Direito em transformação

'Judiciário assumiu protagonismo que gera intimidade com as pessoas no dia a dia'

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14 de maio de 2023, 7h49

De uma década para cá, o Poder Judiciário brasileiro assumiu um protagonismo que suscitou críticas e elogios enérgicos, levando os debates sobre ministros, decisões, juízes e advogados às conversas cotidianas. Essa ascensão aproximou instituições e operadores do Direito das pessoas, que se tornaram mais íntimas das nuances da Justiça. 

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A percepção é do advogado Paulo Coelho da Rocha, sócio-diretor do Demarest Advogados, escritório que completa 75 anos em 2023. "O Judiciário assumiu um protagonismo maior para gerar essa intimidade das pessoas com o dia a dia do que era o próprio Judiciário. O Direito sempre corre atrás das evoluções", sentencia ele. 

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Rocha citou as dificuldades que os legisladores têm para acompanhar as mudanças tecnológicas, e afirmou que o Direito tem evoluído para se transformar e acompanhar as novidades. As tecnologias de inteligência artificial, por exemplo, podem ter de passar por alguma regulamentação para seu uso pela advocacia e pela magistratura, diz ele, ou os próprios escritórios vão adotar suas normas. 

"É uma ferramenta a mais para você ter, mas eu espero que ninguém vá se basear 100% no que fala a máquina. E, para nós (advocacia), a mesma coisa, e ainda vai um pouco além. A nossa ideia não é permitir que o ChatGPT vire uma fonte de consulta legislativa. Porque eu não sei quem é que está alimentando (o algoritmo), se está alimentando com a última versão da legislação, se está alimentando com a doutrina correta, com a jurisprudência correta."

Outro ponto citado pelo advogado é o posicionamento do compliance como pauta prioritária das empresas, interna e externamente, em especial após os desdobramentos da finada "lava jato". As próprias bancas de advocacia também passaram a adotar a prática, que antes era incomum.

"É um jurídico que analisa as nossas contratações, os nossos contratos, participa dos nossos contract checks. Às vezes, você precisa verificar, saber: 'Olha, posso advogar para um concorrente?'".

Leia a seguir a entrevista:

ConJurTendo em vista as transformações que ocorreram na Justiça brasileira nos últimos anos, em especial o protagonismo adquirido pelo STF, o senhor pode nos dizer qual dessas mudanças foi mais impactante do ponto de vista da advocacia? 
Paulo Coelho da Rocha — O ano de 2014 foi um momento curioso para nós, porque foi a primeira vez que eu percebi que as pessoas talvez não soubessem os nomes dos 11 jogadores da seleção, mas sabiam os nomes dos 11 do Supremo. Era um protagonismo que não existia. Foi uma mudança, não importa se para melhor ou para pior. O Judiciário assumiu um protagonismo maior para gerar essa intimidade das pessoas com o dia a dia do que era o próprio Judiciário. O Direito sempre corre atrás das evoluções. É muito difícil o legislador se antecipar plenamente sobre tudo o que vai vir. Qualquer lei que se tente fazer, por mais completa que seja, por mais detalhada, ela pode até ser pior do que uma lei mais rasa, deixando, então, o Judiciário aplicar depois, interpretando com as evoluções que acontecem. Por exemplo, será que o projeto da regularização das Fake News (PL 2630) vai vir ou não vai vir? Então há uma evolução natural do Direito, que vem sempre a reboque dessas novidades. Ele tem de sempre ir se acomodando e tentando se adaptar. 

ConJurUm ponto de virada importante foi a "lava jato", que fez os jornalistas se dedicarem muito mais à cobertura da Justiça. De lá para cá, o que mudou na atuação do advogado, levando em conta os holofotes e o maior escrutínio da sociedade? 
Paulo Coelho da Rocha — Uma mudança fundamental e, digamos, sem juízo de valores aqui, foi o compliance. Outra palavra que as pessoas não tinham no seu vocabulário do dia a dia e, de repente, virou uma palavra corriqueira. O compliance não constava na lista-padrão de auditoria (das empresas). De repente, os nossos clientes começavam qualquer auditoria com compliance, todo mundo estava muito preocupado com aquilo. E compliance não parava só na própria empresa-alvo, ia também para as empresas com as quais elas se relacionavam. Então tem início um efeito dominó, que eu enxergo com bons olhos. E o que aconteceu se refletiu na nossa prática. Todos os escritórios, nós inclusive, tivemos nossas áreas de compliance crescendo muito, porque era uma demanda dos clientes. 

ConJurDentro do escritório também existe a preocupação com o compliance da advocacia?
Paulo Coelho da Rocha — Acho que nós somos um dos primeiros escritórios a ter o nosso próprio chief compliance officer. Então nós temos um advogado do escritório dentro do escritório. É um jurídico que analisa as nossas contratações, os nossos contratos, participa dos nossos contract checks. Às vezes, você precisa verificar, saber: "Olha, posso advogar para um concorrente?". Há certas indústrias em que há concorrentes muito fortes, que qualquer um sabe. Então, esse nosso jurídico interno faz parte disso, o que é um reflexo da própria pergunta agora: "O que nós mudamos?".

ConJurAinda nessa  perspectiva de transformação, outro setor que também se popularizou foi o das agências de investimento, além do mercado financeiro. Tem muito mais gente com carteira de investimentos diversificada agora do que há alguns anos. Como o escritório se moldou a essa evolução, com o "mercado" também sendo alçado ao protagonismo?
Paulo Coelho da Rocha — As regras vão se modernizando, se sofisticando, a CVM vai tendo um papel cada vez maior. É natural que nós tenhamos um número de players mais variado também. Eu enxergo com bons olhos, acho que essa é a modernização do mercado de capitais. O Brasil responde por metade do volume de operações de M&A (fusões e aquisições, no jargão econômico) na América Latina. Então essa é a força que o Brasil tem na região. É natural que a gente tenha um mercado de capitais que também seja pujante, que seja representativo, relevante e que atraia cada vez mais investidores para cá, porque realmente as regras funcionam. 

Recentemente, a CVM criou sandbox regulatórios, que permitem que startups, ou outras empresas em desenvolvimento, consigam operar com um nível menor de exigências, mas talvez com escrutínio maior. Não basta ter o mercado só das empresas já estabelecidas, é preciso também dar espaço para que o empresário tenha vontade de investir, de tentar uma ideia nova, de tentar desenvolver. 

ConJurProcessualmente, o que é mais difícil nessas ações que envolvem grandes empresas, como M&As? Às vezes há demandas urgentes das corporações que são difíceis de atender por causa dos prazos do Judiciário… 
Paulo Coelho da Rocha — As operações de M&A têm um timing para acontecer. Então elas começam assim e, de repente, vamos subindo, as negociações vão se afunilando e, na maior parte das vezes, temos uma data. "Ah, eu estou fechando um ano", ou "preciso fechar o semestre". A gente também vive um pouco de prazo. Não são só os prazos judiciais que a gente tem ali, mas são prazos da própria operação, do próprio negócio. E a gente costuma sempre dizer: "Olha, nós não vamos ser o gargalo". Às vezes você tem um cliente que tem uma visão sobre um timing que talvez não seja muito realista, pelo número de coisas em aberto que estão acontecendo para que tenhamos realmente uma operação que feche. Mas a gente vai sempre empurrar para que aconteça. 

ConJurExiste algum gargalo legislativo hoje, do ponto de vista do mercado? No caso dos criptoativos, por exemplo, o Brasil ainda engatinha no sentido de regulamentar, legislar e ter a sua própria forma de lidar com isso…
Paulo Coelho da Rocha — Antes era ausência total (de leis sobre criptoativos), agora temos uma legislação, que eu acho que está sendo benéfica. Você tem aí a CVM, o Banco Central se empenhando especialmente para definir o que é o ativo virtual. De novo, a legislação correndo atrás, às vezes, do etéreo, de uma tecnologia abstrata. Essa lei do ano passado (Lei 14.478, que versa sobre ativos virtuais) é um marco importante para que todo mundo possa realmente se desenvolver em um ambiente um pouco mais regulado, com as regras mais claras. 

ConJur O senhor tem clientes e trabalha em operações de M&A que envolvem empresas de energia e mineração, áreas que possuem uma legislação complexa. Como atuar com esse emaranhado legislativo e o que é mais desafiador nessas operações? 
Paulo Coelho da Rocha — Elas envolvem um nível de atenção muito grande, porque estamos mexendo com agentes reguladores, com legislações muito fortes. A legislação ambiental do Brasil é uma das mais fortes do mundo. Ali temos, realmente, muitos atos que são criminalizados. Quando há operações envolvendo empresas dessa indústria, é preciso ter mais cuidado ainda, porque têm coisas que, às vezes, não são preto no branco. Então falamos de um dano ambiental, por exemplo. Quem causou o dano? Foi você ou foi quem estava antes? Qual é a proporção do dano? E a legislação ambiental, apesar de ser estadual, também é forte. Se você opera em uma área, você entra na cadeia de responsabilidade daquela área.

ConJur —  A recente mudança de governo exigiu do Demarest algum tipo de adaptação? O que mudou para o escritório?
Paulo Coelho da Rocha — São dois aspectos principais. Um deles é que temos, de repente, um pouco mais de questionamentos dos clientes. E a gente tem um pouco desse feeling para passar para eles. E agora? Os projetos de infraestrutura vão parar, vão continuar, privatização vai ter, não vai ter? Vai ter mais compliance, vai ter menos compliance? A gente dá ali a nossa percepção totalmente empírica. Um segundo aspecto é interno. Nós, como qualquer outro negócio, temos de nos preparar para o que a gente acha que vai acontecer na frente. Em quais áreas eu invisto mais, em quais áreas eu cresço mais, em quais áreas talvez não deva investir… Então a nossa estratégia como escritório também vai ser moldada. Tem um pouco dessa percepção, de imaginar o que vai ser, especialmente os primeiros dois anos. Acho que é ali que se pode realmente determinar o que vai ser o mandato inteiro. Depois entra-se em velocidade de cruzeiro, já sabendo o que melhorou e o que piorou. 

ConJurE o que o seu feeling diz sobre esse novo governo?
Paulo Coelho da Rocha — Acho que a gente não vai ter a mesma agenda de privatização do governo anterior, para ficar em um exemplo. Mas, ainda assim, é preciso ter investimento através de infraestrutura pesada de que o país precisa. Talvez ele faça com uma outra configuração, uma outra roupagem. Mas é preciso continuar fazendo porto, aeroporto, estrada, Minha Casa, Minha Vida… O país não para em função da nova administração. Acho que a gente tem tido boas aberturas de legislação, de mercado, que vão fazendo com que essas coisas aconteçam. Então eu sou, no geral, muito otimista e não vou deixar de ser aqui também. Talvez o BNDES vai ter um papel diferente? Eu acho que vai. Mas aí é porque é política de governo, não é uma questão da economia, do mercado, de como as empresas se comportam. Esse é o desafio do governo: passar a confiança, passar credibilidade e segurança jurídica, porque isso, no final do dia, é muito importante. 

ConJurSobre inteligência artificial aplicada no Direito: o que há de positivo e de negativo no uso do ChatGPT pelos advogados? E, do outro lado do balcão, como o senhor vê o uso dessas ferramentas por juízes, desembargadores e promotores?
Paulo Coelho da Rocha — É uma ferramenta a mais, mas eu espero que ninguém vá se basear 100% no que fala a máquina. E, para nós (advocacia), a mesma coisa, e ainda um pouco além. A nossa ideia não é permitir que o ChatGPT vire uma fonte de consulta legislativa. Porque eu não sei quem é que está alimentando (o algoritmo), se está alimentando com a última versão da legislação, se está alimentando com a doutrina correta, com a jurisprudência correta. A fonte legislativa é aquela fonte chancelada pelo governo. É dali que eu tiro o que a lei é, qual é a lei atual, e é a mesma coisa com a jurisprudência. As ferramentas são excelentes, interessantes para muitas coisas, mas há um limite de onde podem chegar. Isso não quer dizer que a gente tenha de ser avesso a essas tecnologias. A gente tem muito mais a ganhar abraçando as tecnologias, mas sabendo usá-las. 

ConJurOAB, CNJ e procuradorias vão ter de regulamentar o uso dessa tecnologia em algum momento? 
Paulo Coelho da Rocha — Talvez. (Isso) Tem que ser dito, se não eu acho que os próprios escritórios vão ter essas políticas internas sobre o que pode e o que não pode ser feito. Mas, de novo, como tudo, sempre as regras vêm a reboque das inovações. 

ConJurO Demarest tem investido e se posicionado internamente e externamente em relação à diversidade no escritório. Como isso influencia na efetividade das decisões obitdas? Sabemos que há muito discurso sobre esse tema, mas, na prática, como trazer pessoas de perspectivas e vivências distintas enriquece o escritório? 
Paulo Coelho da Rocha — Com pessoas iguais em uma sala, nós vamos pensar mais ou menos igual. Mas será que esse é o melhor? E estou aqui falando de qualquer diversidade. Pode ser gênero, raça… De repente, já vai ter uma outra ideia de criatividade que você não teria. Ela vai ter uma percepção de uma outra questão ali, uma outra coisa que vai apertar o seu calo, que você não tem. É importante ter alguém que ajude a traduzir, às vezes, o que outras pessoas que não são iguais a você pensam. Hoje em dia, até para as grandes empresas, se você não quer fazer (aplicar políticas de diversidade e inclusão) porque não acha que seja bom, faça porque economicamente vai dar resultado. Eu já ouvi cliente dizendo: "Olha se você me aparecer com um time de homens brancos héteros, don’t bother, não precisa nem vir". Já tive outro cliente que me ligou e disse: "Escuta, considere não vir com outro homem". É o cliente ligando para falar isso. Então você vê o que realmente há por trás disso. 

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