Opinião

Verificação preliminar e representação da vítima nos crimes de estelionato

Autores

  • Claudio José Langroiva Pereira

    é advogado e professor doutor de Direito Processual Penal.

  • Marcelo Carita Correra

    é doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) mestre em Direito Penal pela PUC-SP especialista em Direto Penal e Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e em Direito Tributário pela PUC-SP professor Convidado da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo e procurador Federal em São Paulo.

18 de maio de 2023, 17h19

O Código Penal [1], no artigo 171, estabeleceu o crime de estelionato, tendo como espinha dorsal da materialidade, a obtenção, própria ou de terceiros, de vantagem ilícita, mediante o uso de ardil ou outro meio fraudulento para induzir a vítima em erro.

Tratava-se de crime de ação pública incondicionada, característica que foi modificada pela Lei nº 13.964 de 2019 [2], que acrescentou o §5º ao citado artigo 171, para tornar o tipo penal em referência sujeito à representação da vítima (pública condicionada), salvo exceções expressas.

A mudança legislativa precisa ser analisada, em primeiro lugar, sob o prisma da constitucionalidade. Tomando as balizadas fixadas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) no julgamento da ADI 4.424 [3], que tratou da natureza pública condicionada das ações envolvendo violência doméstica no âmbito da Lei Maria da Penha [4], podemos afirmar que, diante da ausência de regulação expressa pela Constituição sobre os tipos de ações penais (pública incondicionada, pública condicionada e privada), cabe ao legislador escolher a sistemática para cada tipo penal.

Contudo, há balizas que o legislador ordinário deve seguir e que são extraídas dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da vedação à proteção deficientes de bens jurídicos. Foi por esse arcabouço teórico que, na citada ADI, o Supremo, por maioria, determinou a natureza de ação pública incondicionada dos crimes abarcados pela Lei Maria da Penha.

Aplicando esses critérios para a mudança legislativa em análise, é possível afirmar, com segurança, que não há violação dos citados princípios constitucionais. Isso porque, no crime de estelionato, o legislador entendeu, com fundamento idôneo, que o principal interesse tutelado é o patrimônio privado e a aplicação da pena tem importância secundária na manutenção da estabilidade do sistema penal.

Fixada a constitucionalidade da mudança legislativa, é preciso destacar que a instauração de inquérito policial demanda não somente a notitia criminis acompanhada da representação da vítima. É mister que a vítima forneça o mínimo de provas da materialidade da conduta ilícita. Ou seja, ainda que diante de autoria desconhecida, é preciso demonstrar, com o mínimo de suporte fático, a existência do dano patrimonial mediante ato de terceiro.

A alteração legislativa poderia sugerir, ainda, que, diante da necessidade de conduta da vítima (representação), haveria redução dos procedimentos policiais, em uma clara incidência do Nudge (Teoria do Incentivo) [5], onde uma pré-condição (não instauração de inquérito) tende a ser mantida, sempre que outro encaminhamento demandar uma ação ativa do interessado.

Ocorre que os dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2022 [6] demonstram que houve, na verdade, aumento dos casos informados às autoridades. Entre 2018 e 2021, a quantidade de procedimentos envolvendo estelionato (incluindo aqueles por meios digitais) no Brasil sofreu aumento de 179,90%. Se considerarmos somente os crimes por meios digitais, o aumento, no mesmo período, foi de 497,50%. Logo, os números demonstram que as supostas vítimas estão acionando as autoridades policiais com mais frequência.

No que tange especialmente às fraudes por meios digitais, sem prejuízo de outras provas que a vítima possa fornecer, é possível recorrer à autenticação de provas digitais por meio de "blockchain", já tendo o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) reconhecido a validade do procedimento [7]. Embora essa providência não seja suficiente para, isoladamente, fundamentar uma condenação criminal, permite a instauração de inquérito policial.

É preciso ponderar que, mesmo diante de casos em que há necessidade de representação da vítima, as condições socioeconômicas de parte da população do Brasil não permitem a realização de autenticação pelo particular, seja por meios digitais ("blockchain") ou por meio de ata notarial. Se pessoas jurídicas podem utilizar os referidos instrumentos com total familiaridade, essa não é a realidade de boa parte das pessoas físicas do Brasil que, como é notório, sequer tem acesso às condições básicas de sobrevivência.

Nessas situações, julgamos que o correto é a utilização, pela autoridade policial, do estabelecido no artigo 5º, §3º do Código de Processo Penal, para, diante da representação da vítima e da demonstração de ausência de meios próprios para realização de provas mínimas da materialidade, instaurar procedimento de verificação preliminar. Isto é, deve instaurar procedimento administrativo policial para realizar as diligências mínimas necessárias para confirmar a existência de materialidade do crime anunciado pelo particular. Caso constatada a materialidade, deve-se instaurar inquérito policial com todas as formalidades legais.

O procedimento de "verificação preliminar" é uma construção com fundamento no citado dispositivo do Código de Processo Penal, que determina à autoridade policial, diante de informação prestada por particular envolvendo crimes sujeitos à ação pública, verificar a procedência das informações fornecidas (existência mínima de justa causa) para fins de instauração de inquérito policial.

Apesar de não ser um procedimento regulamentado em lei federal, há normativos administrativos disciplinando o instituto, como ocorre, por exemplo, no estado da Bahia, onde foi criado o Manual de Procedimentos da Polícia Judiciária [8], estabelecendo os requisitos e as formalidades para instauração e trâmite do procedimento.

Ressalte-se que o procedimento de verificação preliminar, apesar de estar a cargo somente da autoridade policial, deve respeitar as garantias processuais e eventuais abusos podem ser objeto de mandado de segurança e Habeas Corpus, sem prejuízo de responsabilização da autoridade policial nas esferas administrativa e criminal (abuso de autoridade).

Julgamos que essa proposta se coaduna com a novel natureza da ação penal pública do crime de estelionato que, com a modificação legislativa, coloca a vítima no papel de protagonista do agir estatal.


[1] BRASIL. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 04 abr. 2023.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4424, relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/2012.

[4] BRASIL. Lei nº 11.340 de 2006. Disponível em: ww.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 10 abr. 2023.

[5] THALER, Richard H; SUNSTEIN, Cass r. Nudge. Trad. Ângelo Lessa. São Paulo: Objetiva, 2019. Passim.

[6] BRASIL. Anuário da Segurança Pública de 2022. P. 110-111. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5. Acesso em 06 abr. 2023.

[7] BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 1099634-11.2021.8.26.0100. Relator Natan Zelinschi de Arruda. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Julgamento em 20 mar. 2023.

[8] BAHIA. Manual de Procedimentos da Polícia Judiciária. Disponível em: www.policiacivil.ba.gov.br/arquivos/File/ManualdeProcedimentosPoliciaJudiciaria/manual_de_procedimentos_31_05_22.pdf. Acesso em 11 jun. de 2022.

Autores

  • é professor de Processo Penal da PUC-SP.

  • é doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em Direito Penal pela PUC-SP, especialista em Direto Penal e Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e em Direito Tributário pela PUC-SP, professor Convidado da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo e procurador Federal em São Paulo.

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