Opinião

Novos ventos constitucionais chilenos

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  • Alexandre Freitas Couto

    é advogado pós-graduado em Direito Constitucional mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa e doutorando em Constituição e Democracia pela UnB (Universidade de Brasília).

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20 de maio de 2023, 6h32

Os recentes eventos político-constitucionais ocorridos no Chile são merecedores de análise. A Constituição chilena de 1980 está tendo sua legitimidade questionada, por haver sido elaborada durante a era Pinochet, sem consentimento da população. Tudo começou quando Salvador Allende tornou-se o primeiro presidente marxista a ser democraticamente eleito em um país da América Latina.

Como explica o professor Benjamin Alemparte, essa vitória preparou o caminho para uma investida neoliberal. Em 1973, o general Augusto Pinochet realizou um coup d'état e baseou seu governo em uma agenda fundamentada nas ideias dos Chicago Boys (um grupo formado por estudantes chilenos neoliberais da Escola de Economia de Chicago).

A Constituição de 1980 tornou-se, então, uma superestrutura que foi criada com a finalidade de assegurar a manutenção de princípios neoliberais meta-jurídicos, subjacentes à ideia de Estado de Direito. O constitucionalismo neoliberal, portanto, tornou-se compatível com o pensamento jusnaturalista de que o Direito é pré-existente à legislação e está acima da ordem política. A função do estado seria apenas a de aplicar o rule of law e providenciar serviços que o mercado não poderia suprir, na linha do princípio da subsidiariedade [1].

De acordo com o professor Hugo Rojas, para assegurar a permanência da economia neoliberal, a ditadura estabeleceu um conjunto de freios e fechaduras na Constituição que fazem com que ela seja difícil de ser substituída ou modificada. Portanto, as reformas constitucionais e as principais leis que regulam a economia e a atividade política requerem um alto quórum para serem aprovadas pelo Congresso.

Isso explica por que os parlamentares de direita têm sido capazes de bloquear tentativas de reformas substantivas desse modelo, uma vez que, desde a transição para a democracia, eles têm sempre tido mais de um terço do parlamento [2] Logo, tanto o modelo econômico neoliberal, quanto a Constituição de 1980, foram impostos sem legitimidade [3].

Nesse contexto, em outubro de 2019, um aumento no preço do metrô engatilhou uma série de protestos clamando por demandas sociais. Em um momento inicial, o presidente Sebastian Piñera tratou os manifestantes com repressão, e os chilenos experimentaram um estado de violência nunca antes visto desde a ditadura de 1973-1990 (pelo menos 30 pessoas morreram).

Reprodução/Instagram
Gabriel Boric, presidente do Chile
Reprodução

Contudo, em 15 de novembro, o presidente e a oposição assinaram o Acuerdo por la Paz Social e la Nueva Constitución, e em um plebiscito realizado em 25 de outubro de 2020, com a participação de 50,86% dos eleitores chilenos, 78% dos votantes disseram "sim" à elaboração de uma nova Constituição. Elegeu-se então uma constituinte composta por 155 representantes eleitos, em maio de 2021.

Apesar dessa grande movimentação social, um efeito backlash ganhou forma, e apenas 41,51% dos cidadãos votaram na eleição da Convenção Constitucional. Em adição, na eleição presidencial de 2021, um candidato de extrema-direita, José Antonio Kast  um apologista da ditadura de Pinochet que se posicionou contra a nova Constituição e prometeu restaurar a ordem, depois do "terrorismo" que emergiu com a agitação popular de outubro de 2019, tendo fundado o Partido Republicano naquele mesmo ano  teve 27,92% dos votos no primeiro turno das eleições e 44,14% no segundo, perdendo para o atual presidente, Gabriel Boric.

Como a professora Camila Vergara explica, essa vitória "[…] foi parcialmente devida à campanha antifascista contra Kast, mais que ao apoio a Boric e a sua colisão" [4]. Inclusive, após a eleição, o presidente Boric, que defendeu e advogou pela nova Carta, teve um aumento em sua desaprovação, indo de 20%, em março de 2022, a 60%, em março desse ano, 2023 [5].

No referendo do dia 4 de setembro de 2022, que teve participação de 85% dos chilenos, a nova Constituição foi rejeitada por 62% dos votos, contra 38% que votaram a favor de sua aprovação. Segundo o jornal Estado de S. Paulo, "A derrota […], no entanto, não seguiu uma linha ideológica. Boa parte dos que rechaçaram a Carta são de centro ou centro-esquerda" [6].

A revista The Economist, por sua vez, chamou atenção ao fato de que "Mais de dois terços dos constituintes eleitos eram independentes, muitos deles novatos na política e ativistas da extrema-esquerda" [7]. Além disso, segundo a revista, o texto traria ao país uma série de incoerências e dificuldades:

"A nova Constituição teria ainda enfraquecido direitos à propriedade privada, substituído o Senado por uma Câmara Alta debilitada e criado territórios autônomos para povos indígenas no Chile com Judiciários próprios. Corpos eleitos e organismos de Estado, como o funcionalismo público e o Banco Central, seriam forçados a incluir mulheres em 'pelo menos' 50% de suas posições de liderança. Economistas estimaram que implementar a nova Carta teria elevado o gasto do governo para o equivalente a 9% e 14% do PIB anualmente." [8]

Outrossim, segundo o professor Oliver Stuenkel, "aqueles que desaprovam o documento da era de Augusto Pinochet, mas também se preocupam com a nova versão, foram incentivados a votarem 'não', depois de o presidente Gabriel Boric ter sinalizado que ele estaria aberto a discutir uma versão alternativa se o projeto proposto pela Assembleia Constituinte fosse rejeitado" [9].

Apesar da vitória da rejeição ao documento, o fato é que a ideia de reformar a Constituição chilena não desapareceu, e o Congresso foi persuadido a convocar uma nova convenção. Para prevenir excessos, dessa vez os legisladores desenvolveram uma série de regras que não poderiam ser modificadas, como o respeito à propriedade privada e o congresso bicameral. Além disso, diferente da primeira Constituinte, que teve 155 membros, a nova terá apenas 51 conselheiros eleitos pelo povo. O objetivo dessa redução foi dar mais coesão ao texto e evitar a desorganização do primeiro documento.

A nova votação foi marcada pelo desinteresse da população, não tendo ocorrido nenhuma grande manifestação no país — ao contrário do que se verificou às vésperas da primeira eleição constituinte. Contudo, como o voto foi obrigatório, com uma multa de 226 dólares para quem não comparece e não justificasse a ausência, mais de 70% dos eleitores se fizeram presentes.

O resultado foi que, no dia 7 de maio, o Partido Republicano, comandado pelo extremista José Antonio Kast, obteve 22 assentos, e junto com a direita tradicional, que obteve 11 assentos, ambos possuem as mais de 30 cadeiras necessárias para aprovar as novas normas constitucionais, sem a necessidade de concordância com a oposição. A coalizão de esquerda liderada por Boric, por sua vez, obteve 17 assentos, o que é menos que os 21 necessários para exercer o direito de veto [10].

Ao saber do resultado, o presidente Boric afirmou: "O processo anterior falhou porque não soubemos ouvir os que pensavam diferente. Quero convidar agora o Partido Republicano a não cometer o mesmo erro que cometemos" [11]. Comentando o ocorrido, o jornal Estado de S. Paulo chamou atenção ao paradoxo de que a direita chilena, agora, se vê no comando de um processo constituinte ao qual se opôs, e esse grupo, hoje, vive um aparente dilema: "[…] pode se dobrar aos radicais, formando uma maioria qualificada apta a aprovar o que quiser à revelia da esquerda, ou se opor a eles, aliando-se à esquerda. Ocorre que a bancada radical tem poder para vetar o que bem entender" [12].

Afirma ainda o jornal: "Na última Constituinte, correu-se o risco de jogar o bebê (do crescimento) junto com a água do banho. Na atual, se a direita reacionária não se moderar e se o centro não se entender, corre-se o risco inverso: de jogar fora a água do banho, deixando o bebê sujo" [13].

As mudanças nos ventos da constituinte chilena consistem em um fenômeno interessante que merece um estudo aprofundado a respeito, abrangendo desde a elaboração da Carta de 1980, do regime de Pinochet, até as duas últimas constituintes. O que deu errado? A única coisa que eu consigo afirmar, no momento, é que sem o caminho do meio, não há saída. Aguardemos os próximos eventos constitucionais chilenos, e tentemos aprender com eles.

 


[1] ALEMPARTE, Benjamin, (2021), "Towards a theory of neoliberal constitutionalism: Addressing Chile's first constitution-making laboratory", Global Constitutionalism, Vol 10, nº 3, p. 16-17.

[2] Tradução livre, nossa, de: "[…] a set of locks or traps that make it difficult to be replaced or modified. For example, constitutional reforms and the main laws that regulate both the economy and political activity require high quorums to be approved in Congress. This explains why right-wing parliamentarians have been able to block attempts at substantive reforms to the model, as during the transition to democracy they have always had more than one-third of the parliamentarians". In: ROJAS, Hugo, (2002), "Chile at the Crossroads: From the 2019 Social Explosion to a New Constitution", Seattle Journal for Social Justice, vol. 20, Vol. 4, p. 986-987.

[3] ROJAS, Hugo, (2002), "Chile at the Crossroads: From the 2019 Social Explosion to a New Constitution", Seattle Journal for Social Justice, Vol. 20, nº 4, p. 986.

[4] Tradução livre, nossa, de: "[…] was partially due to the anti-fascist campaign against Kast, rather than wholehearted support for Boric and his coalition". VERGARA, Camila, (2022), "Fear of Fascism, Hope for Popular Empowerment in Chile", NACLA Report on the Americas, Vol. 54, nº 1, p. 8.

[5] CARDOSO, Jessica; MARCOLINO, Aline, Em 1 ano de mandato, rejeição de Gabriel Boric chega a 60%. Poder 360, 11 de março de 2023. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/internacional/em-1-ano-de-mandato-rejeicao-de-gabriel-boric-chega-a-60/>. Acesso em 23 de maio de 2023.

[6] "Chilenos rejeitam em referendo proposta de uma nova Constituição" (2022), Estado de S. Paulo, 5 de setembro.

[7] "Second time's a charm" (2022), The Economist, 10 de setembro. Utilizou-se a tradução disponibilizada pelo jornal Estado de S. Paulo: "No referendo chileno, venceu o bom senso" (2022), Estado de S. Paulo, 6 de setembro.

[8] "Second time’s a charm" (2022), The Economist, 10 de setembro. Utilizou-se a tradução disponibilizada pelo jornal Estado de S. Paulo: "No referendo chileno, venceu o bom senso" (2022), Estado de S. Paulo, 6 de setembro.

[9] Tradução livre, nossa, de: "Those who dislike the old constitution from Augusto Pinochet’s era but also had concerns about the new version were encouraged to vote 'no' after leftist President Gabriel Boric signaled that he'd be open to discuss an alternative version if the draft presented by the constituent assembly were rejected". In: STUENKEL, Oliver, "Chile's Rejection of the New Constitution Is a Sign of Democratic Maturity" (2022), Carnegie Endowment for International Peace, 9 de setembro.

[10] "Ultraconversadores vencem nova eleição de constituintes no Chile" (2023), Estado de S. Paulo, 8 de maio; "Conservatives dominate Chile’s constitutional assembly this time Around" (2023), The Economist, 11 de maio; "Constituinte do Chile, nascida após protestos da esquerda, terá controle da direita" (2023), BBC Brasil, 8 de maio. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy90j087v35o>. Acesso em 12 de maio de 2023.

[11] "Ultraconversadores vencem nova eleição de constituintes no Chile" (2023), Estado de S. Paulo, 8 de maio.

[12] "A reviravolta no Chile" (2023), Estado de S. Paulo, 10 de maio.

[13] "A reviravolta no Chile" (2023), Estado de S. Paulo, 10 de maio.

Autores

  • é pós-graduado em Direito Constitucional, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa, doutorando em Constituição e Democracia pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador visitante pela University of Texas at Austin.

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