Dentre elas, Christian falou para a Stephanie inventar que ela teria caído no parquinho.

Embora seja difícil de acreditar que esse caso realmente aconteceu, é ainda mais grave pensar que Jean Carlos Ocampo, o pai de Sophia, em diversas oportunidades, recorreu ao Conselho Tutelar e à Polícia Civil, órgãos da rede de proteção à criança, com o intuito de levar a conhecimento os abusos sofridos pela menor enquanto vivia com a mãe e o padrasto.

Em 31 de janeiro de 2022, Jean levou diversas fotos dos hematomas de Sophia para o Conselho Tutelar juntamente com um áudio da avó da menor declarando que estava preocupada com a criança que vivia doente, porém os conselheiros sequer registraram denúncia e informaram que ele deveria procurar a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente. Ao procurar a autoridade policial, Jean prestou boletim de ocorrência contra a mãe de Sophia, mostrou todas as provas que possuía e, no fim, o delegado concluiu o relatório tipificando o delito como maus-tratos. O promotor de Justiça, por sua vez, determinou o arquivamento do caso [1].

Jean recorreu ao Conselho Tutelar em mais duas oportunidades, em fevereiro e em maio de 2022. Todavia, nada concreto foi feito, sequer o Ministério Público foi acionado. Em fevereiro, o conselho compareceu à residência de Stephanie e chegaram à conclusão de que a criança não possuía nenhum machucado e que somente a casa estava desordenada. Na última, mesmo após Jean apresentar a reportagem dizendo que o cachorro de Stephanie e Christian foi encontrado morto, na mesma casa em que vivia Sophia, com condições insalubres, o conselho acionou a Secretaria de Assistência Social que nada fez. No fim, a pedido do órgão de proteção, Stephanie compareceu ao conselho acompanhada de Sophia e os conselheiros concluíram que a menor não possuía machucados e estava bem cuidada [2].

Nada mais foi feito. Sophia faleceu em decorrência das omissões cometidas pelos órgãos que deveriam, pelo menos na teoria, proteger toda criança e adolescente de agressões e maus-tratos em geral. Sophia é mais uma dentre tantas crianças que faleceram diante da aquiescência das autoridades à situação momentânea vivida pelo menor. Os sinais de que algo mais grave poderia acontecer não foram suficientes para acionar o conselho tutelar, a Polícia Civil, o Ministério Público e tampouco o Judiciário. Pelo que se percebe desse caso, por muitas vezes é necessário que o mais grave aconteça para permitir que as autoridades tomem qualquer atitude.

O artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que "a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios" [3]. Ou seja, a lei é expressa ao determinar que as autoridades precisam atuar em conjunto para proteger o menor.

O artigo 87 do mesmo estatuto apresenta como linhas de ação da política de atendimento: (1) políticas sociais básicas; (2) serviços, programas, projetos e benefícios de assistência social de garantia de proteção social e de prevenção e redução de violações de direitos, seus agravamentos ou reincidências; (3) serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão; (4) serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos; (5) proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente; (6) políticas e programas destinados a prevenir ou abreviar o período de afastamento do convívio familiar e a garantir o efetivo exercício do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes; e (7) campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de guarda de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e à adoção, especificamente inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos [4].

No caso concreto, o Estatuto da Criança e do Adolescente não foi respeitado. Sophia, mesmo após ter fotos de hematomas mostrados por seu pai às autoridades competentes, não foi socorrida, não foi protegida e tampouco recebeu um atendimento médico e psicossocial necessário. Em verdade, nenhum serviço de prevenção foi adotado e, se ainda estivesse viva, cresceria com os traumas suportados durante a primeira infância em decorrência da omissão do Estado em assisti-la.

Entretanto, os casos de omissão estatal perante pedidos de socorro e denúncias feitas por vítimas não se restringe a este infeliz acontecimento. Na defesa das mulheres, exempli gratia, a inércia estatal se encontra estampada em número amedrontador. Em que pese a previsão da Lei Maria da Penha, especialmente em seus artigos 3º e 4º, que conferem às mulheres a garantia de condições para efetivar os direitos à vida, à segurança, à saúde, ao acesso à justiça, dentre outros direitos fundamentais, bem como determinam que o poder público será responsável por desenvolver políticas que garantam os direitos humanos femininos, resguardando-as de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, a realidade se demonstra de forma diversa.

Em abril do presente ano, Renata Tereza de Souza Manoel [5] foi vítima da surdez do Estado. Horas antes de ser esfaqueada pelo ex-namorado, Sidney Ferreira da Silva, foi até uma delegacia e registrou, contra o autor do crime, um boletim de ocorrência, que fora encontrado ensanguentado em seu bolso pelos médicos que a atenderam.

Apesar dos diversos boletins de ocorrência realizados pela vítima, alguns deles relatando o descumprimento da medida protetiva pelo seu assassino por não apenas uma vez em sua casa ou na escola de sua filha, o Estado foi incapaz de proteger a vida de mais uma mulher que berrava aos órgãos por socorro.

Laís Andrade [6], em outubro de 2017, denunciou o ex-companheiro por ter instalado em seu banheiro uma câmera. Como resposta, os agentes de polícia a colocaram dentro de uma viatura sentada ao lado de seu agressor — contrariando todos os protocolos de atendimento policial e de proteção à vítima – e, após ter sido autorizado a buscar um documento no interior de sua residência, retornou com uma faca e atingiu Laís no pescoço.

Na realidade da inércia estatal enfrentada por tantas vítimas, não basta acreditar somente em previsões legais como o ECA ou a Lei Maria da Penha para protegê-las. O fechar dos olhos do Estado em tantos casos, além de ferir princípios constitucionais e previsões legais, pode ser um impeditivo para que denúncias cheguem às autoridades. É certo, assim, que a proteção prevista na legislação precisa estar acompanhada de uma atuação incisiva dos órgãos competentes para que a prática não siga tão distante da teoria.

Se não o Estado, "quem poderá nos salvar"?

Autores

  • é advogada parceira do escritório De Macedo Buzzi e Souza Advogados Associados e pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).

  • é advogada criminalista em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados, pós-graduanda em Penal e Processo Penal pela Associação Brasileira de Direito Constitucional e membra das comissões de Direitos Humanos e de Ciências Criminais da OAB-DF.

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