Opinião

Violência escolar, escrituração do gasto público e responsabilidade administrativa

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

7 de maio de 2023, 13h24

A escola é um ambiente em que devem ser possibilitadas aos indivíduos perspectivas de crescimento pessoal com ênfase em seu pleno desenvolvimento, seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o trabalho, conforme assenta o artigo 205 da Constituiçãoderal.

O direito à educação possui uma característica peculiar no sentido de que requer consideráveis somas de destinação de carga orçamentária e disponibilidade financeira para garantir estruturas aptas a darem vazão aquele direito fundamental humano.

Fernando Frazão/Agência Brasil
Fernando Frazão/Agência Brasil

A estruturação de um ambiente escolar requer a criação de arranjos institucionais complexos e que se interliguem por intermédio de ações correlacionadas, a teor do projeto político pedagógico, da matriz remuneratória que objetiva induzir valorização dos profissionais, bem como da própria construção da escola e adaptação correlata à infraestrutura e acessibilidade.

O custo escola, portanto, demanda atenção específica do ordenador de despesas no que diz respeito ao planejamento alocativo da despesa pública em uma perspectiva de potencializar o uso do erário porque a viabilidade escolar não se restringe à criação de uma unidade, mas também às destinações financeiras que possibilitem a sua manutenção.

No que diz respeito às ações de planejamento para colocar essa engrenagem em funcionamento, a normativa pela qual se erige a Constituição moldura o direito à educação à luz do regime de repartição de competências intrínseco ao federalismo.

Dessa forma, o federalismo educacional exige uma força conjunta no sentido de atribuir para todos os entes políticos responsabilidades específicas e, no esteio do artigo 211 da Constituição, é preciso a construção de um regime de colaboração apto a estruturar ações inteligentes para dar vazão àquela obrigação em prestar um serviço público de excelência.

Para isso, a estrutura do direito educacional brasileiro, por intermédio da lei nº 9.394/1996, também conhecida como lei de diretrizes e bases da educação nacional (LDB) divide a educação dois níveis: básica e superior.

Enquanto garantidor universal daquele direito, o estado é obrigado a prestar serviços compulsoriamente somente em relação à educação básica, que se divide nas seguintes etapas: a) pré-escola e creche, b) ensino infantil, c) ensino fundamental e, d) ensino médio.

Sobre a divisão de competências do federalismo brasileiro, compete aos municípios a prestação da pré-escola e creche e ensino infantil, ao passo em que aos Estados a responsabilidade é pelo ensino fundamental e médio.

Enquanto o artigo 9º da LDB outorga competência à União para articular a política educacional brasileira, os seus artigos 10, 11 e 12 estabelecem competências correlatas à organização dos sistemas de ensino dos entes federados.

Embora até pouco tempo houvesse uma controvérsia a respeito da discricionariedade do poder público em ofertar serviços públicos educacionais, ano passado o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento, em sede de repercussão geral, no sentido de que compete ao Estado prestar serviços públicos correlatos à creche e pré-escola nos termos do Recurso Extraordinário 1008166, de relatoria do ministro Luiz Fux, cuja tese fixada possui três vertentes.

A primeira é que "A educação básica em todas as suas fases, educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata".

A segunda possui a dicção de que "A educação infantil compreende creche, de zero a três anos, e a pré-escola, de quatro a cinco anos. Sua oferta pelo poder público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo".

Por fim, o terceiro paradigma fixado foi no sentido de que "o poder público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica".

Acontece que o acesso à educação é indissociável à permanência, pois, conforme prescreve o artigo 206, inciso I da Constituição, o ensino deve ser ministrado com base no princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.

Porém, para dar vazão à carga teórica correlata à prestação dos direitos fundamentais sociais, alçados à categoria de obrigação de fazer, deve o gestor público pensar engrenagens institucionais no sentido de criar estrutura adequada para a oferta daquele tipo de serviço público de maneira satisfatória.

Assim, no afã de atender à carga constitucional que lhe é imposta, deve o ordenador de despesas criar, em um primeiro momento, estrutura para, depois, receber servidores e alunos.

A infraestrutura escolar, como rede de ligação de esgoto, água potável, cadeiras, equipamentos de informática e até mesmo higidez em relação à estrutura física deve ser considerada como o interesse público primário, ao passo em que a contratação de profissionais da educação com a respectiva estruturação de planos de cargos, carreiras e remuneração, e estabelecimento de piso salarial é correlata à teoria do interesse público secundário.

Isso porque é constitucionalmente impossível pensar uma escola sem cadeiras, com goteiras, com problema na rede de energia e dificuldade no que diz respeito às instalações hidráulicas, bem como desequipada de recursos educacionais digitais.

A infraestrutura, pois, é o primeiro passo à concretização do direito humano fundamental à educação.

Nesse sentido, é oportuno informar que está em andamento uma iniciativa inovadora que possui como objetivo romper paradigmas em relação às diretrizes do controle do gasto público. O sistema tribunal de contas tem promovido, encampado pela Atricon (Associação dos Tribunais de Contas do Brasil), uma ação coordenada conjunta em âmbito nacional que objetiva averiguar a situação de infraestrutura nas escolas.

Isso implica em induzir os gestores públicos para realizarem um planejamento estratégico em relação às ações institucionais de maneira transversal por causa do custo que é a criação e a manutenção de um ambiente escolar.

Para isso, existe uma indexação orçamentária mínima que obriga a União a gastar no mínimo 18% de sua arrecadação de impostos, e os estados, o Distrito Federal e os municípios 25%, compreendida a proveniente de transferências, em ações de manutenção e desenvolvimento do ensino.

Além disso, o legislador constituinte derivado garantiu, de maneira permanente, uma fonte específica de custeio a partir da Emenda Constitucional nº 108/2020: O fundo de manutenção e desenvolvimento da educação básica e valorização dos profissionais da educação (Fundeb), que possui vinculação de gasto específico com ações de manutenção e desenvolvimento do ensino, o que também inclui lastro financeiro em relação à folha de pagamento para fins de remuneração condigna dos profissionais da educação básica.

Até então temporário, nos termos do então artigo 60 do ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT), o Fundeb foi constitucionalizado de forma perene e aquela escolha política representa a importância do financiamento do direito educacional, que é um instrumento de concretização do direito à liberdade de expressão.

Depreende-se, pois, que o Fundeb é uma fonte de custeio específica a qual representa uma prioridade vinculante e ao escrever sobre o tema pontua Juarez Freitas que "o Estado Constitucional consagra, explícitas e implícitas, prioridades vinculantes a serem observadas, de modo criterioso, na enunciação e na implementação das políticas públicas". "Nessa medida, crucial que o escrutínio das escolhas públicas esteja endereçado, racionalmente, ao adimplemento das prioridades encapsuladas no direito fundamental à boa administração pública." [1]

Como se vê, ao passo em que atribui múltiplas obrigações ao Estado, como é o gasto com infraestrutura, contratação de pessoal e manutenção de serviços, o constituinte garante uma destinação orçamentária específica para dar vazão ao custeio de políticas públicas educacionais.

Isso significa que o direito educacional é um gasto qualificado, porque possui envergadura estatal com custeio permanente a ponto de que se aquela indexação orçamentária mínima prevista no artigo 212 da Constituição for descumprida, é caso de intervenção federal, nos termos do artigo 35, inciso III, o que faz da plausibilidade do custeio do direito educacional um princípio constitucional sensível.

É oportuno registrar que aquela indexação orçamentária com gastos educacionais possui um recorte temático com ações de manutenção e desenvolvimento do ensino, as quais estão molduradas juridicamente pelo artigo 70 da LDB, e qualquer alocação fora daquele eixo pode resultar em desvio de finalidade e respectiva responsabilização do gestor público.

Ainda sobre financiamento da educação, o Fundeb destina mínimo de 70% do seu custeio para o pagamento de profissionais da educação básica, consoante dispõe o artigo 26 da Lei 14.113/2021.

Existe, pois, uma preocupação em proporcionar eficiência ao custeio da folha do pessoal da educação, que vai além dos professores, e nesse contexto a legislação de regência possui uma previsão específica para um atendimento qualificado à comunidade escolar.

Determina a lei nº 13.935/2019 que as redes públicas de educação básica contarão com serviços de psicologia e de serviço social para atender às necessidades e prioridades definidas pelas políticas de educação, por meio de equipes multiprofissionais.

Inclusive esses profissionais com atuação transversal à sala de aula podem colaborar com o enfrentamento da onda de violência nas escolas que recentemente tem aumentado no Brasil.

Como o ambiente escolar deve ser pacífico, o artigo 12, inciso IX da ldb determina aos estabelecimentos de ensino a obrigatoriedade de "promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática (bullying), no âmbito das escolas".

Nas relações escolares, em que que também há o viés emocional das crianças e adolescentes, a esfera de competência da atuação do professor da educação básica é específica e não consegue albergar o acompanhamento das relações sociais dos alunos, razão pela qual o seu bem-estar deve estar centrado pelas atividades dos psicólogos e assistentes sociais, que juntos, compõem uma equipe multidisciplinar.

Aquele tipo específico de política pública possui um recorte orçamentário na dotação do Fundeb, por intermédio do qual se destina a possibilidade de destinar 30% para os "portadores de diploma de curso superior na área de psicologia ou de serviço social, desde que integrantes de equipes multiprofissionais que atendam aos educandos", consoante prevê o artigo 26-A da lei nº 14.113/2021.

Em outras palavras: há possibilidade de custeio específico para a criação daquelas equipes interdisciplinares.

Ainda em relação ao poder reativo do Estado em relação à violência escolar e a escrituração do gasto público, é preciso fazer um registro no sentido de que não se pode financiar o custeio de serviços de segurança pública com a verba carimbada da educação.

Isso porque a indexação orçamentária mínima do artigo 212 da Constituição e a verba do Fundeb prevista no artigo 212-A possuem finalidade específica que passa longe da possibilidade de custear serviços de segurança pública.

Sobre o custeio de pagamento de pessoal que preste serviços de segurança pública em ações de enfrentamento à violência nas escolas, Élida Grazianne Pinto e Fabrício Motta esclarecem que "segurança pública não é educação, ainda que seja segurança dentro e no entorno das escolas. Em sendo a segurança pública um dever do Estado (artigo 144 da CF/88), executado mediante atividades realizadas pelas forças policiais, não há cabimento em considerar tais serviços como 'atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino'. As atividades de policiamento ostensivo de espaços coletivos e de inteligência policial para prevenção e repressão a delitos são atividades finalísticas autonomamente incumbidas ao Estado, que deve ser prestado a toda a sociedade" [2].

É preciso cautela aos ordenadores de despesa porque destinar recursos educacionais com aplicação vinculada para ações não previstas no artigo 70 da LDB pode incorrer em ilegalidade apta a ocasionar irregularidades quando da apreciação das contas anuais pelos respectivos tribunais de contas, conforme alerta Doris de Miranda Coutinho [3].

É nítido que a jurisdição constitucional entoa preocupação em proteger a finalidade do custeio das ações de manutenção e desenvolvimento do ensino pela força normativa do enquadramento do artigo 70 da LDB, sob pena de responsabilização administrativa.

Inclusive o STF já enfrentou a questão por intermédio da ADI 5.691-ES, de relatoria da ministra Rosa Weber, ocasião na qual foi interpretada a impossibilidade de pagamento de inativos e pensionistas com aquela verba.

Assim, a urgência no enfrentamento da onda de violência escolar requer ações estratégicas e imediatas, mas é preciso cautela no processo de engrenagem alocativa, sob pena de responsabilização administrativa no âmbito dos tribunais de contas.

Que a equipe multidisciplinar composta por profissionais da psicologia e da assistência social possa proporcionar segurança afetiva e resiliência às redes de ensino nesse momento tão delicado da educação brasileira.

Para isso há verba específica para lastrear aquele tipo de gasto público.

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Referências bibliográficas
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 5.691/ES. Relatoria da ministra Rosa Weber.
_________________________.  Recurso Extraordinário 1008166. Relatoria do ministro Luiz Fux.

COUTINHO, Doris de Miranda. Prestação de Contas de Governo. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2020.

FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. Editora Malheiros. 3ª edição. São Paulo/SP: 2014

PINTO, Élida Graziane. MOTTA, Fabrício. Gastos com segurança pública não podem ser custeados com recursos da educação. Revista Digital Consultor Jurídico.


[1] FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. Editora Malheiros. 3ª edição. São Paulo/SP: 2014, p. 30.

[2] PINTO, Élida Graziane. MOTTA, Fabrício. Gastos com segurança pública não podem ser custeados com recursos da educação. Revista Digital Consultor Jurídico. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-abr-20/interesse-publico-seguranca-publica-nao-custeada-recursos-educacao acesso em 25/04/2023.

[3] COUTINHO, Doris de Miranda. Prestação de Contas de Governo. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2020.

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  • é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos e especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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