Opinião

Violência nas escolas, concurso de crimes e o populismo penal

Autor

  • Emetério Silva de Oliveira Neto

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri (Urca).

10 de maio de 2023, 11h17

Nos últimos meses, o Brasil vem convivendo, atônito, com uma triste realidade a que não estava acostumado: perpetração de violentos ataques a escolas e creches em variadas regiões. Para ilustrar, em 27/3/2023 quatro professoras e um aluno foram esfaqueados dentro da Escola Estadual Thomazia Montoro, localizada na capital paulista, sendo que uma das professoras, de 71 anos, veio a óbito. O agressor era um aluno de escola, de apenas 13 anos [1]. Na data de 5/4/2023, um homem invadiu a creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau (SC), com uma machadinha, matou quatro crianças, feriu outras cinco e depois se entregou à polícia [2]. Já em 11/4/2023, três alunos ficaram feridos após um ataque em um Colégio Estadual de Santa Tereza de Goiás e segundo a Polícia Civil o autor do ataque era um aluno da unidade, também de 13 anos [3].

Tais episódios, dentre outros, geraram uma onda de pânico em todo o país, com alunos receosos de irem para as aulas e pais preocupados com o ambiente escolar, até então um local de relativa segurança. Com efeito, tudo isso foi agravado quando logo em seguida viralizaram nas redes sociais ameaças de sucessivos e massivos ataques nas escolas brasileiras [4]. Esse estado de coisas levou o governo federal a adotar algumas medidas emergenciais, como a criação de canal de denúncias contra os ataques e ameaças a escolas e a liberação de R$ 3,1 bilhões para prevenção à violência nas escolas, formando-se um grupo de trabalho interministerial para a realização de atividades nessa linha [5], a exemplo da operação "escola segura", responsável por centenas de prisões, apreensões de adolescentes e buscas em todo o país nos últimos dias [6].

Situações de instabilidade e violência social, como as que ora lamentavelmente estamos enfrentando, não raro fazem medrar vozes em defesa de um Direito Penal mais rigoroso, a ser implementado via modificações legislativas que se voltam basicamente à ampliação do quantum de cumprimento de pena para certos tipos de delitos. Ou seja, intui-se, equivocadamente, que o bom Direito Penal seria aquele que muito encarcera e o faz por longos lapsos temporais.

Todavia, não podemos esquecer que a Constituição de 1988 veda as penas de caráter perpétuo (artigo 5º, inciso XLVII, "b"), razão pela qual o Código Penal brasileiro estabelece que o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 40 (quarenta) anos (artigo 75, com redação dada pela Lei nº 13.964/2019). Além disso, o Brasil adota um sistema progressivo de cumprimento de pena, almejando a paulatina reintegração do apenado à sociedade (v.g.: o sujeito que inicia o cumprimento de pena no regime fechado poderá progredir para o semi-aberto e deste para o aberto).

No mesmo contexto, ao tratar do concurso de crimes, a legislação penal trouxe regras específicas para o cálculo da pena, a fim de que se evite a aplicação de quantitativos de penas privativas de liberdade desproporcionais e inexequíveis, como sói acontecer nas situações de concurso formal ou ideal, em que se aplica ao sujeito a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade (artigo 70, CP [7]), e de crime continuado, em que se aplica ao infrator a pena de um só dos crimes (se idênticas) ou a mais grave (se diversas), aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços (artigo 71, CP [8]), com possibilidade, ainda, de aumento de pena até o triplo para crimes dolosos, praticados com violência ou grave ameaça, contra vítimas diferentes (§ único do artigo 71, CP).

As origens históricas da discussão jurídico-penal sobre o concurso de delitos nos revelam que o objetivo central sempre se cingiu em limitar o âmbito sancionatório em caso de prática de vários delitos, com ou sem pluralidade de ações. Deste modo, criam-se distintas fórmulas para equilibrar, à luz da proporcionalidade, o desvalor de ação e de resultado e a correspondente carga penal, materializada no tempo de pena a ser cumprida.

A vedação ao chamado cúmulo material em determinadas situações, portanto, diferentemente de dar azo à impunidade, como alguns tentam incutir, se mostra em sintonia com os valores constitucionais, acomodando a política criminal ou punitiva nos estritos lindes da razoabilidade. Como consequência, previne o apenado dos deletérios efeitos do cárcere (dessocialização) e evita a aplicação de quantitativo de pena que fuja à sua expectativa de vida.

É um erro acreditar que enrijecendo o sistema de justiça criminal os problemas de violência na sociedade serão ipso facto resolvidos, pois a pena não tem como única finalidade a retribuição e tampouco pode ser utilizada pelo Estado como um instrumento de vingança contra o infrator da lei penal, por mais grave que tenha sido a sua conduta. Mais do que isso, está provado que o cinturão do direito penal não tem o poder de sozinho conter ou prevenir a criminalidade, exigindo-se reforços genuinamente alinhados à satisfação do bem comum, como o incremento de políticas públicas no âmbito carcerário, ainda bastante deficitárias em nosso país.

Com efeito, se em sua acepção original o populismo se expressa pelo ressentimento público contra tudo o que está estabelecido (v.g.: a ordem jurídica e as condições de sua aplicabilidade e execução), o populismo penal, por sua vez, conforme bem pontuado por John Pratt, centrará esforços em propagandear ou tornar popular a falácia de que o Estado beneficia delinquentes em detrimento das vítimas dos delitos (e até da própria sociedade), alimentando sentimentos de nojo, desencanto e desilusão em relação à justiça criminal por parte dos "verdadeiros cumpridores da lei" [9]. Isso demandaria uma rigorosa aplicação do direito posto e bem assim a edificação de uma "legislação penal de emergência", mesmo sacrificando a racionalidade dos instrumentos jurídico-penais, como se mudanças legislativas resolvessem per se a problemática da violência.

A recente onda de violência nas escolas contra professores e alunos acendeu o sinal de alerta na sociedade brasileira, sendo ingente a necessidade de se envidar esforços para debelar essa problemática. Todavia, não será no reducionismo populista que encontraremos a melhor saída, pois a iniciativa de tornar as leis penais mais duras tem pouca efetividade se comparada à implementação de amplas políticas socioeconômicas que reflitam na prevenção do crime.

 


[7] Verbis: "Art. 70 – Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior. Parágrafo único – Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código".

[8] Verbis: "Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. Parágrafo único – Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código".

[9] Veja-se, a esse respeito: PRATT, John. Populismo penal. In: Revista de Ciencias Penales, Sexta Época, Vol. XLI, Nº 4 (2014), pg. 46. No mesmo sentido: PRATT, John. Penal populism. London: Routledge, 2007, pg. 12-13.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri (Urca).

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