Seguros Contemporâneos

Aprovação do PL de Seguros n° 29/2017 seria um erro (parte 1)

Autor

  • Thiago Junqueira

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

18 de maio de 2023, 8h00

1. Introdução
O presente artigo, que será publicado em duas partes, tem como objetivo analisar alguns aspectos controvertidos do Projeto de Lei (PL) da Câmara n° 29, de 2017, que visa a instituir uma Lei Geral de Seguros no Brasil, revogando os atuais dispositivos do Código Civil que regulam a temática, em especial, os artigos 757 a 802.

Spacca
Desde o dia 12 de abril de 2023, a matéria está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), com relatoria do senador Jader Barbalho, para a emissão de relatório. Diante do contexto atual, é provável que o tema avance nos próximos meses para a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) e, em seguida, seja apreciado pelos senadores em plenário. Como o PL já foi aprovado na Câmara, se for aprovado sem emendas no Senado, irá para a sanção direta do presidente da República. Nos moldes do artigo 128 do PL, caso sancionada, a então lei entrará em vigor um ano após a sua publicação oficial.

Embora tenha alguns aspectos positivos, os quais, em boa medida, já são objeto de tratamento regulatório — como a definição de balizas para a fase da regulação de sinistro — ou de tratamento jurisprudencial pacífico — como a necessidade de notificação do segurado para purgação da mora do prêmio antes da suspensão ou resolução do contrato — o balanço geral do PL, adiante-se, é negativo.

A um só tempo, o PL é contrário à Constituição da República, à Lei da Liberdade Econômica, ao Código de Processo Civil, à Lei de Arbitragem, à Lei do Resseguro, da Retrocessão e do Cosseguro, ao Decreto-lei n° 73/1966, à Lei do Corretor de Seguros e a uma parte significativa do avanço regulatório ocorrido nos últimos anos por parte do CNSP e da Susep. Se aprovado, o PL criará consideráveis amarras para o desenvolvimento de novos produtos e do mercado como um todo — a começar por, na prática, eliminar o sandbox regulatório da Susep —, prejudicando os segurados, as seguradoras e outros intervenientes.

É importante notar que o projeto de lei em questão tem sua origem no PL n° 3.555/2004. Apesar de ter passado por revisões pontuais, com o devido respeito, o projeto se tornou obsoleto e desconectado do desenvolvimento tecnológico ocorrido nos últimos anos. Em 2004 e até mesmo na última revisão em 2017, praticamente não se discutia o uso de inteligência artificial no mercado de seguros e não havia presença significativa de insurtechs no Brasil. Como conciliar a versão atual do PL com essa nova realidade?

Adicionalmente, o PL contraria a jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em diversos casos. Dois exemplos específicos, que serão aprofundados em tópicos próprios, são o dever de informação do estipulante no seguro coletivo e a desnecessidade de o segurador compartilhar com o segurado todos os documentos produzidos no âmbito da regulação de sinistros.

No legítimo afã de proteger os segurados, o PL se excede, negligenciando o fato de que a cobertura indevida de sinistros prejudica o fundo mutual, gerando prêmios significativamente mais altos para os segurados (nas renovações e novas contratações) e, em última instância, diminui a penetração dos seguros no país. O resultado do PL é preocupante, principalmente considerando que não foi feita nenhuma análise de impacto "regulatório" [1].

Tendo em vista que as críticas óbvias ao PL já estão desgastadas (v.g., a ausência de diferenciação entre seguros massificados e seguros de grandes riscos, conforme amplamente feito na experiência estrangeira e, no Brasil, na Resolução CNSP n° 407/2021) [2], na sequência serão tirados da sombra, de forma objetiva, seis aspectos problemáticos do PL.

2. Exame de aspectos problemáticos do PL 29/2017
2.1. Competência da Susep e do CNSP para regular sobre seguros: apenas para "proteção dos interesses dos segurados e seus beneficiários"?
Nos moldes do parágrafo único do artigo 1º do PL, "[o] Poder Executivo da União terá competência para expedir atos normativos que não contrariem esta Lei, atuando em proteção dos interesses dos segurados e seus beneficiários".

Uma lei e os atos normativos setoriais devem cuidar dos interesses de todos os players, respeitadas as suas diferenças, e do mercado em si, não apenas dos "segurados e seus beneficiários". Não se trata de instituir o equivalente a um "Código de Defesa dos Segurados" — que, vale dizer, já dispõem, quando aplicável, do CDC propriamente dito. O citado parágrafo único do artigo 1º do PL choca-se com os artigos 32 e 36 do Decreto-lei n° 73/1966, que instituem uma competência para o CNSP e a Susep regular sobre seguros de uma forma geral, e não apenas em favor dos "interesses dos segurados e seus beneficiários".

Aqui, desde logo, nota-se um problema estrutural do PL, a considerar que o Decreto lei 73/1966 foi recepcionado pela CF 1988 com status de lei complementar. Nesses termos, o PL (lei ordinária) não poderia ir de encontro ao disposto em lei complementar.

2.2. Imperiosidade de aprovação das condições contratuais pela Susep
O artigo 7º do PL aduz: "Só podem pactuar contratos de seguros sociedades que se encontrem devidamente autorizadas na forma da lei e que tenham elaborado e aprovado as condições contratuais e as respectivas notas técnicas e atuariais perante o órgão supervisor e fiscalizador de seguros".

Há forte crítica a esse artigo, em virtude da necessidade de aprovação prévia das condições contratuais pelas seguradoras, na contramão do sistema regulatório atual, que exige tal aprovação em poucos casos [3], conformando-se com o registro do produto. Em síntese, a necessidade de aprovação em tela irá prejudicar a inovação, aumentando os custos regulatórios e encarecendo os produtos para os segurados.

2.3. Decadência da possibilidade de recusa da cobertura de um sinistro pela seguradora se ela não for feita no prazo máximo de 30 dias
Artigo 89 do PL: "A seguradora terá o prazo máximo de trinta dias para recusar a cobertura, sob pena de decair do direito, contado o prazo da data de apresentação da reclamação ou do aviso de sinistro pelo interessado, acompanhada de todos os elementos de que dispuser a respeito do fato reclamado, incluídos os documentos previstos no contrato necessários para a decisão".

Esse artigo introduz uma mudança drástica e sem paralelo nas principais leis estrangeiras de seguros. Se não houver a regulação do sinistro em 30 dias após o aviso de sinistro realizado com a apresentação dos documentos previstos no contrato, a seguradora terá que pagar o sinistro em todas as situações. Esse prazo decadencial desconsidera a complexidade do mercado, principalmente em relação aos seguros de grandes riscos, e as particularidades de cada sinistro.

Em diversas modalidades securitárias (v.g., nos seguros garantia e nos seguros do grupo de responsabilidade civil), muitas vezes há discussões sobre quem é o responsável pelo dano (tomador do seguro, segurado ou um terceiro), sendo necessárias perícias especializadas e esclarecimentos complementares. O dispositivo deveria retratar essa realidade. Se a seguradora não cumprir a sua obrigação em 30 dias, já poderá arcar, em especial, com a punição administrativa da Susep e com as consequências da mora: juros, correção monetária, obrigação de fazer etc. Decair do direito é medida inédita e desproporcional, especialmente quando se considera que, ao contrário do que ocorre em grande parte das leis estrangeiras de seguros, não há, no PL, prazo delimitado em dias para o segurado (e/ou o beneficiário) decair do seu direito caso não avise o sinistro tempestivamente [4].

2.4. Necessidade de compartilhamento de todos os documentos produzidos na regulação de sinistro, em descompasso com a posição do STJ
Artigo 82 do PL: "Cumpre ao regulador e ao liquidante de sinistro: (…) II – informar aos interessados todo o conteúdo de suas apurações, quando solicitado; (…)". Artigo 84 do PL: "O relatório de regulação e liquidação do sinistro é documento comum às partes". Artigo 86 do PL: "Negada a garantia, no todo ou em parte, a seguradora deverá entregar ao segurado, ou ao beneficiário, os documentos produzidos ou obtidos durante a regulação e liquidação do sinistro que fundamentem a decisão. Parágrafo único. A seguradora não está obrigada a entregar os documentos e demais elementos probatórios que forem considerados confidenciais ou sigilosos por lei ou que possam causar dano a terceiros, salvo em razão de decisão judicial ou arbitral proferida em processo no qual esteja garantido o sigilo".

A regulação de sinistro é obrigação da seguradora. O seu resultado é de interesse do segurado. Comum às partes é a conclusão do processo. O modus operandi, não, conforme recentemente julgado pelo STJ: "Ainda, apresentar todos os documentos obtidos no procedimento de regulação, a toda evidência, representaria extensa exposição ao mercado do modo de apurar da seguradora e de sua parceira reguladora (know-how de ambas), arriscando ocasionar dissabores, danos morais a segurados e a terceiros beneficiários de seguro, como também dificultando sobremaneira a eficiência da regulação dos contratos de seguro (facilitação de fraudes), a par de, em muitos casos, gerar riscos pessoais a terceiros que prestaram informações ao regulador e a seus funcionários" [5].

Os referidos artigos do PL não respeitam devidamente o sigilo profissional entre advogado e cliente (artigo 25 do Código de Ética e Disciplina da OAB, considerando que diversas regulações contam com a cooperação de advogados), bem como outros importantes argumentos (como a corrente necessidade regulatória de envio de carta justificada em caso de negativa pelo segurador, explicando os principais motivos da recusa, e a sensibilidade do compartilhamento de alguns documentos, especialmente nos casos de suspeita de fraude, considerando também a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, Lei nº 13.709/2018) [6].

2.5. Aparente vinculação, em sede judicial, aos argumentos utilizados pela seguradora para a negativa de cobertura no âmbito da regulação de sinistro
Dispõe o artigo 90, § 4º do PL: "A recusa da cobertura ou do pagamento da indenização ou capital reclamado deve ser expressa e motivada, não podendo a seguradora inovar o fundamento posteriormente, salvo quando depois da recusa vier a tomar conhecimento de fatos que anteriormente desconhecia".

Ora, a instância administrativa não necessariamente vincula a judicial. Se na administrativa a recusa decorrer de um aspecto já considerável suficiente para a negativa, não se questiona que em juízo outros poderão ser aventados na contestação da seguradora. O direito à ampla defesa é constitucionalmente assegurado a todos e o mérito dos argumentos será julgado em concreto pelo magistrado. Não há que se falar em qualquer proibição de utilização de novos argumentos pelo segurador, seja no pedido de reconsideração na fase administrativa, seja na judicialização da demanda, conforme farta jurisprudência na matéria.

2.6. Necessidade de cobertura do sinistro dolosamente provocado pelo beneficiário nos seguros sobre a vida e a integridade física
O § 4º do artigo 113 do PL dispõe que "[n]ão prevalecerá a indicação de beneficiário nas hipóteses de revogação da doação, observados os arts. 555, 556 e 557 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)". Uma das causas de revogação da doação é :"I – se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele" (artigo 557 do CC).

À luz dessa leitura conjunta, pode-se questionar: na prática, se o beneficiário de um seguro de vida tiver cometido homicídio doloso contra o segurado, não irá prevalecer a indicação do beneficiário e será devida a prestação do capital segurado para outra pessoa? A resposta é positiva, conforme expressamente disposto no artigo 71, § 2º do PL: "Nos seguros sobre a vida e a integridade física, o capital segurado, ou a reserva matemática devida, será pago ao segurado ou seus herdeiros, quando o sinistro for dolosamente provocado pelo beneficiário".

Esse artigo apresenta implicações sociais e econômicas perigosas, pois elimina a possibilidade de exclusão do risco de homicídio causado pelo beneficiário. A previsão não encontra paridade nas legislações estrangeiras, e entra em conflito com a jurisprudência brasileira e a prática atual do mercado, que incluem essa exclusão como forma de evitar o aumento do risco moral e garantir o equilíbrio contratual [7].

***

Na segunda parte desta coluna, serão analisados mais oito aspectos controversos do PL [8]. Justificados os motivos pelos quais se argumenta que a aprovação da sua versão atual seria um erro, será defendida, por fim, a criação de uma comissão de juristas para debater e aprimorar o PL 29/2017, com a elaboração de um substitutivo [9].

Registre-se, sem deixar margem para dúvidas, que uma lei de seguros atualizada, equilibrada e que não seja excessivamente intrusiva seria valorizada e recebida com entusiasmo.

 


[1] Diante do provável "aumento expressivo de custos para os agentes econômicos ou para os usuários dos serviços prestados" oriundos de eventual aprovação do PL, embora não obrigatória, seria de todo recomendável a feitura de análise de impacto legislativo seguindo metodologia disposta no Decreto n° 10.411/2020.

[2] Conforme: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. Seguros de grandes riscos no Brasil: que mercado queremos? (Parte 1) https://www.conjur.com.br/2022-jun-14/seguros-contemporaneos-seguros-grandes-riscos-brasil-parte e (Parte 2) https://www.conjur.com.br/2022-jun-15/seguros-contemporaneos-seguros-grandes-riscos-parte2.

[3] Sobre o tema, consulte-se: BERNARDES, Guilherme; GOLDBERG, Ilan. O PLC 29/2017 na contramão do sistema regulatório. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-plc-29-2017-na-contramao-do-sistema-regulatorio-16052023. Conforme destacado pelos autores: "Assim, se mantido na forma que está, o caput do art. 7º do projeto poderá prejudicar diretamente os consumidores e os segurados em geral, já que a autorização prévia para a venda de um seguro inevitavelmente atrairá uma aparente legalidade ao contrato, fortalecendo o argumento de ausência de abuso ou nulidade".

[4] Se o PL inclui um prazo decadencial de 30 dias para a recusa do sinistro, por que não estabelece um prazo igual para o aviso de sinistro pelo segurado? Diga-se de passagem, o prazo de 30 dias para o aviso do sinistro é consideravelmente mais amplo do que o utilizado pelas leis estrangeiras.

[5] STJ, 4ª turma, REsp 1.836.910/SP, rel. min. Luis Felipe Salomão, j. 27/9/2022.

[6] Sobre o tema, seja consentido remeter a JUNQUEIRA, Thiago. Comentários ao art. 765 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. Direito dos Seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 228.

[7] "O beneficiário que seja autor do homicídio do segurado não tem direito ao seguro, não só por falta de causa moral para a obrigação (nemo de improbitate sua consequitur actionem), como também porque a morte é condição do seu vencimento, e reputa-se não verificada (Código Civil, art. 129) a condição maliciosamente provocada por aquele a quem aproveita". PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: vol. 3. Atual. por Caitlin Mulholland. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 447.

[8] A saber: 2.7. Ausência de definição do dever de informação do estipulante aos segurados; 2.8. Dever de informação do candidato a segurado restrito ao questionamento que lhe submeta a seguradora? Incoerência entre os art. 47 e 48 do PL; 2.9. Agravamento do risco: o melhor dos mundos para os segurados? 2.10. Seguro de vida e agravamento de risco: necessidade de cobertura do sinistro pela seguradora; 2.11. Impossibilidade de defesa da seguradora nos seguros em que o risco coberto seja a vida ou a integridade física; 2.12. Critérios genéricos e não técnicos para a ausência de discriminação nos seguros; 2.13. Inversão da lógica da interpretação restritiva nos contratos de seguro; e 2.14. Impossibilidade de alegação de doença preexistente não declarada em caso de estipulação de um prazo de carência pela seguradora.

[9] Para o exame dos trabalhos da comissão de juristas que recentemente atuou propondo melhorias no projeto de lei destinado a regulamentar a inteligência artificial, consulte-se: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/12/01/comissao-de-juristas-aprova-texto-com-regras-para-inteligencia-artificial.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!