Opinião

Lei nº 12.529/2011: a "cultura da concorrência" pede (e pode) mais

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4 de maio de 2023, 16h28

Prestes a complementar, no final deste mês de maio, mais um aniversário de vigência da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência) [1], aproveitamos a ocasião para rememorar e sinalizar, brevemente nas linhas que sucedem, um tipo de agenda que tem se fortalecido em prol da "cultura da concorrência" em nosso país, e que, certamente, deve ser encorajada em benefício coletivo.

Ao longo das últimas décadas, notadamente a partir da Lei nº 8.884/1994 em diante, tem sido comum afirmações no sentido de que a cultura da concorrência no Brasil foi paulatinamente se edificando e fortalecendo, fruto de uma série de desenvolvimentos legislativos e reformas institucionais, processuais e substantivas do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) [2], a partir de um relevantíssimo esforço plural e coletivo. Pois bem, longe de pretender definir [3] ou mensurar tal cultura, eis que, além de um conceito fluido e polissêmico, sugere natural complexidade para fazê-lo, haja vista inúmeras variáveis do tecido econômico, social e político envolvidas, nosso propósito é mais modesto, mas não por isso de menor importância. Buscaremos pincelar algumas iniciativas que entendemos oportunas e que contribuem para engendrar, refinar e espraiar a cultura da concorrência [4].

O direito da concorrência é caracterizado por uma densidade técnica que não raro acaba por torná-lo de certo modo "hermético", escapando à apreensão de parcela relevante dos indivíduos de modo geral, constituindo-se em obstáculo para a sua disseminação inteligível e abrangente, o que, por sua vez, dificulta o conhecimento do seu conteúdo justamente pelo titular dos bens jurídicos que a Lei de Defesa da Concorrência visa tutelar, isto é, a coletividade, de maneira a potencialmente limitar o exercício de seus direitos, por exemplo. Se é assim, ciente dessa apreensão não trivial e de seu perene grau de sofisticação na esteira de influxos econômicos, sociais, políticos e normativos, são louváveis projetos e iniciativas que buscam explicar, debater e ampliar temáticas diversas afeitas ao direito da concorrência, muitas delas na fronteira com outras áreas do direito, da economia e de outras ciências.

Dito isso, vislumbramos as iniciativas que pontuaremos a seguir ante uma multifacetada lente de "advocacy" para fomentar e ventilar a cultura da concorrência, matizando, portanto, uma das expressões da advocacia da concorrência, que usualmente focaliza no prisma da autoridade e do seu papel na burocracia legislativa e na interlocução com outros órgãos da Administração Pública [5].

Nos últimos tempos, temos assistido a uma série de iniciativas do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) [6] relativamente à função pedagógica e informativa mediante a publicação de guias, cadernos, estudos de mercado e correlatos [7], para além de cursos gratuitos e online, destacando, dentre outros, cursos em parceria com a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) [8].

O próprio Programa de Intercâmbio do Cade (Pincade) [9] é uma oportunidade ímpar aos estudantes de graduação e pós-graduação no que se refere à agenda de estudos e cultura da concorrência [10].

Outrossim, o Cade tem sido ativo na participação e organização de eventos, buscando sensibilizar a sociedade em geral, sinalizando valores, propósitos e prioridades da defesa da concorrência [11]. Ainda nessa linha, outro exemplo de amplificação das discussões concorrenciais são as sessões de julgamento, públicas e transmitidas em tempo real no canal do Cade no YouTube [12], contribuindo para uma maior "democratização" dos debates.

De igual sorte, em termos de comunicação social, o Cade tem perfil ativo em redes sociais, a exemplo do LinkedIn [13], do Twitter [14] e, mais recentemente, do Instagram [15], denotando esforço de informar e disseminar as atividades institucionais do órgão e alcançar a população mais amplamente, estimulando a interlocução com o público, em consonância com seu plano de comunicação mais recente.

Poderíamos listar uma série de outras importantes ações do Cade nessa agenda, porém, aproveitamos o ensejo para iluminar ações complementares levadas a cabo pela comunidade antitruste e a sociedade civil mais propriamente, capitaneadas por institutos, associações, think tanks, academia e afins, que também contribuem para moldar e espalhar a cultura da concorrência, conscientizando e viabilizando o alcance das discussões. Sem dúvidas, não se trata de trabalho insulado e unilateral do Cade/SBDC, sendo uma agenda positiva e necessariamente permeável.

Nessa seara, vislumbramos inúmeras e virtuosas atividades desempenhadas por esses atores em uma espécie de simbiose com a agenda de advocacy lato sensu, de modo a mutuamente se reforçarem. Por exemplo, é de se ressaltar os valiosíssimos esforços de institutos e organizações na construção de eventos, publicação de pesquisas, colaborações em sede de consultas públicas, audiências e manifestações junto ao Cade, até mesmo junto a outros órgãos e agências com temas transversais ao antitruste, pautando debates e auxiliando na fortificação da cultura da concorrência [16]. Ademais, é extremamente animador constatar o engajamento da academia na discussão, debatendo, com seriedade, problemas e desafios, com iniciativas e produções relevantes para o desenvolvimento da matéria. É louvável verificar a expansão do antitruste em diversas instituições, organizações e universidades ao redor do Brasil, não se limitando ao então "tradicional" eixo de discussão [17].

De modo contíguo, sublinhamos alguns "novos" meios de difusão dessa cultura do direito da concorrência, na forma cada vez mais onipresente de podcasts, que pode ser um meio conveniente de aprender, atualizar e aprofundar os debates, além de se divertir, é claro. Há uma gama fértil de conteúdos sendo produzidos nesses meios, sob a condução de profissionais de referência na área [18].

A "cultura" do podcast no Brasil ganhou escala e contornos de relevo no contexto da pandemia de Covid-19 e, certamente, veio para ficar. Quem sabe o Cade, no futuro, não retome esse canal [19] para divulgação de conteúdos, fortalecendo a outra dimensão da cultura que é a da concorrência.

Ainda que brevemente, acreditamos oportuno trazer essas notas, com vistas a refletir e incentivar o contínuo amadurecimento no que toca ao tema e estratégias de disseminação amplificadas nesse sentido [20]. Decerto, dadas as dimensões continentais do nosso país, um desafio de enorme magnitude consiste em minimamente nivelar o conhecimento, até mesmo em razão de lamentáveis déficits educacionais ao longo do território.

Os atores e as ações exemplificadas acima, de modo complementar e coexistente, contribuem vivamente para estimular a conscientização, a divulgação e o desenvolvimento da matéria concorrencial. Será que bastam? A nosso ver, seria desejável mais, apesar do muito já bem-feito!

Apropriando-se de iniciativas de outras esferas que exigem mais compromissos, integridade, transparência, prestação de contas e boas práticas dos agentes econômicos na relação governança, sociedade e mercado, e incorporando alguns de seus ideais ao antitruste, seriam bem-vindas ações do Cade e da sociedade civil (e entre os próprios agentes econômicos) no espírito de induzir, cobrar e evidenciar com mais substância compromissos empresariais voltados à ética concorrencial, na medida em que iniciativas desse natureza poderiam, dentre outros benefícios, inspirar um efeito catalizador no setor de atuação do agente e em seu entorno, traduzindo uma vertente de responsabilidade social, que também dialoga com a agenda "ESG". Ao fim e a cabo, busca-se sensibilizar e incutir a cultura da concorrência junto à coletividade sob um senso de responsabilidade compartilhada e um ambiente competitivo mais hígido.

Na realidade empresarial, por exemplo, uma das formas de divulgar, estimular e praticar genuinamente a cultura corporativa da concorrência pode se viabilizar  e é desejável que assim o seja — mediante a estruturação e aplicação de um programa de compliance robusto, que inclusive sirva para transbordar ações de sensibilização e práticas positivas de integridade junto aos respectivos pares, parceiros de negócios e no seu entorno. Nada mais acertado, em nossa visão, do que o regulador reconhecer publicamente, confiar e valorizar de forma adequada iniciativas dessa natureza, contribuindo para a sua saudável indução, podendo se pensar em técnicas criativas adicionais de engajamento, à semelhança de ações voluntárias levadas a contento na Controladoria-Geral da União no que concerne à "Empresa Pro-Ética" [21] de observatório de boas práticas empresariais em compliance concorrencial fiscalizada pelo mercado e sociedade civil, de pactos coletivos empresariais de conformidade etc [22].

 

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Ante um olhar prospectivo no intuito de expandir tanto a familiarização temática quanto a sua disseminação consistente, de sorte a diminuir barreiras e assimetrias, seria louvável que os debates atingissem de maneira informada outros atores e camadas da sociedade, expandindo as fronteiras da "comunidade" antitruste para o interior e diferentes rincões do país, de forma clara, acessível e estimulante. Para tanto, poder-se-ia refletir sobre perspectivas diversas [23], nos moldes de campanhas e projetos, por exemplo, como já feito no histórico do antitruste brasileiro, considerando inclusive a salutar parceria entre os entes público e privado para tal fim. Apesar de naturais nuances e complexidades, tal encaminhamento poderia ser útil para ampliar o gradiente cultural, de maneira a robustecer a respectiva cultura da concorrência nacionalmente.

Enfim, para concluir, como já ressaltamos em outra oportunidade neste espaço [24], o enforcement vigoroso do Cade, norteado pelas balizas da legalidade e razoabilidade, é também curial nessa agenda de expansão e adensamento da cultura da concorrência, em uma combinação dos eixos preventivo e repressivo. Não se pode olvidar que a questão da cultura da concorrência não se restringe ao campo do Cade/SBDC na esfera pública  por exemplo, o Judiciário também tem uma contribuição fundamental nesse horizonte, bem como o Ministério Público e outros tantos órgãos e agências  para além de relevantes debates e produções em sede legislativa que se entrelaçam diretamente. De sobremodo relevante, também, é a atuação em parceria com a imprensa para catalisar essa agenda. Definitivamente, não se trata de questão individual tampouco ensimesmada.

Em última instância, ao encaminhar o tema sob esse ângulo multidimensional, ganham o mercado e a coletividade em termos de apreensão do ambiente competitivo e, consequentemente, a cultura da concorrência  ela pede (e pode) mais.


[1] 11º ano de vigência da Lei de Defesa da Concorrência.

[2] Ainda que a incorporação e o desenvolvimento dessa cultura extrapolem as raias da autoridade da concorrência, influenciando e sendo influenciada por outras instituições, atores, normas sociais etc. Vide nota 3 a seguir para mais detalhes.

[3] Ao abordar o tema no âmbito de relatório de grupo de trabalho de advocacy por ocasião da 14ª conferência anual (2015), a International Competition Network (ICN) assim propôs definir "cultura da concorrência": "um conjunto de instituições que determina comportamentos e atitudes individuais e/ou do grupo na esfera da concorrência de mercado. Estes são influenciados por instituições sociais mais amplas e escolhas de políticas públicas, e incluem costumes que impactam o grau de competição e cooperação empresarial dentro de uma jurisdição". (tradução livre). Ver: <http://www.internationalcompetitionnetwork.org/wp-content/uploads/2018/09/AWG_CompetitionCultureReport2015.pdf>. Também mencionamos nota da Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD) quando trata do assunto, em conexão com advocacia da concorrência, ao pontuar que "[a] pedra angular de uma economia de mercado bem-sucedida é a existência de uma 'cultura da concorrência' dentro de um país  uma compreensão do público sobre os benefícios da concorrência e amplo apoio a uma forte política de concorrência. Todas as partes de uma sociedade  consumidores, empresários, sindicatos, academia, comunidade jurídica, autoridades governamentais e juízes  devem ser abrangidos nesse esforço. Esta proposta é agora amplamente aceita. As autoridades da concorrência na maior parte dos países são diligentes em informar os seus cidadãos sobre o valor da concorrência e os seus esforços para promovê-lo" (tradução livre). Ver: <https://www.oecd.org/daf/competition/prosecutionandlawenforcement/32033710.pdf>. Para mais detalhes sobre o tema, ver, por exemplo, FOER, Albert Allen. Competition Culture and the Cultural Dimensions of Competition. GERARD, Damien; LIANOS, Ioannis (ed.). Reconciling Efficiency and Equity: A Global Challenge for Competition Policy. Cambridge, 2019. Sob outro giro, porém dialogando mais amplamente com a questão, sobretudo ante o interessante vetor sociológico apreendido ao fenômeno da concorrência/competição e implicações correlatas, ver: RAMOS, Luis Felipe Rosa. Antitrust and Competition: convergence and divergence in the tropical mirror. Tese (Doutorado em Direito)  Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2019, p. 281. Disponível em:<https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-07082020-150933/pt-br.php>. Todos os links referenciados ao longo deste artigo foram acessados em 03 de maio de 2023.

 

[4] A propósito, um dos objetivos estratégicos do Cade (quadriênio 2021-2024) consiste em "fortalecer a cultura da concorrência no Brasil". Trata-se de objetivo histórico e alinhado com os planos estratégicos que precederam. Ver: "Plano Estratégico CADE 2024: por um Brasil mais competitivo (1ª revisão)". Disponível em: <https://cdn.cade.gov.br/Portal/acesso-a-informacao/institucional/planejamento-estrategico/CADE_Planej_Estrategico_1-Revisao_2022_Atualizado.pdf>.

[5] Para as diferentes formas de expressão/manifestação de advocacia da concorrência (advocacy), ver, por exemplo, relatórios da ICN e da OECD indicados na nota 3 acima. Ver também: IBRAC. Advocacia da Concorrência: propostas com base nas experiências brasileira e internacional. São Paulo: Editora Singular, 2016.

[6] Sob recorte específico, tomaremos o CADE como exemplo, ainda que, no SBDC, a agenda de advocacy também seja endereçada pela Secretaria Especial de Produtividade e Competitividade, Secretaria de Acompanhamento Econômico (e subsecretarias).

[7] O website do Cade é repleto de materiais para consulta. Ver, por exemplo, acervo de conteúdos: <https://www.gov.br/cade/pt-br/centrais-de-conteudo>. Destacamos o importante papel do Departamento de Estudos Econômicos do Cade nesse sentido. Também, vale apontar o periódico científico editado pelo Cade, i.e., "Revista de Direito da Concorrência". Ver: <https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia>.

[10] Sublinhamos também o "Wicade  Competição WIA-CADE de Direito Concorrencial", uma experiência de júri simulado para difusão dos estudos (e da cultura) da concorrência, organizado sob a parceria de Cade e Rede Women in Antitrust (WIA). Ver: <https://competitionwicade.cade.gov.br/>.

[11] Mencionamos, por exemplo, o lançamento de documentário em comemoração aos 60 anos da autarquia, em 2022, bem como ações relacionadas. Para detalhes, ver: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/cade-lanca-documentario-em-comemoracao-aos-60-anos-da-autarquia-nesta-quinta-feira-10-11>.

[12] Para além da disponibilidade presencial. O canal do Cade no YouTube é: <https://www.youtube.com/channel/UCM85SohEsy3kzfSO-iKgoIA>. Há vários conteúdos no canal.

[16] A título de exemplo, Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac), Comissões regionais de Concorrência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Comissão de Concorrência da Câmara de Comércio Internacional no Brasil (ICC Brasil), Rede Women in Antitrust (WIA), Grupo de Estudos de Direito Concorrencial da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp/Ciesp), Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) etc.

[17] Por exemplo, uma iniciativa recente que, a princípio, pode ser oportuna para encorajar outras ideias se refere à criação da Associação Norte-Nordeste de Direito Econômico (Annde). Ver: <https://www.linkedin.com/company/annde/>.

[18] A título exemplificativo de podcasts que abordam o antitruste, mas não necessariamente se limitam ao tema, mencionamos: WIA Podcast (https://open.spotify.com/show/4k0zdA9dUfHuKkixF58OGD); Vantagem Auferida (https://open.spotify.com/show/6lHrBIv0MEIDhrJ7VYzwb6); Direito Empresarial Café com Leite (https://open.spotify.com/show/3rgLXFIScTgCGHqidktCG1), Direito e Economia (https://open.spotify.com/show/5HG5d3Ai6AJJRJAWiBprGq); Inovando Direito (https://podcasters.spotify.com/pod/show/juliana1718) etc.

[19] Por ocasião da Semana Nacional de Combate a Cartéis no ano de 2021, o Cade gravou alguns podcasts com membros do Tribunal, que estão disponíveis na página do Cade no Youtube, por exemplo.

[20] Há uma série de questões mais estruturais que justificam o contínuo encorajamento da agenda de advocacia da concorrência e, por conseguinte, da cultura da concorrência em nosso país, a exemplo do histórico de forte intervenção estatal na economia, da elevada burocracia na infraestrutura, dos problemas crônicos de falta de competitividade etc. Enfim, a própria condição de país em desenvolvimento é um importante fundamento para constantemente fortalecer a cultura da concorrência.

[21] No nosso caso, tais ações poderiam rememorar, mas não se confundir, com a lógica de certificado da Portaria nº 14/2004, da então Secretaria de Direito Econômico.

[22] Oportunamente, pretendemos trazer mais ideias e perspectivas a respeito.

[23] Uma iniciativa interessante no exterior e que poderia inspirar ações semelhantes por aqui, sobretudo para amplificação de alcance, verifica-se na Universidade de Oxford, no âmbito do Centre for Competition Law and Policy (CCLP), referente ao programa pro bono "The value of competition", com o objetivo de apoiar e disseminar a cultura da concorrência no mundo. Para detalhes, ver: <https://www.law.ox.ac.uk/value-competition-programme>.

[24] Ver: Oito anos de Lei de Defesa da Concorrência brasileira: um olhar para o presente-futuro. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-26/proenca-misale-oito-anos-lei-defesa-concorrencia>.

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