Opinião

Da imprescindibilidade da adoção de uma postura dinâmica da defesa criminal

Autor

  • Michelle Aguiar

    é advogada Criminalista. Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa. Especialista em Processo Penal e Garantias fundamentais pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional). Graduada no curso de bacharelado em Direito pelo Ibmec (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais) do Rio. Vice-presidente da Comissão Nacional de Investigação Defensiva e Inovações Tecnológicas da Abracrim (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas). Vice-presidente da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ. Diretora de pesquisa da Abracrim (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas) do Rio. Diretora de pesquisa da Abracrim Mulher Rio.

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2 de maio de 2023, 12h18

Diversamente da clássica concepção de que o Ministério Público detém o ônus de provar a existência de determinado fato delituoso, mostra-se distante e até mesmo obsoleto pensar uma postura de inércia por parte da advocacia [1].

Com as grandes operações policiais, somadas às rotineiras pressões midiáticas e sociais, surgem, em sua grande maioria, investigações complexas com numerosos volumes e apensos, culminando nos conhecidos megaprocessos [2].

Assumir uma atuação ativa e estratégica pelo advogado criminal se torna imprescindível e a busca pela obtenção de elementos probatórios de interesse do seu constituinte acaba, muitas vezes, por ser determinante para o êxito da demanda.

A partir dessa ótica entramos na dimensão da chamada investigação defensiva, que de alguns anos para cá vem ganhando destaque e relevância no direito brasileiro, apesar da matéria não ter surgido recentemente.

Diversos países possuem o conteúdo da investigação defensiva legalmente regulamentado e muitos, igualmente, desenvolveram códigos deontológicos a fim de orientar e respaldar a advocacia no exercício da defesa.

Na Itália, após uma série de edições normativas, avançou-se até a promulgação da Lei nº 397/2000, que incluiu os artigos 327-bis [3] e 391-bis  391-decies, do Código de Processo Penal, e disciplinou um procedimento próprio para a efetivação da investigação defensiva.

Além disso, a União das Câmaras Penais Italianas, em 1996, foi responsável pela edição de um corpo de normas deontológicas destinadas ao direcionamento e à tipificação de procedimentos a serem adotados na investigação defensiva [4].

Nos Estados Unidos destacam-se as regras editadas pela American Bar Association relativas à função defensiva, em especial à parte VI, que versa sobre a disponibilidade da acusação e a negociabilidade entre as partes [5].

Na Inglaterra, até o advento das reformas processuais de 1985, cabia ao advogado promover com exclusividade da ação penal, conferindo desde o início o direito do defensor comandar e prever a sua própria coleta de elementos probatórios [6].

O Canadá, por sua vez, apresenta a figura do advogado com atuação investigatória, devendo este observar os regramentos éticos sedimentados em seu Código de Deontologia Profissional. Ressalta-se que o presente Código foi adotado pela primeira vez em 1920, sendo parte integrante da profissão jurídica canadense desde então [7].

No Brasil, contudo, a investigação defensiva ainda não alcançou tal proporção.

A Constituição de 1988 postula diversos princípios constitucionais capazes de respaldar e viabilizar o manejo da investigação defensiva, tais como o (s) Princípio (s) da Igualdade (artigo 5º, caput, CRFB [8]), da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, CRFB [9]), do Devido Processo legal (artigo 5º, LIV, CRFB [10]), do Contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LV, CRFB [11]).

Já o artigo 133 preceitua a indispensabilidade do advogado à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

Outros dispositivos legais previstos no ordenamento jurídico são aptos a inferir a possibilidade do uso da investigação defensiva, sobretudo no âmbito criminal, a exemplo dos artigos 5º§ 3º [12], 14, [13] 242 [14], e 268 [15] do Código de Processo Penal.

Depreende-se, contudo, que nenhuma legislação brasileira abrange diretamente a investigação defensiva e, tampouco, aborda um regramento próprio para viabilizar a sua confecção.

Não obstante, tanto a advocacia privada quanto a Defensoria Pública tem tentando avançar na temática.

O primeiro passo foi dado no ano de 2018, quando o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil editou o Provimento nº 188 regulamentando o exercício da prerrogativa profissional do advogado de realização de diligências investigatórias para instruir em procedimentos administrativos e judiciais (investigação defensiva).

Destaca-se também a iniciativa da Comissão de Investigação Defensiva e Novas Tecnologias da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), que sob a organização dos advogados Gabriel Bulhões (presidente), Michelle Aguiar (vice-presidente) e Rodrigo Camargo (secretário-geral), contando com a participação de 25 autores [16], lançaram em 23/9/2022 o Código Deontológico de Boas Práticas da Investigação Defensiva.

A publicação se orientou através da necessidade da estruturação de normas de conduta ético-profissionais para o exercício da atividade e propôs parâmetros de atuação visando auxiliar as ações próprias da investigação defensiva [17].

A OAB igualmente vem buscando ampliar a divulgação e adoção da investigação defensiva como ferramenta indispensável à advocacia, sendo criadas quatro comissões voltadas ao tema, nos estados do Rio de Janeiro, Santa Catarina, Amazonas e Alagoas.

Por fim, no estado do Rio foi lançado em 7/11/2022 o primeiro Núcleo de Investigação Defensiva entre as Defensorias do país, coordenada pelo defensor público Denis Sampaio.

É certo que ainda há uma longa estrada pela frente. A solidificação de um tema ainda tão novo não virá de imediato, mas cada passo dado constitui uma vitória para aqueles que tanto batalham por uma justiça mais democrática, conforme destaca o autor Gabriel Bulhões:

"No Brasil, existe um potencial ainda desconhecido para utilização prática desse tipo de atividade e, sem embargo, o momento histórico que se enfrenta atualmente faz dessa quadra um momento ideal para que floresçam as condições que permitirão o desenvolvimento do modelo brasileiro de investigação defensiva [18]".

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REFERÊNCIAS:
BALDAN, Édson Luís. Investigação Defensiva Como Estratégia Articuladora Do Sistema Acusatório No Brasil, in SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da; PAULA, Leonardo Costa de (orgs). Mentalidade Inquisitória E Processo Penal No Brasil, Escritos Em Homenagem Ao Prof Dr Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, vol. 5. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória: 2019.

BULHÕES, Gabriel. Manual Prático de Investigação Defensiva: Um Novo Paradigma Na Advocacia Criminal Brasileira. Florianópolis: Emais, 2019.

BULHÕES, Gabriel. Investigação Defensiva E A Busca Da Paridade De Armas No Processo Penal. Conjur, 10 abr 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-10/gabriel-bulhoes-investigacao-defensiva-paridade-armas. Acesso em 27 mar 23.

MALAN, Diogo Rudge. Advocacia Criminal Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.

MALAN, Diogo Rudge. Investigação Defensiva No Processo Penal – Defense Investigation In The Criminal Procedure. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 96, p. 279-309, Maio – Jun. 2012

MALAN, Diogo Rudge. Direito Ao Confronto No Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

ROSA, Alexandre Morais da; CAMARGO, Rodrigo Oliveira de. O Desafio De Qualificar A Prática Da Investigação Defensiva. Conjur, 23 set 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-set-23/limite-penal-desafio-qualificar-pratica-investigacao-defensiva. Acesso em 27 mar.23.

SILVA. Franklyn Roger Alves. Investigação Criminal Direta Pela Defesa. 3ª ed. Ver., atual e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2022.

[1] "Há uma tendência atual do Ministério Público, de relegar algumas de suas funções, em detrimento de outras. Essa seletividade do parquet, que já vem sendo evidenciada por muitos, deixa um débito democrático por parte da Instituição, principalmente se forem consideradas as promessas trazidas pelo Constituinte quando alçou tais variadas funções ao Ministério Público (art. 129,CF)" (BULHÕES, Gabriel. Manual Prático de Investigação Defensiva: Um Novo Paradigma Na Advocacia Criminal Brasileira. Florianópolis: Emais, 2019, p. 16.

[2] Sobre o tema, assevera Diogo Rudge Malan: No que tange ao derradeiro corolário, as dimensões colossais dos megaprocessos incluem dezenas de milhares de folhas, espraiadas pelos autos do processo principal, inquérito policial, processos conexos, medidas cautelares, apensos, etc.,sempre em constante expansão (MALAN, Diogo Rudge. Advocacia Criminal Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 81).

[3] “Pela leitura do art. 327-bis do CPP italiano, o defensor está autorizado a buscar elementos em favor do seu defendido, em qualquer grau ou fase do processo, para eventual revisão criminal ou até mesmo na seara da execução penal” (SILVA. Franklyn Roger Alves. Investigação Criminal Direta Pela Defesa. 3ª ed. Ver., atual e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2022,p. 224)

[4] Ibidem, p. 222.

[5] No processo penal estadunidense, existe uma longa tradição de "preponderância do papel das partes processuais na investigação preliminar do crime e na gestão probatória durante a fase de julgamento (partisan fact gathering) (Sobre o investigação defensiva no sistema processual penal norte-americano, tem-se: MALAN, Diogo Rudge. Investigação Defensiva No Processo Penal – Defense Investigation In The Criminal Procedure. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 96, p. 279-309, Maio – Jun. 2012 e   MALAN, Diogo Rudge. Direito Ao Confronto No Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 44 e ss.

[6] BALDAN, Édson Luís. Investigação Defensiva Como Estratégia Articuladora Do Sistema Acusatório No Brasil, in SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da; PAULA, Leonardo Costa de (orgs). Mentalidade Inquisitória E Processo Penal No Brasil, Escritos Em Homenagem Ao Prof Dr Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, vol.5. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória: 2019, p. 377.

[8] Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[9] LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

[10] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

[11] LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[12] Art. 5º. Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:
(…)
§ 3º. Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito.

[13] Art. 14.  O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.

[14] Art. 242.  A busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes.

[15] Art. 268.  Em todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou seu representante legal, ou, na falta, qualquer das pessoas mencionadas no Art. 31.

[16] Bárbara Suelen Coloniese. Carlo Luchione. Carolina Melato Lindemann. Denis Sampaio. Diogo Rudge Malan. Edson Luís Baldan. Elaine dos Santos Guidetti Karlinke. Franklyn Roger Alves Silva. Gustavo Ribeiro Gomes Brito. Gustavo Noronha Ávila. Leonardo Avelar Guimarães, Luísa Walter da Rosa, Marco Aurélio Guimarães, Marcos José Alves de Barros Monteiro, Maria Eduarda Azambuja Amaral, Marta Cristina Cury Saad Gimenes, Raffaela Francisco, Roberto Meza Niella, Sergio Hernández Saldías, Thalles Leba e Wanessa Ribeiro.

[17] ROSA, Alexandre Morais da; CAMARGO, Rodrigo Oliveira de. O Desafio De Qualificar A Prática Da Investigação Defensiva. Conjur, 23 set 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-set-23/limite-penal-desafio-qualificar-pratica-investigacao-defensiva. Acesso em 27 mar.23.

[18] BULHÕES, Gabriel. Investigação Defensiva E A Busca Da Paridade De Armas No Processo Penal. Conjur, 10 abr 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-10/gabriel-bulhoes-investigacao-defensiva-paridade-armas. Acesso em 27 mar 23.

Autores

  • é advogada criminalista; graduada pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC/RJ); especialista em Processo Penal e Garantias fundamentais; mestranda pela Universidade Autônoma de Lisboa – UAL; diretora de Pesquisa da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim-RJ); membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); membro da REDEJUR- Associação Brasileira de Advogados Empresariais; delegada da Comissão de Prerrogativas da OAB/RJ; coautora de diversas obras jurídicas na área criminal.

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