Interesse Público

Observações sobre o decreto federal do sistema de registro de preços

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

11 de maio de 2023, 8h00

A ata de registro de preços, conforme definição legal, é documento vinculativo e obrigacional, que terá vigência de um ano, podendo ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso, nos moldes autorizados pelo caput do artigo 84. Via de consequência, o laço obrigacional que une o fornecedor à ata pode chegar a dois anos. E ainda que não se materialize a prorrogação, em um ano uma série de fatores estranhos à vontade do particular pode impactar o custo do objeto, seja ele qual for refletindo no preço.

Spacca
A Lei nº 8.666/93 nada dizia a respeito. Mas o revogado Decreto nº 7.892/13 previa a possibilidade de alteração de preços apenas quando isso implicasse a redução do montante a ser pago. Para os casos em que o preço de mercado se tornasse superior aos preços registrados e o fornecedor não pudesse cumprir o compromisso, a previsão normativa era liberá-lo do compromisso assumido, caso a comunicação ocorresse antes do pedido de fornecimento, quando então não seriam aplicadas as penalidades se confirmada a veracidade dos motivos e comprovantes apresentados. Passo seguinte, se poderiam convocar os remanescentes para negociação

Ao final, caso não se chegasse a bom termo a negociação, contemplava-se a revogação da ata, ignorando os percalços que a medida pode provocar. Revogar a licitação pressupõe quase sempre (se a demanda persiste) dar início a novo certame. Para além da questão temporal e do gasto transacional de recursos financeiros envolvidos nas concorrências e pregões, realizar nova licitação pode significar mudanças de agenda e atrasos nos cronogramas, por exemplo.

Soma-se a isso o fato de que instaurar e realizar novo certame não é certeza de que os futuros preços (futuras propostas) serão menores. Na nova licitação é mais provável que novos e mais elevados valores, gestados no ambiente de mercado, sejam apresentados, visto que a proibição de conceder a revisão da ata faz com que os licitantes passem a considerar e incorporar na sua proposta todas as margens para o imprevisto, elevando seus custos e, por conseguinte, aumentando o valor registrado. Esse ciclo vicioso faz com que a administração pública pague valor mais elevado, pois assume, antecipadamente, os riscos de majoração que, muitas vezes, podem não ocorrer.

Sabe-se, por outro lado, que a Lindb, incluído expressamente no artigo 5º da Lei nº 14.133/21, determina, no seu artigo 20, que nas esferas administrativas as decisões não sejam tomadas com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as suas consequências práticas. Determina, ainda, que tenha-se a demonstração da necessidade e pertinência da medida tomada de desfazimento do contrato e a justificativa de não adoção de outras possíveis alternativas.

O caminho do legislador atual apresenta-se mais razoável especialmente se consideramos que a ata, segundo a nova lei, pode ser prorrogada por mais um ano, caso seja demonstrado que ela permanece vantajosa.

Felizmente, o novo Decreto Federal 11.462/23 atribui ao órgão ou à entidade gerenciadora a competência para conduzir as negociações para alteração ou atualização dos preços registrados. E mais adiante se faz referência novamente a idêntica possibilidade, quando disciplina o edital que deve trazer as condições para alteração ou atualização de preços registrados, conforme a realidade do mercado e observado o disposto no artigo 25 ao artigo 27.

O artigo 25, por sua vez, afirma a possibilidade de alterar e atualizar os preços registrados seja em decorrência de eventual redução dos preços praticados no mercado ou de fato que eleve o custo dos bens, das obras ou dos serviços registrados, nas seguintes situações:

I – em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução da ata tal como pactuada, nos termos do disposto na alínea "d" do inciso II do caput do artigo 124 da Lei nº 14.133, de 2021;

II – em caso de criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais ou superveniência de disposições legais, com comprovada repercussão sobre os preços registrados; ou

III – na hipótese de previsão no edital ou no aviso de contratação direta de cláusula de reajustamento ou repactuação sobre os preços registrados, nos termos do disposto na Lei nº 14.133, de 2021.

O artigo 27 do novo decreto reconhece que se o preço de mercado superar o preço registrado e o fornecedor não poder cumprir as obrigações estabelecidas na ata, será facultado ao fornecedor requerer ao gerenciador a alteração do preço registrado, mediante comprovação de fato superveniente que o impossibilite de cumprir o compromisso. Para tanto, o § 1º do artigo 27 exige que o fornecedor encaminhe, juntamente com o pedido de alteração, a documentação comprobatória ou a planilha de custos que demonstre a inviabilidade do preço registrado em relação às condições inicialmente pactuadas

E caso se atualize o preço registrado, diante das alegações e documentos apresentados pelo fornecedor, o órgão ou a entidade gerenciadora devem observar a realidade dos valores praticados pelo mercado, consoante prevê o § 5º do mesmo artigo 27. Ato subsequente, nos moldes do § 6º, serão avisados os órgãos e entidades que tiverem celebrado contratos decorrentes da ata de registro de preços sobre a efetiva alteração do preço registrado, para que avaliem a necessidade de alteração contratual. A pretensão do fornecedor pode não ser acolhida, porque não comprovado o fato superveniente que inviabilize o preço registrado. Nesta situação, o pedido será indeferido e o compromisso do fornecedor se preserva, sob pena de cancelamento do seu registro, nos termos do disposto no artigo 28, sem prejuízo da aplicação das sanções legais (§ 2º do artigo 27). Abre-se assim o dever de convocar os fornecedores do cadastro de reserva, observada a ordem de classificação, a fim de checar se eles mantêm os preços registrados. Deve-se proceder ao exame dos documentos habilitatórios dos convocados, um a um, como preconiza o § 3º artigo 18. Ou seja, o cadastro de reserva será formado sem a prévia realização da habilitação.

Apenas se não houver sucesso nas negociações com os personagens constantes do cadastro de reserva e, claro, apesar de o decreto não mencionar, também na hipótese de um fracasso geral na habilitação, cancela-se a ata de registro de preços, nos termos do disposto no artigo 29, e se adota a medida cabível para a obtenção da contratação mais vantajosa.

Não mais se menciona expressamente a revogação. Pergunta-se: a ausência de menção tem algum propósito? Pode se concluir que cancelada a ata a licitação perde sua vitalidade, pelo que o efeito prático é o mesmo. Não conseguimos imaginar efeito distinto deste.

Importante destacar que, assim como já ocorria sob a luz do Decreto Federal 7.892/13, a alteração dos preços registrados pode se dar para baixo, a fim de acompanhar os preços praticados no mercado. O então artigo 18 é hoje substituído pelo artigo 26 no atual Decreto Federal 11.462/23, com pequenos ajustes.

Deixa-se claro que o fornecedor que não aceitar reduzir seu preço aos valores praticados pelo mercado será liberado do compromisso assumido quanto ao item registrado, sem aplicação de penalidades administrativas. Ele continuará vinculado no que toca aos demais itens não afetados pela redução (artigo 26 § 1º).

Na hipótese de se liberar o fornecedor, repetem-se as etapas já previstas no artigo 27, convocar os fornecedores do cadastro de reserva, na ordem de classificação, para verificar se aceitam reduzir seus preços aos valores de mercado. Fracassada a tentativa de negociar, cancela-se a ata e busca-se a medida apta a propiciar a contratação mais vantajosa. O § 4º do artigo 27 é igual ao § 3º, do artigo 26.

Se o preço for reduzido serão comunicados os órgãos e entidades que tiverem celebrado contratos com base na ata para que avaliem a conveniência e a oportunidade de diligenciarem negociação com vistas à alteração contratual (§ 4º do artigo 27)

Parece haver uma sutil diferença entre o impacto da redução e do aumento do preço no que toca aos contratos celebrados por outros que não o órgão gerenciador. No caso de redução, como acima descrito, os demais contratantes devem avaliar a conveniência de também negociar, mas no caso do aumento, a redação parece afastar qualquer possibilidade dissonante de também praticar o aumento, ao dizer que haverá comunicação a todos os contratantes sobre "a efetiva alteração do preço registrado", embora também diga que eles devem examinar a necessidade de mudança contratual. 

Estamos sempre buscando uma explicação para os distintos detalhes, mas nem sempre há. Ou, por vezes, não conseguimos compreender as opções normativas. Esse parece ser o caso

Há também algumas observações interessantes sobre o cancelamento da ata de registro de preços e suas consequências. A Lei 14.133/21 prevê o cancelamento da ata e remete-se ao edital tratar do tema. Claro que se o edital pode fazê-lo, a opção do ente federativo poderá ser a de unificar a disciplina fixando em decreto as referidas hipóteses. Padronizar, via atos normativos, estaria, inclusive, em consonância com o que prescreve a Lei em diversos dispositivos, em especial o artigo 19, inciso IV.

O Decreto Federal 11.462/23 prevê no seu artigo 15, inciso VIII, que o edital deve trazer as hipóteses de cancelamento do registro de fornecedor e de preços, de acordo com o disposto nos artigo 28 e artigo 29. Mantém-se a lógica do decreto revogado que, como dito, tanto cuidava do cancelamento do registro do fornecedor e dos preços. Nos moldes do artigo 28, cancela-se o registro do fornecedor quando:

I – descumprir as condições da ata de registro de preços sem motivo justificado;

II – não retirar a nota de empenho, ou instrumento equivalente, no prazo estabelecido pela administração sem justificativa razoável;

III – não aceitar manter seu preço registrado, na hipótese prevista no § 2º do artigo 27; ou

IV – sofrer sanção prevista nos incisos III ou IV do caput do artigo 156 da Lei nº 14.133, de 2021.

Em todos os incisos, percebe-se que o comportamento do fornecedor desencadeou o cancelamento do registro, o que reforça a necessidade de ampla defesa e contraditório, relembrados no § 2º.

Mas há uma curiosidade. No último inciso do artigo 28, o comportamento do fornecedor teria levado à aplicação das sanções de impedimento ou declaração de inidoneidade. Todavia, ainda que no último caso se possa criticar o comportamento, o § 1º do artigo 28 admite que o órgão ou entidade gerenciadora, motivadamente, mantenha o registro, se os efeitos temporais da sanção na hipótese prevista no inciso não superem o prazo de vigência da ata de registro de preços.

Ou seja, se a ata tem prazo de validade que supera o tempo da sanção, o fornecedor estará impactado enquanto vivencia os efeitos da reprimenda. Mas, a depender da decisão administrativa, após exauridos os efeitos temporais da sanção, se ainda vigente a ata, o fornecedor poderá ser novamente demandado.

Louvável que assim se preveja, dado que se resgata a utilidade da ata. Causa-nos estranheza, contudo, a aplicação do referido parágrafo, diante da reprimenda de inidoneidade que, à luz do § 5º do artigo 156 durará no mínimo três anos. Apesar do esforço, não conseguimos identificar como a ata estaria válida (dado que durará no máximo dois anos), se a citada sanção marcará o fornecedor por no mínimo três anos.

Cancelado o registro do fornecedor, o § 3º prevê a possibilidade de se convocarem os licitantes que compõem o cadastro de reserva, observada a ordem de classificação.

Veja-se que aqui a redação é distinta do que diz o § 3º do artigo 27 que trata de alteração dos preços com vistas à redução. Lá a convocação é escrita como imperiosa e os convocados devem dizer se aceitam manter seus preços registrados. Novamente não conseguimos compreender a diferença redacional.

O artigo 29 disciplina o cancelamento total ou parcial dos preços registrados, nas seguintes hipóteses, desde que devidamente comprovadas e justificadas:

I – por razão de interesse público;

II – a pedido do fornecedor, decorrente de caso fortuito ou força maior; ou

III – se não houver êxito nas negociações, nos termos do disposto no § 3º do artigo 26 e no § 4º do artigo 27.

O artigo 21 do revogado Decreto Federal 7892/13 previa o cancelamento diante de caso fortuito ou força maior, que prejudicasse o cumprimento da ata, razão de interesse público ou a pedido do fornecedor.

A regra atual é mais ampla até porque o Decreto Federal 11.462 é mais empático ao fornecedor que reclama alterações de preço diante do aumento do preço de mercado em relação ao registrado (artigo 27).

Finalmente, é importante esclarecer que a contagem do prazo de validade da ata de um ano e, nos moldes do artigo 22 do Decreto Federal 11.462/23, será contado do primeiro dia útil subsequente à data de divulgação no PNCP. Nada obsta que se conte de outra forma, havendo norma estadual ou municipal que assim disponha porque não há na Lei 14.133/21 regra a respeito.

Autores

  • é advogada, visiting scholar pela George Washington University, doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em mediação, conciliação e arbitragem pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (Idde), professora da graduação, mestrado e doutorado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora do mestrado da Faculdade Milton Campos, professora Visitante da Università di Pisa e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA).

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