Opinião

Aferição da gratuidade da justiça no Recurso Especial 1.988.687

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10 de maio de 2023, 6h07

É legítima a adoção de critérios objetivos para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido de gratuidade de Justiça formulado por pessoa natural, levando em conta as disposições dos artigos 98 e 99, § 2º, do Código de Processo Civil? A resposta a essa pergunta definirá o Tema Repetitivo atualmente em discussão perante o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.988.687–RJ.

Uma das perspectivas de resposta é realizada através da denominada análise econômica do direito, por meio da qual se busca avaliar as consequências individuais e coletivas da decisão, evitando-se a mera retórica formalista muitas vezes presentes nas decisões do Poder Judiciário [1].

A juseconomia pondera as vantagens e desvantagens. Embora exista um esforço por parte de seus estudiosos para explicitar que não se resume apenas a aspectos financeiros, não é incomum que as avaliações que se utilizam deste ponto de vista resultem em juízos nas quais o custo monetário é o único ou o principal fator considerado. A pergunta acima acaba por se resumir à seguinte: Qual é o custo financeiro aos cofres públicos e quanto pode ser economizado no caso de adoção de critérios objetivos?

De um modo geral, a análise das consequências individuais e coletivas da decisão é possível não só através da análise econômica, mas por todas as ciências que utilizam o método empírico. Na definição do tema repetitivo — sobre a legitimidade da adoção de critérios objetivos para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido de gratuidade de justiça formulado por pessoa natural —, a deliberação não pode se pautar por limites unicamente monetários, o que seria até mesmo anacrônico.

Atualmente, vem se entendendo, com amparo em considerável doutrinária, acolhida em muitas decisões judiciárias, que o conceito de hipossuficiência envolve inúmeros fatores. Um deles é o critério econômico, que, todavia, não é o único. Esta nova perspectiva coloca no centro da questão o vulnerável.

Como tive oportunidade de anotar em ação popular "Acesso à Justiça e Vulnerabilidade"[2] até mesmo a noção de pobreza tem sido encarada a partir de uma nova perspectiva, é dizer, como a privação de capacidades básicas, avançando, portanto, de seu conceito tradicional que a identifica como fator decorrente exclusivamente com o baixo nível de renda.

Essa consideração houvera sido ressaltada por Amartya Sen[3], em importante estudo no qual observa que não devem ser esquecidos outros aspectos, a partir dos quais revelam-se variáveis que se apresentam como obstáculo para que se acesse a Justiça.

São vários, portanto, os fatores de vulnerabilidade a serem considerados, como sexuais, sociais, diferenças em razão da localização territorial, idade, questões epidemiológicas, gênero, pertencimento a certas coletividades etc.  

É certo que se trata de uma questão intersecional, ou seja, tais fatores em geral não estarão insulados, eles interligam-se no mundo real, sendo possível que mais de um contribua para a configuração da vulnerabilidade, gerando o que se tem denominado de hipervulnerabilidade. Imagine-se uma mulher (1ª fator) negra (2º fator) e não nacional (3º fator), vítima de violência doméstica (4º fator) e solicitante de refúgio (5º fator) no Brasil, mas que possui considerável patrimônio familiar, em parte registrada em seu nome. Seria razoável se estabelecer um critério objetivo que vede a concessão ou pelo menos a análise da gratuidade de justiça em função da situação patrimonial da parte, exclusivamente? É evidente que não.

A aferição por meio de critérios objetivos com fundamento unicamente na questão financeira ou em limites pré-definidos de patrimônio ou renda consiste, como já se anotou, em via anacrônica. Não que tal fator deva ser excluído da análise, mas ele não pode excluir a possibilidade de se examinar a presença da situação de vulnerabilidade e seus impactos ao acesso à Justiça no caso concreto.

O Anteprojeto de lei ao Código de Processo Civil de Famílias, Civil e Comercial da Província de Buenos Aires, pode auxiliar na solução do dilema enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça[4]. O texto argentino busca estabelecer um sistema de normas processuais que visam à redução de desigualdades entre os sujeitos do processo, tornando o procedimento mais justo. Para isso confere especial atenção às pessoas em situação de vulnerabilidade. Sendo assim, a declaração de vulnerabilidade, dentro do procedimento traçado, atrairá uma série de medidas processuais que visam trazer maior equidade, incluindo a gratuidade de justiça, de forma automática.

No Brasil, nenhuma regra impede que o exame da existência de fatores de vulnerabilidade, que impeçam acesso à justiça — a exemplo da incapacidade financeira, da vulnerabilidade social, circunstancial, informacional, tecnológica e organizacional, entre outras — possa fundamentar a decisão de deferimento ou de indeferimento da gratuidade de justiça. Não parece haver empecilho, também, para a fixação de critérios objetivos, a exemplo de um valor-teto até o qual se presuma a hipossuficiência econômica, para fins de concessão automática do benefício, o que gerará economia processual, com reflexos, inclusive, financeiros, dada a redução de atos necessários para tanto.

Podem também servir como critérios objetivos para a presunção da hipossuficiência econômica a percepção de rendimentos decorrentes de programas oficiais de transferência de renda, de benefícios assistenciais e previdenciários mínimos pagos a idoso ou deficiente. Além disso, é o caso de se questionar se certas matérias, como a promoção de direitos humanos, podem, por si só, justificar a gratuidade de justiça, independentemente de outros fatores.

Esta nova perspectiva se alinha à moderna concepção do Direito Processual, que abandou o formalismo excessivo[5]. A pergunta inicial, então, passa a ser a seguinte: A adoção de critérios objetivos para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido de gratuidade de justiça formulado por pessoa natural atende aos escopos do processo, em especial ao social?[6] A resposta será negativa, a menos que a adoção de parâmetros objetivos sirva para a fixação de critérios que visem estabelecer uma presunção para o deferimento automático da gratuidade, sem que se afaste a possibilidade de análise no caso concreto, quando ultrapassado tal limite — de presunção — a partir dos fatores de vulnerabilidade que se apresentem.


[1] Para uma ideia geral do tema, ver o texto de Ivo de Gico Jr., cujo título é Metodologia e epistemologia da análise econômica do Direito, publicado na Economic Analysis of Law Review EALL.

[2] O livro, na data de fechamento deste texto, encontrava-se no prelo da editora Tirant lo Blanch.

[4] Escrevi sobre o tema em texto intitulado Notas ao incidente de vulnerabilidade: uma primeira aproximação, ao lado de Hermes Zaneti Jr. Ver, também, texto de María José Capelo e María Victoria Mosmann, cujo título é El derecho procesal y los sujetos vulnerables: una mirada comparada entre los ordenamientos de Argentina y Portugal.

[5] Conforme já assinalava Carlos Alberto Alvaro de Oliveria, o formalismo excessivo cedeu lugar um formalismo-valorativo.

[6] Mais sobre o escopo social do processo pode ser encontrado na famosa obra de Candido Rangel Dinamarco, cujo título é A instrumentalidade do processo.

Autores

  • é mestre em Direito e especialista em Direito Processual, defensor público federal, pesquisador do Grupo de Pesquisa Fundamentos do Processo Civil Contemporâneo (FPCC), ligado ao Laprocon (Laboratório de Processo e Constituição) e à Rede Internacional de Pesquisa Justiça Civil e Processo Contemporâneo (ProcNet) e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

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