Opinião

As proibições para o exercício da advocacia plena pelos membros da AGU

Autor

2 de maio de 2023, 6h05

Há mais de uma década se vem escrevendo sobre a possibilidade do exercício da advocacia fora das atribuições pelos membros da Advocacia-Geral da União (AGU) [1], analisada sob a ótica constitucional bem como da alterações legislativas ocorridas a partir do ano de 2006.

Agora, para complementar essa tese, inumando qualquer dúvida a respeito do tema, é interessante se valer agora de dois recentíssimos precedentes da Suprema Corte, com julgamento realizado em março de 2023: ADI 7.227 e ADI 6.033.

No primeiro caso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade de alterações no Estatuto da Advocacia que autorizavam policiais civis e militares da ativa a exercerem a advocacia em causa própria, mais precisamente dos §§ 3º e 4º do artigo 28 da Lei nº 8.906/1994, incluídos pela Lei nº 14.365/2022. Todos os ministros acompanharam a relatora, Cármen Lúcia, sem quaisquer achegas.

Segundo a ministra, a "questão posta à apreciação do Supremo Tribunal Federal está na legitimidade constitucional ou não das normas nas quais se permite o exercício da advocacia, em causa própria, pelos ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial ou militar de qualquer natureza, na ativa, a partir de exame e conclusão sobre a idoneidade jurídica do critério de discriminação adotado pelo legislador, relativamente aos demais integrantes do serviço público estatal, previstos no regime de incompatibilidade previsto no art. 28 da Lei n. 8.906/94".

Ela entendeu, no início da sua fundamentação, que o elemento de discrímen apontado na justificativa das normas impugnadas não foi estendido aos demais integrantes do serviço público estatal, prevista no regime de incompatibilidade da advocacia listados no artigo 28 da Lei nº 8.906/94, como, por exemplo, membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, os que exerçam serviços notariais e de registro.

Enfim, a ministra perfilhou o entendimento já adotado em julgamento anterior (ADI nº 3.541), segundo o qual o legislador "elegeu, portanto, critério de diferenciação compatível com o princípio constitucional da isonomia, ante as peculiaridades inerentes ao exercício da profissão de advogado e das atividades policiais de qualquer natureza".

Invocou ainda o julgamento do Agravo no Recurso Extraordinário nº 550.005, segundo o qual ficou assentado que "a restrição operada pelo art. 28, V, da Lei 8.906/1994 atende ao art. 5º, XIII, da Lei Maior, porquanto a incompatibilidade entre o exercício da advocacia e a função de delegado da Polícia Federal traduz requisito negativo de qualificação profissional, considerado o princípio da moralidade administrativa".

Para ser mais incisiva, citou também a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.235, em cujo julgamento se assentou que "as incompatibilidades previstas no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, restritivas do exercício da advocacia por analistas, técnicos e auxiliares do Poder Judiciário e do Ministério Público da União, configuram limitações adequadas e razoáveis à liberdade de exercício profissional, por traduzirem expressão de valores constitucionalmente protegidos". No mesmo sentido, o Recurso Extraordinário nº 199.088 (impossibilidade do exercício da advocacia por assessor jurídico de desembargador).

Trazendo um dado histórico para subsidiar o julgamento, a relatora registrou que, mesmo no anterior Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 4.215/1963), ou seja, há décadas, já se previam no rol de atividades, funções e cargos incompatíveis com o exercício da advocacia policiais e militares.

Por fim, fundamentou que as "incompatibilidades têm a função de resguardar a liberdade e a independência da atuação do advogado, afastando-se a subordinação hierárquica ou o exercício de atividades de Estado que exijam a imparcialidade em favor do interesse público na aplicação da lei".

Já no caso da ADI 6.033, a União Nacional dos Servidores de Carreira das Agências Reguladoras Federais (Unareg) se insurgiu contra dispositivos que versam sobre proibições funcionais específicas aplicáveis aos servidores em efetivo exercício nessas autarquias especiais, que têm o propósito exclusivo de assegurar a elas os instrumentos necessários para resistir ao risco de captura por agentes de interesse externos.

No voto condutor, da lavra do ministro Roberto Barroso, egresso da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (em que é permitido o exercício da advocacia privada), foram dadas inicialmente as balizas do julgamento:

"15. A declaração de inconstitucionalidade de normas dessa natureza somente poderia ser cogitada nas hipóteses de restrições desproporcionais à liberdade profissional e funcional dos servidores públicos. O princípio da proporcionalidade, em sua tríplice dimensão, evoluiu como mecanismo instrumental para aferir a legitimidade das restrições a direitos fundamentais, tendo na vedação ao excesso uma importante manifestação [4]. […]

17. A jurisprudência desta Corte tem, reiteradamente, declarado a constitucionalidade de preceitos legais que restringem a liberdade de exercício de atividade, ofício ou profissão com o objetivo de proteger o interesse público contra possíveis conflitos decorrentes da prática profissional ou de tutelar princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública."

O ministro Gilmar Mendes, no mesmo julgamento, fez o mesmo em seu voto-vista:

"Assim, parece certo que, no âmbito desse modelo de reserva legal qualificada presente na formulação do art. 5º, XIII, paira uma imanente questão constitucional quanto à razoabilidade e proporcionalidade das leis restritivas, especificamente, das leis que disciplinam as qualificações profissionais como condicionantes do livre exercício das profissões. A reserva legal estabelecida pelo art. 5, XIII, não confere ao legislador o poder de restringir o exercício da liberdade a ponto de atingir o seu próprio núcleo essencial. […]

A doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade. […]

Portanto, seguindo essa linha de raciocínio, é preciso analisar se a lei restritiva da liberdade de exercício profissional transborda os limites da proporcionalidade e atinge o próprio núcleo essencial dessa liberdade."

Feito esse resumo da fundamentação dos julgados, será ele agora utilizado para o caso dos advogados públicos federais.

Antes de tudo, que se deixe bem claro que não se está negando a possibilidade jurídica de normas infraconstitucionais estabelecerem parâmetros de diferenciação a grupos diversos, acompanhando-se de causas jurídicas suficientes para fundamentar a discriminação.

Pelo contrário, o que se defende aqui é que o referido entendimento adotado pela Suprema Corte não vem sendo observado, pois grupos idênticos estão tendo tratamento diferenciado.

A grande indagação é: por que é permitido exercício dessa atividade privada aos procuradores de estado, aos procuradores de municípios, aos advogados do Senado etc, mas vetado para os membros da Advocacia-Geral da União? O membro da AGU é menos advogado público do que os demais das carreiras irmãs?

Pois bem, pegando-se a situação específica da categoria dos advogados públicos e cotejando com a fundamentação utilizada nas ADIs 7.227 e 6.033, tem-se que: (1) o elemento de discrímen não foi estendido aos demais integrantes da advocacia pública, porquanto, como dito, aos procuradores de estado, aos procuradores de municípios, aos advogados do Senado, não há vedação, mesmo todos sendo advogados públicos (sendo a última categoria também da esfera federal); (2) o critério de diferenciação não é compatível com o princípio constitucional da isonomia; (3) as limitações não são adequadas e razoáveis à liberdade de exercício profissional, pois, para categorias idênticas, inclusive da esfera federal, elas não existem; (4) o antigo e o atual Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil nunca proibiram o exercício da advocacia privada para os advogados públicos, prevendo, no máximo, mero impedimento de advogar contra a Fazenda Pública; (5) assim como ocorre com os demais advogados públicos, a liberdade e a independência da atuação do advogado estaria devidamente resguardadas; (6) da mesma forma como ocorre com a demais categorias, não de pode falar em risco de prejuízo ao princípio da moralidade (existem inúmeros Ministros da Suprema Corte egressos de Procuradorias estaduais); (7) não há aqui também qualquer risco de captura por agentes de interesse externos.

"Sendo assim, o legislador não pode submeter os advogados a tratamentos jurídicos diferenciados no que diz respeito ao exercício, em si, da advocacia, ou seja, naquilo que é comum a todos esses profissionais. Isso corresponderia a tratar desigualmente os iguais, pois, conforme ressaltado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2.652, 'no exercício das funções próprias da advocacia, inexiste diferenciação entre uns e outros'" (trecho da manifestação apresentada pelo advogado-geral da União nos autos da ADI 5.334).

E mais: até mesmo os magistrados que representam a advocacia, ao serem alçados como juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais, não precisam deixar de exercê-la, como decidiu o STF no julgamento da ADI nº 1.127, ressalvado o natural impedimento de advogar perante a Justiça Eleitoral.

A situação é tão esdrúxula que até mesmo o servidor da AGU, que não ocupa o cargo de advogado, pode advogar. Só não pode exercer tal ofício o advogado ou procurador.

A vedação total incidente sobre os membros da Advocacia-Geral da União não se afigura razoável, eis que na quase totalidade dos Estados-membros adota-se regime diverso, regime, enfatize-se, muito menos lesivo, uma vez que não tolhe em sua plenitude a liberdade profissional de seus advogados/procuradores.

Não se pode permitir, com a devida vênia, uma convivência de regimes tão contraditórios.

Assim, as normas em questão ofendem o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, pois existem outras medidas menos lesivas ao direito individual fundamental dos advogados públicos federais ao livre exercício profissional, medidas legais estas que já seriam suficientes para a prevenção do exercício da advocacia contra o interesse público dos entes públicos que o recorrente defende em juízo, tais como as cominações contidas no artigo 30, inciso I, da Lei nº 8.906/94, ou nos artigos 321, 332 e 355 do Código Penal.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!