Opinião

Mulheres advogadas importam: a luta da OAB contra o assédio moral e sexual

Autor

  • Cristiane Damasceno Leite

    é advogada presidente da CNMA (Comissão Nacional da Mulher Advogada) do Conselho Federal da OAB. Conselheira federal pela OAB-DF. Mestre em Direito Constitucional pela EDB/IDP. Professora universitária de graduação e pós-graduação em direito penal e processo penal.

19 de maio de 2023, 9h18

O meio jurídico não está imune a práticas discriminatórias e de assédio no trabalho. O gênero importa. As principais vítimas são os corpos femininos, que compõem essa paisagem de violências. Na advocacia, a realidade é esta: uma em cada duas advogadas já sofreu assédio moral no ambiente profissional[1]. Exercitar a cena é simples: pense em duas advogadas que você conheça ou tenha visto. É muito provável que ao menos uma delas já tenha sido vítima dessa violência. Essa realidade infeliz é comum a todas as trabalhadoras brasileiras, uma vez que 76% já foram assediadas[2].

Para reverter esse cenário, é necessário agir. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), por meio da CNMA (Comissão Nacional da Mulher Advogada), lidera esse movimento. No último 5 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 1.852/2023[3], que, ao alterar o artigo 34 da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB), que classifica o assédio moral, assédio sexual e outras formas de discriminação como infração ético-disciplinar.

Como presidente da CNMA, tive a honra de coordenar os esforços que resultaram nessa conquista, em conjunto com outras advogadas e colegas aliados. A proposta ganhou força quando o Conselho Pleno da OAB, sob a liderança do presidente nacional, Beto Simonetti, aprovou por unanimidade a alteração do artigo 34 do Estatuto da Advocacia e da OAB, que deu origem ao PL nº 1.852/2023.

Sensível às demandas levantadas pela OAB, a deputada federal Laura Carneiro (PSD-RJ) acolheu a proposta e a apresentou ao Congresso. O projeto encontra-se em análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, sob a relatoria da senadora Augusta Brito (PT-CE). Com a aprovação do PL, a OAB poderá punir os profissionais que praticarem essas condutas abusivas no trabalho, garantindo maior proteção à classe e a promoção de um ambiente profissional decente, mais justo e respeitoso.

A proposição legislativa apresenta definições fundamentais para identificar e coibir práticas de assédio e discriminação no espaço laboral. Segundo o texto normativo, o assédio moral é caracterizado pela repetição deliberada de gestos, palavras ou comportamentos que humilham e constrangem o(a) estagiário(a), o(a) advogado(a) ou qualquer outro(a) profissional que esteja prestando serviços, com o objetivo de prejudicar sua integridade física ou psíquica e excluí-lo de suas funções ou desestabilizá-lo emocionalmente. Esses atos são, segundo estabelece a proposta, violações à personalidade e à dignidade das vítimas, gerando um ambiente de trabalho prejudicial.

Já o assédio sexual consiste em condutas de cunho sexual, praticadas no exercício profissional ou em razão dele, manifestadas de forma física ou por meio de palavras, gestos ou outros meios. Essas ações são impostas à pessoa contra sua vontade, causando constrangimento e violando sua liberdade sexual.

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Presidente da CMNA, Cristiane Damasceno
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A discriminação, por sua vez, refere-se ao tratamento constrangedor ou humilhante em razão de características como raça, cor, sexo, procedência nacional, procedência regional, origem étnica, idade, religião, gestação, lactação, nutrição, deficiência ou qualquer outro fator. São condutas inaceitáveis e atentatórias ao princípio de igualdade e de respeito à diversidade.

Articulado às dimensões de raça, classe, gênero, orientação sexual, identidade de gênero e outros marcadores sociais da diferença, o assédio no ambiente laboral é ainda mais intenso. Essas práticas podem resultar em ideações suicidas e ocasionar dor emocional, ansiedade, depressão, isolamento, medo de perder o emprego, estresse e doenças psicossomáticas[4].

A ativista Bertha Luz afirma que "recusar à mulher igualdade de direitos em virtude do sexo é negar justiça à metade da população". Hoje, mais da metade do quadro de inscritos no Sistema OAB é formado por mulheres. Somos quase 700 mil advogadas brasileiras. Por isso, a luta pela igualdade de gênero é incansável, dentro e fora da advocacia.

Em 2022, criamos a campanha nacional "Advocacia Sem Assédio". Idealizado pela CNMA, o projeto tem como objetivo educar e conscientizar sobre o tema, promovendo diversas atividades, como a publicação de cartilhas[5], realização de transmissões ao vivo e rodas de conversa, além da criação de um canal de denúncias[6]. A nossa finalidade é fornecer informação e instrumentos práticos que permitam às advogadas reconhecer e reagir às situações de assédio.

A construção de um horizonte sem violência nas relações sociolaborais exige um ambiente institucional favorável ao diálogo, à participação, à transparência, à ética, à valorização do (a) trabalhador (a) e ao respeito à diversidade, objetivando sua saúde[7]. Estratégias como criação de códigos de conduta, letramento sobre o tema e políticas institucionais com instâncias de acolhimento e acompanhamento de situações de conflito possibilitam a estruturação de um ambiente de Trabalho Decente[8].

Com o PL nº 1.852/2023, a OAB demarca sua posição histórica de Casa da Cidadania. Afinal, não há democracia efetiva sem o respeito integral aos grupos sociais historicamente oprimidos pelas desigualdades constitutivas de nossa sociedade. Seguiremos em marcha para que advogadas e advogados possam exercer seu honroso ofício de maneira plena, livre e autônoma.

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Referência bibliográficas
ANDRADE, Cristiane Batista; ASSIS, Simone Gonçalves. Assédio moral no trabalho, gênero, raça e poder: revisão de literatura. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional. 2018.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1852/2023, de autoria da deputada Laura Carneiro. Altera a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2355991. Acesso em: 18 mai. 2023.

Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva. “Percepções sobre violência e o assédio contra mulheres no trabalho, 2020. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-e-fontes/pesquisa/percepcoes-sobre-a-violencia-e-o-assedio-contra-mulheres-no-trabalho-instituto-patricia-galvao-locomotiva-2020/. Acesso em 18 mai. 2023.

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Assédio moral, sexual e outras violências no trabalho: prevenção e enfrentamento na Fiocruz. Edição Ampliada. 2022. p. 45. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos_2/cartilhaassedio_fiocruz_final_selo_2.pdf. Acesso em 18 mai. 2023.

KERGOAT D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: Lopes MJM, Meyer DEE, Waldow VR, editores. Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas; 1996. p. 19-27.

OAB NACIONAL. Advogadas passam a contar com campanha nacional contra o assédio. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/59455/advogadas-passam-a-contar-com-campanha-nacional-contra-o assedio?argumentoPesquisa=%22advocacia%20sem%20assedio%22. Acesso em: 18 .mai.2023.

OAB NACIONAL. Eu apoio #Advocacia Assédio. Disponível em: https://advsemassedio.org.br/. Acesso em 18 mai. 2023

OIT. Trabalho Decente. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang–pt/index.htm. Acesso em 18 mai. 2023.

PENDER, Kieran. ¿Nosotros también? La intimidación y el acoso sexual en las profesiones jurídicas. Unidad de Política Legal e Investigación. International Bar Association. Londres. UK. 2019. Disponível em: https://www.ibanet.org/MediaHandler?id=ED850669-648E-48D1-8ADD-7C80621A7BFF. Acesso em 18 de mai. 2023.

 


[1] PENDER, Kieran. ¿Nosotros también? La intimidación y el acoso sexual en las profesiones jurídicas. Unidad de Política Legal e Investigación. International Bar Association. Londres. UK. 2019. Disponível em: https://www.ibanet.org/MediaHandler?id=ED850669-648E-48D1-8ADD-7C80621A7BFF. Acesso em 18 de mai. 2023..

[2]  Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva. “Percepções sobre violência e o assédio contra mulheres no trabalho, 2020. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-e-fontes/pesquisa/percepcoes-sobre-a-violencia-e-o-assedio-contra-mulheres-no-trabalho-instituto-patricia-galvao-locomotiva-2020/. Acesso em 18 mai. 2023.

[3] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1852/2023, de autoria da deputada Laura Carneiro. Altera a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2355991. Acesso em: 18 mai. 2023

[4] ANDRADE, Cristiane Batista; ASSIS, Simone Gonçalves. Assédio moral no trabalho, gênero, raça e poder: revisão de literatura. Rev Bras Saúde Ocup 2018;43:e11Rev Bras Saúde Ocup 2018; 43:11, 2018. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbso/a/4jH9bBbXyBr49hXPqTJMJTs/?format=pdf&lang=pt>.(ANDRADE; ASSIS, 2018, p.8-9. Acesso em 18 mai. 2023.

[5] OAB NACIONAL. Cartilha #AdvocaciaSemAssédio. 2022. Disponível em: <https://www.oab.org.br/Content/pdf/Cartilha-Advocacia-Sem-Assedio.pdf>. Acesso em 5 mai. 2023.

[6] OAB NACIONAL. Eu apoio #Advocacia Assédio. Disponível em: https://advsemassedio.org.br/. Acesso em 18 mai. 2023

[7] FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Assédio moral, sexual e outras violências no trabalho: prevenção e enfrentamento na Fiocruz. Edição Ampliada. 2022. p. 45. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos_2/cartilhaassedio_fiocruz_final_selo_2.pdf. Acesso em 18 mai. 2023.

[8] Conceito formulado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1999. Sintetiza a sua missão histórica de promover oportunidades para que homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang–pt/index.htm. Acesso em 18 mai. 2023.

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