Opinião

Avanço tecnológico não gera desemprego

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11 de maio de 2023, 7h04

"Leis há que o legislador compreendeu tão pouco, que são contrárias ao próprio objetivo que se propôs". (Montesquieu) [1]

Há uma famosa história  e deveras engraçada  envolvendo o economista e Prêmio Nobel Milton Friedman. Diz-se que ele teria ido visitar a China nos idos dos anos 70 para conhecer o modelo econômico estatizado. A delegação chinesa o teria levado a um local onde uma obra pública estava sendo executada. Chegando ao local, Friedman teria ficado escandalizado com o que viu: homens com pás cavando buracos. Ele então perguntou aos burocratas chineses: "Mas porque vocês não utilizam retroescavadeiras e máquinas para fazerem o trabalho?". Foi-lhe dito: "Mas isto é um programa do governo de geração de emprego; se utilizássemos todas essas máquinas, não conseguiríamos gerar tantos empregos". Friedman cravou: "Ah! Eu achei que o objetivo da obra era construir um canal. Se é gerar empregos o que vocês querem, retirem-lhes as pás e lhes entreguem colheres…". Friedman se utilizou do famoso reductio ad absurdum: leve o argumento às últimas consequências para demonstrar o absurdo inerente a ele.

Esta pequena história, para além de render algumas boas risadas, nos ajuda a pôr em evidência um mito da economia e das relações de trabalho: o "desemprego tecnológico". Para a nossa Constituição, um dos direitos dos trabalhadores encerra justamente a proteção contra a automação (artigo 7º, XXVII). Parece-nos ser esse um sintoma daquele problema já antecipado por Pontes de Miranda, em sua famosa frase: "Quem só Direito sabe, nem Direito sabe". Nós do Direito temos uma pretensão de nos colocarmos acima da humanidade para, através do Direito, mediante "canetadas", salvar o mundo, acabando por produzir males involuntários. E isso ocorre pela falta de humildade em estudar, ou ao menos considerar, outras ciências, dentre elas, a Economia. Se existe um ramo do Direito em que a interdisciplinaridade é fundamental é o Direito do Trabalho, pois as relações trabalhistas costumam permanecer imersas na desgastada luta de classes marxistas que mais prejudica do que beneficia o trabalhador.

Uma primeira máxima deve ser afirmada: o trabalho é um fator de produção, logo, escasso. Sem trabalho humano não existe economia, produção, mercado, geração de riquezas. Nas palavras de Von Mises, "o trabalho humano é ao mesmo tempo adequado e indispensável para a realização de qualquer processo ou sistema de produção que se possa imaginar" [2]. As latas de atum e as caixas de leite nos supermercados não são concessões benevolentes da natureza. A riqueza não é algo dado: o homem deve criá-la por meio do trabalho. Sempre será assim. Não importa quão avançado seja o nível tecnológico a que a humanidade atinja: o trabalho humano é um fator imprescindível do progresso humano e da produção material e imaterial de riquezas.

A segunda máxima que se deve estabelecer é esta: o trabalho é um meio, e não um fim em si mesmo. Por meio do trabalho a humanidade persegue uma finalidade, que é a produção, vale dizer, produção de bens e serviços para a satisfação das necessidades humanas. Daí que o trabalho deve ter por efeito a produção, isto é, da sua execução deve resultar resultados, materiais ou imateriais, que satisfaçam essas necessidades humanas. Mas quando se perde de vista esta finalidade do trabalho (produção), recai-se no erro de ver o trabalho como fim em si mesmo (gerar trabalho pelo trabalho). Stuart Mill, em uma frase aparentemente contraditória, esclarece: "O trabalho é indispensável para a produção, mas nem sempre tem por efeito a produção" [3]. Para produzir, o trabalho humano sempre será indispensável, mas do trabalho humano não resultará, necessariamente, produção, se se cometer o equívoco de vê-lo como um fim em si mesmo. Daí os "empregos-colher": a entrega de um trabalho ao homem como um fim em si mesmo, mero dispêndio de força física ou intelectual sem qualquer utilidade ou resultado sensível. Ainda hoje vemos exemplos dessa mentalidade, que gera esses "empregos-colher": ascensorista de elevador; frentista [4]; entre outros que poderíamos achar por aí, nos quais a pessoa que está empregada neste tipo de trabalho é condenada a inutilidade social. Aí está outro aspecto que passa despercebido: este tipo de trabalho é cruel e desumano com o próprio trabalhador: enquanto as necessidades atuais exigem formas de trabalhos que exigem capacitação específica, o trabalhador é marginalizado quando passa tempo empregado em um trabalho inútil e sem qualquer benefício para ele e para a sociedade.

Mas voltemos à pergunta central: as máquinas geram desemprego? Numa visão imediata e superficial, a resposta seria sim, pois, onde ali havia um trabalhador, pensa-se, agora há uma máquina. Essa visão superficial ignora inúmeros fenômenos [5]:

1) a própria máquina exige trabalho humano para existir (aquele que projetou a máquina, aquele que a construiu, aquele que faz a sua manutenção…), e, portanto, a sua existência, longe de negar o trabalho humano, postula-o (fala-se como se as máquinas fossem uma espécie de praga que cai do céu num determinado dia devastando “plantações de trabalhadores”);

2) a máquina reduz o custo de produção e aumenta o lucro da empresa, e, assim sendo, o capitalista inevitavelmente trilhará por um destes três  e talvez até mesmo os três simultaneamente — caminhos: a) aumentará a expansão da sua indústria; b) investirá em outra; c) ou aumentará o seu consumo próprio. "Em qualquer uma das três direções", pondera Hazlitt, "estará aumentando o emprego" [6]. Oferta e procura sobre mercadorias em geral, influencia a oferta e procura por trabalho, que também é, não custa recordar, uma mercadoria. As necessidades humanas sempre estarão sendo demandadas em várias direções da economia, e a oferta para satisfazê-las exige procura do trabalho para a respectiva produção;

3) a máquina, tornando a produção mais barata, torna o produto mais barato, aumentando o seu consumo, o que exige uma produção para atender essa nova demanda, o que gerará tanto ou até mais emprego do que antes era exigido quando a produção era feita sem a máquina [7]. Isso sem falar, como lembra o economista Say [8], que o principal beneficiário da baixa do preço não é senão…o próprio trabalhador, evidentemente, a classe mais pobre. Diz ele:

"Embora possa parecer paradoxal, não é menos verdade que, de todas, é a classe operária a mais interessada no sucesso dos progressos que poupam a mão-de-obra, pois é ela, a classe indigente, a que mais aproveita do baixo preço das mercadorias e a que mais sofre com a carestia. Se ainda fôssemos apenas capazes de transformar o trigo em farinha pelas forças das mãos, o operário certamente teria mais dificuldades em alcançar o preço do pão, e se não tivesse inventado o ofício de tricotar, ele não usaria meias."

Como lembra Hazlitt, existe uma "múltipla personalidade econômica", de modo que todos nós somos, a um só tempo, trabalhador, empregador e consumidor. Boa parte dos erros involuntários das leis trabalhistas e consumeristas, sempre com a nobre intenção de "proteger" o vulnerável, decorre de se enxergar a pessoa desconsiderando essa "múltipla personalidade econômica" inerente a todos nós, e uma lei que supostamente beneficia o trabalhador  ou que até mesmo o beneficie no curto prazo como trabalhador  quase sempre o prejudica como consumidor, poupador, investidor etc.

4) finalmente, as máquinas, aumentando a produtividade do trabalho humano, aumentam, por consequência inexorável, os salários. (Mises explica que esse aumento do salário ocorrido pela produtividade pode ocorrer ainda que a produtividade individual do operário não ocorra, bastando que ocorra o aumento da "produtividade marginal do trabalho").

É verdade que as máquinas, quando efetivamente substituem o trabalho braçal, podem gerar, no curto prazo, um desemprego momentâneo, e neste ponto programas como o seguro-desemprego, ainda que seja desvirtuado por alguns, mostram a sua utilidade: por meio do seguro-desemprego se consegue proteger o trabalhador nesses momentos de transição em que uma forma de trabalho é abandonada e o trabalhador precisa de tempo para se realocar no mercado. Com essas cautelas, no geral e no longo prazo, o avanço tecnológico beneficia o próprio trabalhador, seja como trabalhador, seja como consumidor, enfim, como pessoa humana.

Assim, olhar o trabalho pelo trabalho pode gerar situações constrangedoras, que podemos ilustrar recorrendo ao reductio ad absurdum feito por Friedman. Façamos alguns. Se é verdade então que a lei deve proteger o trabalhador contra a tecnologia, proponhamos uma lei que proíba o uso de e-mail e WatsApp, afinal, a utilização desses métodos tecnológicos destrói quantidades gigantescas de cartas que poderiam estar sendo diariamente distribuídas, logo, destruindo incontáveis empregos de carteiros… Mais uma: acabemos com as máquinas que soltam comandas nas entradas das padarias! Sem elas, geraríamos muitos empregos de "entregadores de comandas"… O que não se percebe nesses raciocínios falaciosos, pela falta de estudo da ciência econômica, é aquilo que Von Mises chamou de "caráter não específico do trabalho humano": enquanto a máquina que solta comandas só pode fazer isto especificamente e nada mais, o trabalho humano, pode, além de "soltar comandas" (!?), executar mil e outras funções, justamente pelo seu "caráter não específico". Assim, a máquina, nesse aspecto, poupa o trabalhador de fazer um trabalho inútil para ir ajudar na verdadeira produção. Na síntese certeira de Bastiat, o efeito da máquina "não é tornar o trabalho inerte, mas liberado para outras tarefas" [9].

E não é só: vale lembrar que o avanço tecnológico traz formas de trabalhos que antes não existiam. É possível contabilizar a quantidade gigantesca de empregos que a Internet gerou  e ainda gera  para o mundo inteiro? A migração das grandes empresas de comunicação para o Youtube não está gerando uma quantidade razoável de novas vagas de trabalho, seja em tecnologia, seja em publicidade? A própria Justiça, ao se automatizar, não precisou se valer de inúmeros profissionais de "T.I." e engenharia eletrônica para a elaboração e manutenção das tecnologias do processo digital? Não se pode dizer o mesmo do Ministério Público e outros órgãos públicos? Quantas pessoas estão empregadas para atuar nesse setor específico, e que, até um tempo atrás, sequer imaginávamos que iria existir? Não é possível afirmar, mesmo sem qualquer estudo específico, que os aplicativos de comida aumentaram vertiginosamente a demanda por "motoboys"? Essa demanda por motoboys, não aumenta a demanda por motocicletas, que, por sua vez, aumenta a produção delas, que exige também mais trabalho humano? As demandas humanas vão deslocando o trabalho para onde ele mais urgentemente necessitado, e o progresso tecnológico contribui nesse processo por meio de novas formas de trabalho que aumentam a produção e diminuem o custo da produção, reduzindo o respectivo preço. Desse modo, com o avanço tecnológico, "não é mais o inventor que colhe os benefícios da sua invenção. É o comprador do produto, o consumidor, o público, aí compreendidos os operários – em suma, a humanidade" [10].

Enfim, vê-se que o mito do desemprego tecnológico, apesar de ser frontalmente desmentido pela palpitante realidade, é um dos que permanece mais arraigados na mente humana. O desconhecimento desses fenômenos faz com que a intervenção do Estado se justifique perante os olhos de todos, pois estas intervenções vêm sempre acompanhadas de discursos com forte carga emocional em favor dos desfavorecidos e vulneráveis, e então a intervenção recebe um apoio instintivo de todos. O pior é que esse quadro estimula, nas autoridades, o desenvolvimento de um inveterado paternalismo, pois as práticas intervencionistas, como diz Say, "excitam o amor próprio dos que dispõe do poder, pois dão a estes um ar de sabedoria e de prudência, além de confirmarem a sua autoridade, a qual parece tanto mais indispensável quanto mais frequentemente se exerce" [11]. É justamente aquele ar de superioridade que os operadores do Direito têm em relação ao resto da humanidade, acreditando que tudo reclama a pronta intervenção dos que dominam a arte suprema de conhecer e decifrar as leis. Quão proveitoso seria se esses "tutores da humanidade", renunciando essa presunçosa tarefa de direcionar a humanidade rumo à felicidade eterna, adotassem o conselho de Benjamin Constant: "Para um povo progredir, basta que o governo não o estorve. O progresso é inerente à natureza humana. O governo que a deixa em paz já a favorece bastante" [12].

 


[1] MONTESQUIEU. Do espírito das leis, Trad. Roberto Leal Ferreira, 2ª Edição, São Paulo: Editora Martin Claret, 2015, p. 743.

[2] VON MISES, Ludwig. Ação humana, Trad. Donald Stewart Jr., São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 170.

[3] MILL, John Stuart. Princípios de economia política, Vol. 1, Trad. Luiz João Baraúna, Nova Cultural, 1988, p. 57.

[4] Vide a Lei 9.956/2000, que "Proíbe o funcionamento de bombas de autosserviço nos postos de abastecimento de combustíveis e dá outras providências".

[5] HAZLITT, Henry. Economia numa única lição, Trad. Leônidas Gontijo de Carvalho, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010, p. 58.

[6] HAZLITT, Henry. Economia numa única lição…, p. 59.

[7] BASTIAT, Frédéric. Fréderic Bastiat, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010, p. 59; SAY, Jean-Baptiste. Tratado de Economia Política, Trad. Balthazar Barbosa Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 93.

[8] SAY, Jean-Baptiste. Op. cit., p. 94.

[9] Op. cit., p. 56.

[10] BASTIAT, Frédéric. Op. cit., p. 58.

[11] Op. cit., p. 173.

[12] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos, Trad. Joubert de Oliveira Brízida, Rio de Janeiro, TopBooks, 2007, p. 570.

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