Opinião

ADIs 5.492 e 5.737: competência jurisdicional e federalismo brasileiro

Autor

  • Ricardo Almeida Ribeiro da Silva

    é professor na pós-graduação de Direito Tributário da Uerj procurador do município do Rio de Janeiro e assessor jurídico da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf).

15 de maio de 2023, 6h06

Importante decisão da Suprema Corte declarou inconstitucionais (sem redução do texto) o §5º do artigo 46 e o artigo 52, do Código de Processo Civil, na medida em que garantiam o foro do domicílio do demandado (inclusive em matéria tributária) nas ações ajuizadas por estados (e municípios). A regra fica valendo apenas para a União. A decisão deverá ser estendida a outras matérias de competência jurisdicional federal, como as vigentes para a Justiça do Trabalho.

O fundamento da decisão colegiada (cujo acórdão ainda será publicado) nas ADIs 5.492 e 5.737 é o sistema constitucional de organização federativa brasileiro, que se reflete na organização do Poder Judiciário em tribunais estaduais, no seu fracionamento em seções, divisões judiciárias e — acrescento, pelo princípio da municipalização e subsidiariedade[1] — nas comarcas.

A exigência de ajuizamento ou o direito de demandar em locais distantes do território e da estrutura administrativa do ente federado atenta não só contra sua capacidade e praticabilidade administrativas, mas coloca em risco o princípio da paridade de armas, em suas dimensões substancial e instrumental, não sendo suficiente o atendimento a requisitos meramente formais (previsão em lei ou asseguramento de oportunidades processuais, por exemplo).

O entendimento adotado pelo STF revela um aspecto objetivo importante na configuração da competência jurisdicional "ratione personae" (elemento subjetivo): o locus territorial como atributo indissolúvel da capacidade federativa. Esta razão é absolutamente convergente com os critérios fundamentais das entidades estatais, pois o território é elemento constituinte da pessoa de direito público.

Trata-se de um arguto desdobramento da competência "ratione personae", por meio da agregação do elemento território à sua configuração. Essa qualificação será importante na definição do tipo de “exceção de incompetência” que poderá ser apresentada pelos entes federados, quando estiverem diante de ações ajuizadas em órgão judiciário situado fora dos seus lindes territoriais.

Por todos esses fundamentos e aspectos, pode-se concluir que a "ratio decidendi" do julgado deve ser aplicada também aos municípios, na medida em que são entes federados autônomos e constituintes da República Federativa do Brasil (artigo 1º da CR88), podendo-devendo demandar ou ser demandado em comarcas, seções e divisões judiciárias correspectivas aos seus territórios, o que se aplicará a outras matérias de competência da Justiça Federal e Trabalhista.

Destarte, vale adiantar que o §1º do artigo 651 da CLT[2], que garante ao trabalhador a faculdade de ser demandado em seu domicílio — nas hipóteses previstas na citada norma processual — deve ser também interpretado conforme à Constituição e nos termos dos julgados proferidos nas ADIs 5.492 e 5.737 enteladas.

Aliás, no caso das demandas trabalhistas, o argumento adotado pelo STF se reforça diante dos ajuizamentos ardilosos de ações contra estados e municípios (especialmente para fins de obtenção da sua "responsabilidade subsidiária") em locais muito distantes dos respectivos territórios, prejudicando a presença e a atuação das representações de procuradores e advogados públicos em audiências e em outros atos da Justiça Laboral — mesmo com as facilitações advindas do "Juízo Digital" — com o evidente intuito de provocar revelia, confissão, perda de prazos ou a simples defasagem na capacidade processual do entes públicos.

Enfim, a decisão representa importante vitória para a higidez dinâmica do federalismo brasileiro, valendo transcrever a conclusão do voto-condutor do ministro Luis Roberto Barroso, verbis:

"14. Ante o exposto, julgo parcialmente o pedido, para atribuir interpretação conforme a Constituição: (i) ao art. 46, § 5º, do CPC, para restringir sua aplicação aos limites do território de cada ente subnacional ou ao local de ocorrência do fato gerador; e (ii) ao art. 52, parágrafo único, do CPC.
15. Proponho a fixação da seguinte tese de julgamento: “É inconstitucional a regra de competência que permita que os entes subnacionais sejam demandados perante qualquer comarca do país, devendo a fixação do foro restringir-se aos seus respectivos limites territoriais."

No link abaixo a íntegra do voto vencedor do ministro Luis Roberto Barroso (seguido por cinco outros ministros, perfazendo o placar de 6 a 4).

Clique aqui para ler o voto de Barroso

 


[1] Tratei deste tema em um longo artigo intitulado “Federalismo Fiscal, Eficiência e Legitimidade: o Jurídico para além do Formalismo Constitucional”. In: “Estado Federal e Tributação. Das origens à crise atual”. Coord.: André Mendes Moreira, Misabel de Abreu Machado Derzi e Onofre Alves Batista Júnior”. Belo Horizonte: Arraes Editores, pp. 53 a 112.

[2] Art. 651 – A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro.            

§ 1º – Quando for parte de dissídio agente ou viajante comercial, a competência será da Junta da localidade em que a empresa tenha agência ou filial e a esta o empregado esteja subordinado e, na falta, será competente a Junta da localização em que o empregado tenha domicílio ou a localidade mais próxima. Redação dada pela Lei nº 9.851, de 27.10.1999

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