Opinião

O anonimato no direito autoral: a disputa judicial entre Banksy e Full Colour Black

Autor

  • Marcela Demeterco Ruaro

    é graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná integrante da Clínica de Direito e Arte e do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial da UFPR.

12 de maio de 2023, 21h15

Em novembro de 2022, o grafiteiro Banksy acusou a marca de roupas Guess de utilizar-se de seu trabalho para vender peças de sua nova coleção de roupas e, por meio de seu Instagram, incitou que ladrões furtassem mercadorias da loja [1]. O caso chocou o público nas redes sociais e fomentou discussões acerca dos direitos do artista sobre seus grafites, visto que Banksy possui identidade anônima e que seus grafites não necessariamente são realizados com autorização.

Poucos dias antes da campanha da Guess ser lançada nas lojas, o European Union Intellectual Property Office (Euipo) proferiu uma decisão permitindo que Banksy, por meio de seu departamento de autenticação Pest Control, volte a ter direitos de marca registrada sobre uma das obras mais famosas do artista: Monkey Image. A disputa levou alguns anos e teve desdobramentos interessantes, levantando questionamentos acerca de diretos autorais sobre propriedade artística e direitos de marca, com o agravante do anonimato, e da constante rebeldia e ironia do artista.

O caso iniciou quando a empresa de cartões Full Colour Black contestou o direito de marca registrada de Pest Control sobre a obra Love is in the Air (Flower Thrower) — criada por Banksy em 2003 nas ruas de Jerusalém, em que um jovem parece jogar um projétil, uma bomba, ou uma pedra, mas joga um buquê de flores —, afirmando que Pest Control não possui a obra como marca registrada para explorá-la seriamente, logo, deveria permitir que a loja a usasse em seus cartões. A empresa informou que, desde 2010, buscou contato com Banksy, seu time e advogados, para oferecer o pagamento de royalties, mas o artista recusou.

A Full Colour Black produz cartões ilustrados com grafites públicos do artista, não os que são registrados como marca. Trata-se de uma pequena empresa que fabrica cartões com obras do grafiteiro por amar seu trabalho e querer disponibilizá-lo para seus fãs, tendo em vista que Banksy não costuma comercializar seus trabalhos com a mesma acessibilidade [2].

Orientado por seus advogados e visando desbancar o argumento de que não seria titular do direito de marca registrada sobre a obra para sua exploração na distinção de produtos ou serviços, Banksy criou uma loja pop-up em Croydon, no sul de Londres, chamada Gross Domestic Product. A loja é completamente satírica e foi criada pelo time do artista apenas para enquadrar-se em uma categoria de marca registrada sob as leis da União Europeia, e proteger seus direitos autorais. Como o próprio artista declarou na época, essa seria, possivelmente, a razão menos poética para fazer uma exposição de arte.

A solução desagradou os examinadores do caso, que entenderam que o artista nunca quis realmente registrar a obra Flower Thrower como marca para criar ou manter uma quota de mercado através da comercialização de mercadorias, mas sim, apenas para contornar a lei, o que foi considerado como atitude de má fé e fez Pest Control perder o registro.

O grupo de examinadores também analisou que o completo anonimato do artista poderia ser problemático em disputas futuras, considerando que, se Banksy não pode ser identificado como dono inquestionável de seus trabalhos, torna-se complexo para o judiciário agir em prol da tutela de seus direitos autorais sem questionar se ele realmente possui tal titularidade.

Com essa decisão, todo o portifólio de obras de Banksy que seu departamento de autenticação registrou como marcas ficam vulneráveis e podem ser qualificadas como fraude, caso também tenham sido registradas com a intenção de proteger propriedade artística, e não de efetivamente serem exploradas enquanto marca [3].

Foi o que ocorreu com a obra, e marca registrada, Monkey Image, criada pelo artista em 2002 de forma comissionada por uma balada em Brighton, na qual um macaco usa uma tábua de sanduíches, na qual se lê a frase "Laugh now, but one day we’ll be in charge" [4]. A Full Colour Black formalmente se opôs ao registro da marca, afirmando que ela havia sido registrada de má fé e era não distintiva. Seguindo a decisão anterior, o Euipo, em maio de 2021, declarou o registro inválido. Apesar das decisões desfavoráveis, Pest Control refez as demandas de registro de marca das obras e recorreu das decisões [5].

No início de novembro de 2022, o Euipo anulou a decisão tomada acerca da obra Monkey Image, argumentando que não foi possível realmente comprovar comportamentos de má fé, e clarificando que o fato de uma marca registrada também ser uma obra de arte sujeita à proteção de direitos autorais não deve significar que ela não pode atuar como marca [6]. De tal forma, Banksy recuperou o registro de Monkey Image e espera-se que o mesmo ocorra com Flower Thrower.

Diante do complexo cenário dessa disputa, cabe analisar brevemente o funcionamento dos direitos autorais no Reino Unido, em comparação com os direitos de marca, para entender o que levou Banksy a buscar pelo segundo, ao invés do primeiro, e quais são as consequências jurídicas de seu anonimato nesses aspectos.

Os direitos autorais do grafite no Reino Unido seguem uma lógica muito parecida com a brasileira. O Criminal Damage Act — que trata dos crimes contra a integridade da propriedade — determina que o grafite criado sem autorização do proprietário do imóvel em que o trabalho é realizado, torna o artista sujeito a sanções criminais [7][8]. Assim, enquanto Banksy não revela sua identidade, ele consegue realizar trabalhos de forma completamente não autorizada, sem enfrentar possíveis sanções criminais.

Contudo, como inclusive apontado nas decisões do Euipo, o anonimato de Banksy atrapalha a tutela jurídica de seus direitos autorais, visto que o fato de sua identidade ser desconhecida o impede de reivindicar pessoalmente pela proteção. O que parece não ser um problema para o grafiteiro, que já declarou considerar que "direitos autorais são para fracassados" [9].

Nessa linha, o grafiteiro declarou em seu site que continua a encorajar cópia, empréstimo e uso sem créditos de imagens de suas obras para propósitos de diversão, ativismo e educação. Todavia, ele se posiciona contra a reprodução em massa das obras para distribuição com finalidade lucrativa, afirmando que vender reproduções, criar uma linha de mercadorias, ou realizar imitações de produtos Banksy apresentando-os como "oficiais" é ilegal, errado e pode resultar em ações judiciais [10].

Fato é que, sem revelar sua identidade, Banksy poderia ter alguma dificuldade em obter êxito em ações judiciais neste sentido, mesmo que a legislação de direitos autorais lhe seja favorável. E, justamente por isso, o artista buscou registrar algumas de suas criações mais famosas como marcas em nome de Pest Control, seu departamento de autenticação, buscando, assim, contornar os direitos autorais, e ainda assim, assegurar a não reprodução de seus trabalhos em massa para fins lucrativos.

O direito autoral é voltado para a proteção de criações artísticas e literárias. Ele surge automaticamente, quando o artista produz a obra, gerando direitos morais perpétuos ao autor, e direitos patrimoniais (decompostos em direitos de representação e reprodução) que duram até 70 anos após a morte do artista, antes de entrarem em domínio público. O direito autoral também atribui ao autor a exclusividade da possibilidade de agir em justiça pela reivindicação de seus direitos, em caso de violações.

Cabe destacar que as criações artísticas protegidas pelo direito autoral devem ser, preferencialmente, humanas, afinal, este direito possui um caráter fortemente personalista, tendo como uma de suas funções centrais, a proteção do artista como parte frágil.

Por outro lado, segundo a Corte de Justiça da União Europeia, a marca possui a função essencial de garantir uma identidade de origem [11], ou seja, o direito de marca é voltado para a proteção de símbolos utilizados por empresas para diferenciar seus produtos e serviços dos demais ofertados pelo mercado.

O direito de marca trata-se de uma propriedade industrial, que não possui o mesmo caráter personalista dos direitos autorais, gerando quase que exclusivamente direitos patrimoniais. Tais direitos só existem após o devido registro da marca, e duram por dez anos, podendo ser renovados perpetuamente. Além disso, cabe destacar que, devido ao caráter mais comercial do direito de marcas, estas podem mais facilmente ser de titularidade de uma pessoa jurídica.

Dado o cenário jurídico, ao registrar suas obras como marca em nome de seu departamento de autenticação (pessoa jurídica), Banksy preserva sua identidade, garante uma proteção potencialmente perpétua dos grafites, e, quando surge algum problema jurídico, como a disputa com a Full Colour Black, pode agir em reivindicação de seus direitos, por meio do Pest Control, sem precisar atuar pessoalmente, prejudicando seu anonimato e colocando-se à mercê de sanções criminais por grafites realizados sem autorização.

Entretanto, essa proteção levanta alguns questionamentos. O primeiro seria se uma obra de arte pode ser registrada como marca, e conforme já respondeu o Euipo em sua última decisão: Sim, o fato de uma obra poder ser protegida por direitos autorais não impede que ela seja protegida pelo direito de marca.

O segundo, e mais importante, seria se realmente é possível considerar as obras Flower Thrower e Monkey Image como marcas, no sentido de serem símbolos que distinguem a origem de produtos ou serviços no mercado. Ou, se o registro de Pest Control foi uma tentativa bem-sucedida de contornar a lei de forma a preservar a identidade de Banksy e ainda garantir tutela jurídica para as obras.

Fica o questionamento, também, se essa última decisão do Euipo foi tomada de caráter excepcional devido a relevância artística e política de Banksy, ou se vai consolidar um entendimento que pode abrir precedentes para que mais artistas busquem o mesmo registro para suas criações.

No que tange à situação com a Guess, não foram divulgadas informações além do fechamento da loja para o público após as incitações de Banksy em seu Instagram. Contudo, dado o cenário, cabe buscar analisar se os grafites que foram usados para estampas e para divulgar as mercadorias da coleção eram registrados como marca por Pest Control, ou não.

 


Referências bibliográficas

Banksy accuses clothing brand Guess of "helping themselves" to his artworks. BBC, 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/news/entertainment-arts-63682298. Acesso em: 7 dez. 22.

POLLAUD-DULIAN, Frédéric. Propriété Intellectuelle : La Propriété Industrielle. 2ª edição. Paris : Economica, 2022.

PRYOR, Riah. The last laugh? EU rules in favour of challenged Banksy trademark. The Art Newspaper, 2022. Disponível em: https://www.theartnewspaper.com/2022/11/16/the-last-laugh-eu-rules-in-favour-of-challenged-banksy-trademark. Acesso em: 7 dez. 22.

SHAW, Anny. To be or not to Bbay: Will Banksy take control of his market with "approved used dealership"?. The Art Newspaper, 2019. Disponível em: https://www.theartnewspaper.com/2019/10/16/to-be-or-not-to-bbay-will-banksy-take-control-of-his-market-with-approved-used-dealership. Acesso em: 7 dez. 22.

SHAW, Anny. Banksy loses trademark battle over his famous Flower Thrower image. The Art Newspaper, 2020. Disponível em: https://www.theartnewspaper.com/2020/09/17/banksy-loses-trademark-battle-over-his-famous-flower-thrower-image. Acesso em: 7 dez. 22.

SHAW, Anny. Not laughing now: Banksy loses second trademark case over famous monkey image. The Art Newspaper, 2021. Disponível em: https://www.theartnewspaper.com/2021/05/20/not-laughing-now-banksy-loses-second-trademark-case-over-famous-monkey-image. Acesso em: 7 dez. 22.

UNITED KINGDOM. Destroying or damaging property. Criminal Damage Act of 1971. Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1971/48/section/1. Acesso em: 7 dez. 22.

 


[1] Banksy accuses clothing brand Guess of "helping themselves" to his artworks. BBC, 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/news/entertainment-arts-63682298. Acesso em: 7 dez. 22.

[2] SHAW, Anny. To be or not to Bbay: Will Banksy take control of his market with :approved used dealership"?. The Art Newspaper, 2019. Disponível em: https://www.theartnewspaper.com/2019/10/16/to-be-or-not-to-bbay-will-banksy-take-control-of-his-market-with-approved-used-dealership. Acesso em: 7 dez. 22.

[3] SHAW, Anny. Banksy loses trademark battle over his famous Flower Thrower image. The Art Newspaper, 2020. Disponível em: https://www.theartnewspaper.com/2020/09/17/banksy-loses-trademark-battle-over-his-famous-flower-thrower-image. Acesso em 7 dez. 22.

[4] Ria agora, mas um dia estaremos no comando

[5] SHAW, Anny. Not laughing now: Banksy loses second trademark case over famous monkey image. The Art Newspaper, 2021. Disponível em: https://www.theartnewspaper.com/2021/05/20/not-laughing-now-banksy-loses-second-trademark-case-over-famous-monkey-image. Acesso em: 7 dez. 22.

[6] PRYOR, Riah. The last laugh? EU rules in favour of challenged Banksy trademark. The Art Newspaper, 2022. Disponível em: https://www.theartnewspaper.com/2022/11/16/the-last-laugh-eu-rules-in-favour-of-challenged-banksy-trademark. Acesso em: 7 dez. 22.

[7] Destroying or damaging property: A person who without lawful excuse destroys or damages any property belonging to another, intending to destroy or damage any such property, or being reckless as to whether any such property would be destroyed or damaged, shall be guilty of an offence.

[8] UNITED KINGDOM. Destroying or damaging property. Criminal Damage Act of 1971. Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1971/48/section/1. Acesso em: 7 dez. 22.

[9] "Copyright is for losers" – declaração de Banksy em seu livro Wall and Piece de 2005.

[10] SHAW, Anny. To be or not to Bbay: Will Banksy take control of his market with "approved used dealership"?. The Art Newspaper, 2019. Op. cit.

[11] POLLAUD-DULIAN, Frédéric. Propriété Intellectuelle : La Propriété Industrielle. 2ª edição. Paris : Economica, 2022. P. 786.

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