Intervenção militar

Ives Gandra diz que sua interpretação do artigo 142 foi 'profundamente distorcida'

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3 de maio de 2023, 8h48

Nos últimos anos, tornou-se recorrente ver bolsonaristas pedindo a aplicação do artigo 142 da Constituição Federal. Em 8 de janeiro, diversos extremistas que atacaram as sedes dos três poderes em Brasília carregavam cartazes requerendo o cumprimento do dispositivo. O que eles queriam, na prática, era uma intervenção militar para anular a vitória do presidente Lula (PT) nas eleições de 2022 e a recondução do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao cargo — ou que generais assumissem o governo.

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O advogado e professor Ives Gandra da Silva Martins afirma que a sua interpretação sobre o artigo 142 foi "profundamente distorcida" por pessoas que desejavam uma intervenção militar.

O dispositivo tem a seguinte redação: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."

Em artigo publicado em 2020 na revista eletrônica Consultor Jurídico, Ives Gandra retomou a discussão sobre o artigo 142. Para ele, em casos excepcionais, em que um poder esteja invadindo as competências de outro, as Forças Armadas podem ser convocadas pelo órgão que estiver sofrendo a interferência, para garantia da lei e da ordem.

"O que eu disse não tem nada a ver com a interpretação que eles fizeram, do que acharam que eu tinha dito. Ninguém queria a interpretação correta do artigo 142. E fizeram uma interpretação própria tentar defender isso [intervenção militar]. Mas eu estou convencido de que há uma distância abissal entre o que eu disse e o que eles interpretaram. O artigo 142 sempre foi muito mal interpretado, e não é uma interpretação minha. A minha interpretação está nos livros que eu escrevi", aponta Ives Gandra.

O advogado declara que nunca houve risco de golpe de Estado. Por ser professor emérito da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército há 34 anos, ele diz conhecer o pensamento dos generais e garante que os militares respeitam a Constituição e não embarcariam em aventuras.

Dessa maneira, Ives Gandra entende que os ataques de 8 de janeiro não configuram uma tentativa de golpe. Embora bolsonaristas pudessem ter essa intenção, eles sabiam que não tinham o apoio dos militares, destaca o advogado. E "nenhum grupo desarmado no mundo inteiro dá golpe de Estado", ressalta. De acordo com ele, o governo Lula deve explicar por que não pediu auxílio às Forças Armadas, mesmo tendo informações de que haveria ataques em Brasília.

Mesmo não tendo votado em Lula nas eleições de 2022 — ele declarou voto em Bolsonaro —, Ives Gandra torce para que o petista faça um bom governo. Para isso, opina que o presidente deve "deixar de ficar brigando com o passado" e aceitar que o Brasil deve passar por um período de austeridade para equilibrar as contas públicas.

Na segunda parte da entrevista concedida à ConJur (clique aqui para ler a primeira parte), Ives Gandra ainda minimizou a importância da minuta do "decreto do golpe", encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, e disse ser contrário instituição de quarentena para militares, magistrados e integrantes do Ministério Público entrarem na política.

Leia a segunda parte da entrevista:

ConJur — Em artigo publicado na ConJur após as eleições, o senhor afirmou que não haveria golpe, mas ressaltou que o STF deveria respeitar a independência dos poderes. O STF não agiu em defesa da democracia após os constantes ataques à Corte promovidos pelo governo Bolsonaro e seus apoiadores?
Ives Gandra Martins — Desde agosto de 2022, eu vinha dizendo que não havia risco nenhum de golpe. Nunca houve. Para ter um golpe, seria preciso que as Forças Armadas estivessem dispostas a isso. Eu garantia — por ser professor emérito da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército há 34 anos, conhecendo o pensamento de mais de 90% dos generais brasileiros nesse período — que essa movimentação da direita era bobagem. Quando Lula, com uma pequena margem ganhou as eleições, no mesmo dia eu declarei em entrevista que não havia nenhum risco e que era bobagem as pessoas continuarem em frente aos quartéis, porque as Forças Armadas não dariam golpe. Os militares conhecem e respeitam a Constituição brasileira.

O que aconteceu foi que, até 31 de dezembro, houve pressão sobre os militares para que eles fizessem alguma coisa, e a resposta foi um silêncio absoluto. Isso na época em que Bolsonaro ainda era presidente. Depois que Bolsonaro saiu, é evidente, as Forças Armadas não tomaram posição. E não teriam posição, já que teriam um chefe que não era favorável a isso [Lula]. Falei com Bolsonaro uma vez após ele perder a eleição. E ele nunca foi apoiador disso. Ele disse que iria respeitar os resultados. No dia 8 de janeiro, estava o povo desarmado, já que não havia tanques, não havia revólveres, não havia espingardas. Então pergunto o seguinte: como se dá um golpe de Estado assim? Foi um movimento deflagrado quando eles perceberam que o Exército não iria se movimentar nunca.

A medida mais simples que o governo Lula deveria ter feito era ter pedido proteção ao governo do Distrito Federal. Veja o que aconteceu em São Paulo, em movimentos semelhantes. Colocaram força policial. Então começa uma gritaria e já para. Porque não se dá golpe com grito, se dá golpe com tanque. O governo federal estava evitando a criação de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) porque, se há uma CPI, é preciso ver por que houve omissão, e onde está essa omissão. Em São Paulo, onde se pretendia fazer, não houve nada, porque o serviço de inteligência usou força militar. No Distrito Federal, apenas chamaram o ministro da Justiça [Flávio Dino] e o governador [Ibaneis Rocha] e deixaram por isso mesmo. Eles dispensaram reforço, não fortaleceram a segurança, não pediram ao Exército, como fez [o então presidente] Michel Temer quando invadiram o Congresso — os militares resolveram a situação com facilidade. Se o Exército tivesse sido alertado, tudo isso poderia ter sido evitado. Na prática, o Exército e a polícia que desocuparam, porque é isso que eles têm que fazer.

Eu sempre disse que nunca houve risco de ruptura institucional no Brasil. O próprio general Tomás Ribeiro Paiva [comandante do Exército] me disse que "não interessa em quem nós votamos, nós somos as forças do Brasil". Então falar em golpe é um verdadeiro absurdo, porque eu nunca vi golpe sem armas.

ConJur — Como o senhor avalia, juridicamente, a minuta do decreto para estabelecer estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral, encontrada na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do DF?
Ives Gandra Martins — Esse papel que foi encontrado com o ex-secretário de Segurança do Distrito Federal instituía estado de defesa. O que é o estado de defesa? Está na Constituição. O que está na Constituição não é golpe. Aquele documento teria alguma viabilidade jurídica se fosse assinado, quando o Estado fizesse uma intervenção no Judiciário. Como se faz o estado de defesa? O presidente pede o estado de defesa, o Congresso é convocado para analisá-lo em até 24 horas. Se não validar, a medida é derrubada. Você acha que mais da metade do Senado iria apoiar aquilo? É evidente que não.

Agora, o conteúdo desse documento é de tal ordem que não seria apoiado em nenhuma hipótese, porque o estado de defesa é implementado em caso de problema regional, ao contrário do estado de sítio, que serve para problema nacional, quando a democracia está sendo rompida. Então esse documento não teria validade nenhuma. Diversas coisas que são colocadas nos jornais não têm nenhuma relação com o aspecto jurídico. Falar em golpe, em grupos armados sem Forças Armadas é brincadeira. É como dizer que um time de futebol da 25ª divisão do Acre pode ganhar da seleção argentina. São coisas inviáveis. As Forças Armadas dão total apoio ao governo, qualquer que fosse ele.

ConJur — Se o senhor diz que não foi uma tentativa de golpe, como classifica os ataques às sedes dos três poderes em Brasília em 8 de janeiro?
Ives Gandra Martins — O 8 de janeiro foi um movimento de pessoas que pensavam que poderiam mudar a história do Brasil, mas que sabiam desde o início que não daria certo, até porque ficaram dois meses tentando convencer as Forças Armadas a apoiá-las. É como se eu quisesse envenenar uma pessoa e, em vez de arsênico, eu lhe desse açúcar. Aquilo que se chama de crime impossível no Código Penal. Mesmo achando que deveriam fazer, na prática, a inviabilidade e a impossibilidade material se impuseram. Foi exatamente como aconteceu quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o PT invadiram o Congresso Nacional na época de Temer. Claro que era um contingente menor, e Temer imediatamente declarou estado de emergência, mas na prática era isso.

Em primeiro lugar, materialmente, quem examinava os fatos sabia que, se durante dois meses eles não conseguiram conversar com as Forças Armadas, não seria naquele momento que iriam conseguir. Em segundo lugar, eles não tinham Força Armada nenhuma para poder dar um golpe. Em terceiro lugar, nós sabemos que se o governo foi alertado, por que as Forças Armadas não foram defender? Afinal de contas, não são instalações do Distrito Federal, mas do governo federal. As Forças Armadas deveriam ter sido empregadas para isso, assim como o governo de São Paulo quando teve informação nesse sentido. Por essa razão que o governo não queria a CPI, porque terão que apresentar informações. Eu não vi nenhuma obscenidade. Apesar de as CPIs sempre serem cinematográficas, midiáticas, eu queria saber por que o governo federal, tendo as informações — porque tinham as informações —, não tomou nenhuma providência. Esse é o problema.

ConJur — A responsabilidade pela segurança de Brasília não era do governo do Distrito Federal?
Ives Gandra Martins — O governo do Distrito Federal é o governo onde está o governo federal. Eles têm que ter responsabilidade. Mas, na prática, os prédios têm também polícia. Basta pedir reforço das Forças Armadas. O governo tinha as informações e não chamou as Forças Armadas. E queria saber por que isso não foi feito. O governo distrital tem responsabilidade de tomar conta da sociedade. Mas o governo federal, tendo as informações, poderia pedir reforço para os militares. Flavio Dino diz que ligou para o governador do DF, e ele lhe disse para ficar tranquilo. Se eu fosse ministro, não ficaria tranquilo e pediria reforço das minhas forças, das Forças Armadas. Isso deve ser examinado na CPI. Mas isso é passado. Hoje, temos que pensar em como tirar o país desse impasse, desse momento.

ConJur — Como isso pode ser feito?
Ives Gandra Martins — Lula deveria esquecer o passado e governar pensando que qualquer possibilidade de recuperar esse período em que ele aumentou consideravelmente os gastos públicos vai depender de muita austeridade. Ele aumentou os gastos ao elevar o número de ministérios de 23 para 37, ao criar a PEC da Gastança com o Bolsa Família. Nessa PEC, ele pretende definir todo o aumento de gastos, mas sem definir receitas. As previsões de receitas são todas aleatórias, de tributar apostas esportivas, importações chinesas. São definições muito incertas. O ideal é deixar de ficar brigando com o passado, e ele vai se defendendo pontualmente dos adversários, e passar a governar com todos esses grandes desafios. Fazer com que essa era fiscal seja mais segura e aceitar passar por um período de austeridade, que foge das suas promessas de campanha, mas que é a única forma de se fazer.

O conselho que eu daria para Lula é de buscar inspiração em Campos Salles, um dos maiores presidentes do Brasil. Campos Salles assumiu e passou dois anos com toda a austeridade possível. Todos o criticaram. Mas nos dois anos subsequentes, ele foi considerado um excepcional presidente. O Brasil teve um progresso extraordinário. O ministro da Fazenda de Campos Salles [Joaquim Murtinho] dizia o seguinte: "Nós temos que saber como arrumar os fundos do barco, para que ele possa navegar". Então Lula deveria seguir Campos Salles, não se importar com os primeiros meses desses quatro anos e admitir que a austeridade é o melhor caminho para abaixar os juros do Banco Central. Caso contrário, só teremos políticas monetárias que vão travar o desenvolvimento. Não adianta pensar em gastos se não tem receita. Enfim, é um palpite de um velho professor de Direito para alguém em quem ele não votou, mas cujo governo gostaria que desse certo.

ConJur — Apoiadores de Bolsonaro que promoveram os ataques de 8 de janeiro em Brasília pediam a "aplicação do artigo 142 da Constituição". O senhor acredita que a sua interpretação sobre o artigo 142 pode ter incentivado extremistas a pedir uma intervenção militar e atacar as sedes dos três poderes?
Ives Gandra Martins — Eu não sei. Mas a minha interpretação foi profundamente distorcida. Mesmo na ConJur. Eu publiquei diversos artigos explicando a minha interpretação. Em primeiro lugar, a intervenção jamais serviria para desconstituir poderes. Em segundo lugar, a aplicação seria pontual, no caso de um poder invadir as competências do outro. Em terceiro lugar, seria uma medida excepcionalíssima. E em quarto lugar, apenas se um poder a pedisse. Na prática, era praticamente impossível que alguma situação cumprisse os quatro pontos, de forma a legitimar a intervenção militar.

Vou dar um exemplo: o artigo 49, inciso XI, da Constituição Federal, diz que cabe ao Legislativo zelar por sua competência normativa perante o Judiciário. Vamos admitir que o Judiciário invada a competência normativa do Legislativo, e o Legislativo não aceite e edite um decreto legislativo contra essa invasão de competência, mas os dois poderes não cheguem a um consenso. Nesse cenário, se o Legislativo recorrer às Forças Armadas, elas podem interferir nesse ponto concreto.

Quando isso foi discutido na Assembleia Constituinte, foi como uma norma excepcionalíssima, como o estado de defesa. A minha interpretação sempre foi essa. O que fizeram foi uma distorção. Olha, eu jamais diria um negócio desses [permitindo a intervenção militar para depor um presidente]. Eu reiterei a minha interpretação diversas vezes. O que pode ter acontecido foi que, em um determinado momento, não eu, mas a ConJur, ao dar às Forças Armadas o nome de "poder moderador" em meu artigo, fez com que essa figura passasse a dominar a discussão, como se fosse um poder superior aos outros, quando é um poder dentro de um outro poder [o Executivo]. Tanto que eu sempre disse que apesar de o presidente da República ser o chefe das Forças Armadas, se fosse ele a intervenção, não poderia nunca aproveitar para decidir em causa própria.

O que eu disse não tem nada a ver com a interpretação que eles fizeram, do que acharam que eu tinha dito. Ninguém queria a interpretação correta do artigo 142. E fizeram uma interpretação própria tentar defender isso [intervenção militar]. Mas eu estou convencido de que há uma distância abissal entre o que eu disse e o que eles interpretaram. O artigo 142 sempre foi muito mal interpretado, e não é uma interpretação minha. A minha interpretação está nos livros que eu escrevi.

Agora, eu estou convencido que nenhum grupo desarmado no mundo inteiro dá golpe de Estado, como já mencionei. E esses vídeos que estão sendo distribuídos agora mostram que todo mundo tinha conhecimento de que isso iria acontecer, e não tomaram providências. Pelo contrário, desguarneceram a proteção. O governo vai ter que se explicar na CPI.

ConJur — Deputados do PT preparam uma PEC que excluiria, do caput do artigo 142 da Constituição, o termo "garantia da lei e da ordem". Com isso, o dispositivo ficaria com a seguinte redação: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais". Como avalia a proposta?
Ives Gandra Martins — Essa proposta o PT apresentou na Assembleia Constituinte. Foi Fernando Henrique Cardoso quem, após conversas com militares, defendeu uma proposta intermediária, que é a que foi incorporada ao artigo 142 da Constituição. Essa proposta do PT tem dois aspectos. O primeiro é retomar uma discussão que foi feita na Assembleia Constituinte, o que não tem problema nenhum. O segundo aspecto é que o simples fato de apresentarem a proposta demonstra que o artigo 142 tem uma outra força, que eles não querem aceitar. A força que eu aponto na minha interpretação. Se a minha interpretação é completamente desavisada, não há necessidade de mudar o artigo. Mas se o Congresso aceitar mudar, não tem problema nenhum.

Fernando Henrique Cardoso chegou à atual redação do artigo 142 como uma conciliação entre os radicais do PT e os militares que entendiam que era preciso ter uma certa tranquilidade para garantir a democracia. Não para intervir, mas para garantir a democracia. Assim como o estado de defesa e o estado de sítio também foram colocados na Constituição para garantir a democracia. O instrumento nunca foi utilizado, mas se a democracia entrasse em um descompasso absurdo, quem poderia repor a lei e a ordem seriam as Forças Armadas. Isso para garantir a democracia, e não para desconstitui-la. Eu sempre disse isso nas minhas aulas. A diferença do que houve em 1964 é que naquele momento houve um rompimento da ordem democrática. Hoje, as Forças Armadas só poderiam atuar para garantir que não haja descompasso. Essa é a minha interpretação, que o artigo 142 serve para garantir a democracia.

ConJur — A mesma PEC coloca automaticamente na reserva os militares que assumirem ou disputarem cargo público. Como avalia a medida? Seria positivo estabelecer quarentena para militares, policiais, magistrados e integrantes do MP entrarem na política?
Ives Gandra Martins — Penso que não. Eu sou contrário a essas quarentas. Por que tem que ter uma quarentena para essas pessoas não poderem exercer livremente a cidadania? É como se o cidadão já tivesse se curado de uma moléstia, mas tivesse que ficar isolado da sociedade por um período muito além daquele em que poderia transmitir a moléstia para outras pessoas. Eu nunca fui favorável a nenhuma quarentena. Nem para militares nem para magistrados, integrantes do MP ou policiais.

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