Embargos Culturais

O berço do herói, de Dias Gomes

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

21 de maio de 2023, 10h24

Em O berço do herói, o dramaturgo Dias Gomes (1922-1999) coloca-nos o problema do absurdo dos heróis. Quem são os heróis? Quem os escolhe? O que os sustenta? Quem deles se apropria? O que se ganha com eles? Nas entrelinhas o célebre poema de Bertold Brecht: “Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas? Nos livros estão nomes de reis; Os reis carregaram as pedras? E Babilônia, tantas vezes destruída, Quem a reconstruía sempre?”. Ao que se pode acrescentar quem (e por quê) define o panteão.

Spacca

O berço do herói é uma peça hilariante. O Cabo Jorge é um desertor da guerra, que fugiu do campo de batalha (na Itália) por medo. É um soldado medroso. Sua deserção macula o Exército; a peça é de 1963, ambientada em 1955, isto é, cerca de dez anos após a campanha brasileira na Itália. Indicar um soldado fraco e covarde era um problema. No entanto, sua cidade de origem (que acabou adotando seu nome) constrói uma narrativa falaciosa. O Cabo Jorge foi anunciado como um herói, levando as tropas brasileiras para a vitória, desaparecendo em combate. Significava a virilidade castrense, a bravura patriótica e o destemor cívico. Um exemplo. Na peça de Dias Gomes o Cabo Jorge havia lutado junto à Força Expedicionária Brasileira (FEB).

A cidade de Cabo Jorge passa a viver desse legado. Antonieta (com quem o Cabo Jorge viveu um rápido caso) falsificou documentos e apresentava-se como a viúva do herói. Um modelo de castidade, de seriedade, de honra. Era amante do Major Chico Manga, que mandava na cidade, e que mais se beneficiava do legado do herói putativo. O Prefeito seguia as ordens de Chico Manga, para quem trabalhava, e para quem tudo fazia. O Vigário (Padre Lopes) seguia a mesma linha. Era um paradoxo permanente. Condenava os maus costumes e a prostituição, porém recolhia uma mesada de Matilde, a cafetã. O Padre criticava o prostíbulo, porém a Igreja era remunerada pela dona da casa de tolerância. As prostitutas também pagavam imposto para o prefeito. Há também Lilinha, que posava de virgem abandonada, e que fora namorada do Cabo Jorge.

A cidade vivia de uma lenda. Vendiam-se relíquias, a exemplo de um botão atribuído à ceroula do Cabo Jorge. O mandachuva local (Major Chico Manga) conseguia verbas federais às custas da memória do herói. Um intenso turismo cívico animava a vida da cidade. Do total esquecimento a cidade tornara-se uma referência de visitas e de culto ao heroísmo militar. Todos lucravam: o prefeito, o padre, a suposta viúva, as prostitutas. Uma estatua erguida no centro da cidade homenageava Cabo Jorge. O herói era um símbolo, uma medida de lisura, seriedade e bravura.

No entanto, um dia, o Cabo Jorge retorna à cidade. Pergunta sobre o Major (que era seu tio) e sugerem que ele vá até a casa de Antonieta. A farsa começa a se desfazer. O herói de araque descobre que seu nome era explorado. A revelação de que está vivo colocaria toda a cidade no ridículo. Os protagonistas montam um gabinete de crise e discutem o que fazer com a nova situação (dramática). O Cabo Jorge se recusa a colaborar. O Major Chico Manga vai até o Rio e um General do Exército é deslocado para resolver o problema. Afina, a honra dos militares estava em jogo. O leitor imagine o desate.

O berço do herói foi adaptado para a televisão, com condução de Dias Gomes. É o tema da telenovela Roque Santeiro, um dos maiores sucessos da história da televisão brasileira, implacavelmente perseguida pela censura, e por isso lançada em uma segunda versão alguns anos depois da proibição. O berço do herói é uma peça completa que nos comprova que a arte imita a vida.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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