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5 destaques da recém-aprovada regulação cripto na Europa (MiCA)

Autor

  • Isac Costa

    é sócio de Warde Advogados professor do Ibmec do Insper e da LegalBlocks doutor (USP) mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM onde também atuou como assessor do colegiado.

3 de maio de 2023, 8h00

Não faltam acrônimos ao jargão cripto (NFT, DeFi, ICO etc.). A "bola da vez" é a sigla MiCA, abreviatura da norma Market in Crypto-Assets, aprovada em 20/4 pelo Parlamento Europeu e com início de vigência previsto para julho deste ano. Trata-se da disciplina jurídica mais abrangente sobre o tema já editada até o momento.

Spacca
Nesse texto, seleciono cinco tópicos que merecem a atenção de quem empreende no setor e de quem está contribuindo para a construção do arcabouço (palavra da moda) normativo de ativos virtuais no Brasil. Esses tópicos são: (1) seu campo de incidência; (2) a tipologia dos criptoativos; (3) requisitos para a oferta de tokens, incluindo o conteúdo mínimo do white paper a ser elaborado pelo emissor de criptoativos; (4) requisitos para os prestadores de serviços; (5) repressão à manipulação de preços e insider trading.

Apesar de a maior parte das empresas do setor terem sede em jurisdições fora da Europa, a European Securities Market Authority (Esma) procurou regular o tema como uma extensão das regras vigentes de proteção a investidores e prevenção à lavagem de dinheiro. Desse modo, buscou-se endereçar os riscos associados às atividades envolvendo criptoativos, bem como prevenir a arbitragem regulatória, isto é, a exploração oportunista de lacunas nas regras de certos países como decorrência da ausência de harmonização normativa.

Com isso, a União Europeia procura consolidar seu protagonismo na regulação de novas tecnologias, na esteira da disciplina da proteção de dados pessoais com a General Data Protection Reguloation (GDPR) e dos serviços digitais com o Digital Services Act.

O primeiro ponto de destaque da MiCA é o seu campo de incidência. De modo semelhante ao regime da Lei nº 14.478/2022 no Brasil, a norma não se aplica aos ativos virtuais que são valores mobiliários, pois estes são regidos pelas diretivas já existentes para o mercado de capitais (Market in Financial Investments Directive – MiFID). Nas hipóteses em que criptoativos são utilizados na infraestrutura de mercado financeiro regulado, foi criado um regime experimental denominado DLT Pilot Regime, vigente desde março de 2023.

A regulação MiCA também não contempla os detalhes da prevenção à lavagem de dinheiro já tratados em outras normas da União Europeia, notadamente as Anti-Money Laundering Directives (AMLD). Ainda, os pagamentos com criptoativos são tratados em uma proposta específica denominada Transfer of Funds Regulation (TFR). Por isso, não encontramos na MiCA a proibição de carteiras autocustodiadas (unhosted wallets) ou detalhes sobre a travel rule preconizada pela Fatf/Gafi (sobre a identificação de beneficiários finais de transações). Ainda, podemos afirmar que a MiCA é um regime apartado da regulação bancária na União Europeia e não traz normas de cunho prudencial direcionadas ao Banco Central Europeu e às demais instituições financeiras.

Adicionalmente, o conceito central para a incidência da norma é o de criptoativo, que se assemelha ao ativo virtual definido no Brasil (representação digital de valor que pode ser transferida ou armazenada eletronicamente) acrescido da menção expressa ao uso de tecnologias de registro distribuído (distributed ledger tecnologies — DLT).

Em segundo lugar, a norma define três tipos de criptoativos: (1) tokens de utilidade, emitidos com o intuito de prover acesso a bens ou serviços fornecidos por seu emissor; (2) token referenciado em ativos (asset-referenced token — ART), cujo valor é referenciado em cestas de moedas soberanas, mercadorias, criptoativos ou outros; e (3) e-money token (EMT), que referenciam uma única moeda soberana. Esta última categoria busca criar um ponto de conexão com o conceito de e-money da regulação europeia já existente (análogo ao conceito de moeda eletrônica da Lei nº 12.865/2013).

As regras da MiCA não abrangem, em princípio, tokens não fungíveis (non-fungible tokens — NFT), mas, a depender da sua emissão em uma coleção, do seu nível de fracionamento ou da existência de certo grau de fungibilidade, a norma pode ser aplicável. É possível que haja muita controvérsia em torno do tema, quando da aplicação das disposições em casos concretos.

A norma traz a importante definição de significância, com critérios quantitativos a partir do quais se considera que há um risco idôneo a atrair a sua incidência (mais de 10 milhões de titulares, mais de EUR 5 bilhões de capitalização de mercado, 2,5 milhões de transações por dia, EUR 500 milhões de volume financeiro diário, e, ainda, critérios qualitativos, dentre os quais merece destaque a hipótese dos tokens emitidos por prestadores de outros serviços relacionados a criptoativos. Esses parâmetros são utilizados para a estipulação de regras mais rígidas de governança e gestão dos ativos que servem de lastro para os tokens, dentre outras exigências direcionadas a emissores e prestadores de serviços, que abordarei a seguir.

Em terceiro lugar, emissores de criptoativos devem notificar a autoridade competente e publicar um documento (white paper) com informações sobre o emissor, o projeto que será financiado com a venda dos tokens, os direitos e obrigações dos titulares, a admissão dos tokens a ambientes de negociação, a tecnologia utilizada, os riscos subjacentes e o impacto do mecanismo de consenso adotado no clima e no meio ambiente. Essas informações e quaisquer outras contidas em material publicitário e redes sociais devem ser consistentes entre si, verdadeiras, claras e não enganosas.

Não é exigido que a autoridade competente aprove o white paper submetido antes da oferta de utility tokens, mas esta poderá ser proibida ou, então, poderão ser solicitadas emendas e inclusões. Contudo, em regra, a emissão de asset-referenced tokens requer autorização prévia e o cumprimento de requisitos adicionais de segregação de recursos, custódia e gestão dos ativos que servem de referência para o valor do token. Apenas empresas constituídas na União Europeia poderão oferecer ARTs naquela jurisdição.

Por sua vez, os e-money tokens só poderão ser emitidos por instituições previamente autorizadas a emitir e-money, que devem cumprir obrigações de atender a resgates, gerir os ativos depositados dentro de certos parâmetros.

Não é permitida a oferta de rendimentos aos saldos detidos por investidores em ART ou EMT (geração de yield).

Outra regra do procedimento de oferta de tokens bastante interessante é a possibilidade de desistência imotivada e sem nenhum ônus por investidores de varejo em até 14 dias após a aquisição dos tokens.

Em quarto lugar, temos os requisitos a serem cumpridos pelos prestadores de serviços associados a criptoativos, que dependerão de licença prévia para exercer a atividade. Instituições já autorizadas no âmbito da MiFID não precisarão de licença adicional, devendo apenas notificar a autoridade competente e demonstrar sua capacidade técnica.

A lista de serviços que requerem autorização contém custódia e administração, gestão de uma plataforma de negociação, permuta de criptoativos por moeda soberana, permuta entre criptoativos, recepção e transmissão de ordens, assessoria em investimentos (advice) e gestão de carteiras. Vale notar que esses dois últimos serviços não foram contemplados na Lei nº 14.478/2022.

Todos os prestadores de serviços de criptoativos devem atender a regras mínimas de governança, salvaguarda dos valores, atendimento a reclamações, terceirização de sistemas e tecnologia, gestão de riscos, divulgação de informações obrigatórias, requisitos prudenciais de manutenção de capital mínimo e observância das regras de prevenção à lavagem de dinheiro.

Há também a previsão de responsabilidade do prestador de serviços por prejuízos a clientes em decorrência de ataques cibernéticos ou falhas operacionais, além do dever de identificação dos clientes (know your client — KYC), da imposição de rotinas de supervisão de abusos de mercado (manipulação e outros ilícitos), de transparência na formação de preços (melhores ofertas e quantidades), dever de melhor execução de ordens e verificação dos produtos ao perfil de risco dos clientes (suitability). Ou seja, normas que tipicamente encontramos na regulação editada pela CVM e não pelo Banco Central (que vem sendo considerado o regulador natural do tema no Brasil).

Nesse contexto, as regras da MiCA aplicam-se a pessoas, empresas e a outras figuras ("certain undertakings") sem personalidade jurídica, uma categoria destinada a englobar decentralized autonomous organizations (DAO) e plataformas DeFi.

Por fim, em quinto lugar, encontramos previsões destinadas a coibir manipulação de preços e uso indevido de informação privilegiada (insider trading), ilícitos que são espécies da categoria "abuso de mercado" (market abuse) na MiFID, termo não utilizado no Brasil. Essas regras devem ter especial impacto na atuação de influencers que recomendam investimentos em criptoativos e empreendedores e colaboradores de empresas de que venham a negociar tokens por elas emitidos.

A seleção apresentada nesse texto não tem a pretensão de exaurir a discussão e vale a pena olhar com cuidado todas as regras trazidas pela MiCA, para identificarmos o que se aplica ou não ao mercado brasileiro e que ideias podemos trazer para cá, na contínua busca pela conciliação entre segurança jurídica e promoção da inovação financeira.

Espero que a MiCA ajude a prevenir o "mico" das ICOs de 2017, quando uma eclosão de ofertas de valores mobiliários disfarçados de "coins" (algumas puramente fraudulentas) e uma atuação agressiva de certos reguladores resultaram em fracassos nas captações públicas de recursos s e afastou os agentes de mercado do desenho de tokens capazes de financiar projetos por meio de relações de dívida e participação (equity), desnaturando-se em fichas de um novo cassino, "utility tokens" com pouca ou nenhuma utilidade.

 

– Texto originalmente publicado em 26/4 pela Agência Estado/Broadcast.

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  • é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec e do Insper, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.

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