Opinião

Idas e vindas no processo de decretação de falência da Livraria Cultura

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30 de junho de 2023, 18h26

A notícia da decretação da falência da Livraria Cultura, cuja a primeira e última unidade estava instalada no Conjunto Nacional (São Paulo) desde 1969, foi recebida por todos com muito pesar por frequentadores do icônico espaço na avenida Paulista.

A livraria sempre foi uma referência para os amantes da leitura. Nos dizeres de José Saramago "A última imagem que levamos do Brasil é a de uma bonita livraria, uma catedral de livros, moderna, eficaz, bela. Uma livraria para comprar livros, claro, mas também para desfrutar do espetáculo impressionante de tantos títulos organizados de uma forma tão atrativa, como se não fosse um armazém, como se de uma obra de arte se tratasse. A Livraria Cultura é uma obra de arte".

Em outubro de 2017 recebeu o prêmio de empresa mais admirada pelos consumidores no seu segmento. Contava com 17 lojas e mais de 9 milhões de livros em diversos idiomas, além de músicas, revistas, jogos, filmes e e-books, também em vários idiomas.

Então, o que foi que aconteceu?

Com dívidas que vinham crescendo desde 2013, acentuada após a aquisição das operações da Fnac no Brasil e da "Estante Virtual", ambas em 2017, em 25/10/2018 o Grupo Cultura, no qual se inclui a Livraria Cultura, ingressou com pedido de recuperação judicial declarando dívida no valor de R$ 285.278.908,04, a qual foi recebida pelo juiz da 2ª Vara de Falências e Recuperação Judicial do Foro Central de São Paulo no mesmo dia, cuja decisão, além de nomear o administrador judicial, determinou a suspensão de todas as ações e execuções em face da mesma, privilegiando, assim, o Juízo universal, com a diminuição de custos coletivos e melhor alocação dos ativos.

Cumprindo o objetivo da recuperação judicial, que é viabilizar a superação da crise econômico-financeira de empresas viáveis, a fim de preservar a atividade empresarial, empregos e circulação de bens e serviços, o Poder Judiciário, antes mesmo da apresentação do plano de recuperação, determinou que os bancos (credores da Livraria) depositassem nos autos R$ 5.646.000 e se abstivessem de bloquear valores de recebíveis, para que a empresa recuperanda realizasse o pagamento das despesas de novembro daquele ano.

Divulgação
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Em seguida, foi deferido o pedido da recuperanda para que os bancos credores procedessem a liberação integral da totalidade dos valores retidos em contas vinculadas, bem como os valores referentes aos cartões de crédito na medida em que o montante fosse sendo depositado nas mencionadas contas vinculadas e referente apenas ao mês de dezembro/2018; até o limite de R$ 20 milhões, a chamada "liberação das travas". Tudo isso para que a empresa pudesse incrementar seu estoque para as vendas de Natal e início do ano letivo. Em outras palavras, alocando efetiva e eficientemente o ativo.

O plano de recuperação judicial foi apresentado em dezembro daquele ano, aprovado pela assembleia geral de credores e homologado pelo juízo em abril de 2019, declarando, no entanto, nulas algumas das suas cláusulas; o que ensejou um ajuste ao plano, que foi aprovado pela assembleia e homologado pelo Judiciário em setembro de 2019.

Em janeiro de 2020, foi alienado o controle da "Estante Virtual" à  Campos Floridos Comercio de Cosméticos Ltda, empresa filiada da Magazine Luiza pelo valor de R$ 31.166.638, que, descontando o endividamento líquido, foi pago à Livraria Cultura R$ 19.535.915,47.

Tudo ia bem até que, em 20 de março de 2020, o São Paulo, dentre outras cidades e estados, declarou estado de calamidade pública em razão da da Covid-19. Assim, a recuperanda, que teve um faturamento de R$ 9.531.464 em fevereiro, reduzido para R$ 6.590.263 em março, já em razão do novo coronavírus, atingiu R$ 1.490.856 em abril, ensejando o pedido de readequação ao plano de recuperação judicial, o que foi deferido.

No entanto, a assembléia de credores não aprovou o ajuste ao plano de recuperação. Alguns credores requereram a retificação de seus votos que, se atendido, permitira alcançar-se o quórum para aprovação do plano, o que foi indeferido pelo juízo, cuja decisão foi reformada pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) ao homologar o aditamento ao plano de recuperação judicial em 26/5/2021. Em uma clara demonstração de múltiplos participantes e múltiplos equilíbrios; alcançando, ao final, a justiça e o equilíbrio.

Ocorre que, mesmo com a aprovação do ajuste ao plano de recuperação, a Livraria Cultura não mais cumpriu com o plano de recuperação, o que foi noticiado por diversos credores e pelo administrador judicial ainda em 2021, e reiterado por diversas vezes durante o ano de 2022. Os valores do plano de recuperação inadimplidos até 20/10/2022 eram de R$ 2.049.485,89.

Intimada a comprovar o cumprimento do plano de recuperação, a recuperanda manifestou-se genericamente, levando a crer que realmente o plano não estava sendo cumprido, sem qualquer justificativa, corroborado pela ausência de atualização das informações sobre a recuperação judicial em seu site. Além disso, neste período houve suposições de fraudes.

Sem alternativa, foi decretada em 9/2/2023 a falência da Livraria Cultura, ante o descumprimento do plano de recuperação judicial e a falta de fidúcia com os credores, com o juízo e com o administrador judicial; na medida que sequer apresentava os documentos solicitados pelo administrador; mesmo se reconhecendo a importância da livraria para a sociedade. São essas as palavras do Juiz Ralpho de Barros Monteiro Filho

"É notório o papel da Livraria Cultura, de todos conhecida. Notória a sua (até então) importância, e não apenas para a economia, mas para as pessoas, para a sociedade, para a comunidade não apenas de leitores, mas de consumidores em geral. É de todos também sabida a impressão que a Livraria Cultura deixou para o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago, que a descreveu como uma linda livraria, uma catedral de livros, moderna, eficaz e bela. Mas a despeito disso tudo, e de ter este juízo exata noção desta importância, é com certa tristeza que se reconhece,no campo jurídico, não ter o Grupo logrado êxito na superação da sua crise."

Analisando as mais de 34 mil páginas de processo, há de se concordar com o magistrado quando afirma: "há que se ponderar que as maiores interessadas para o sucesso da recuperação judicial deveriam ser as próprias recuperandas, pressupondo-se essa intenção pelo ajuizamento do pedido e pela apresentação de uma proposta de pagamento aos credores. Em que pese a presunção, o comportamento das recuperandas nestes autos tem demonstrado muito o contrário: em verdade, em diversos momentos, beira o descaso para com o procedimento recuperacional e para com o Juízo, que deu diversas oportunidades para suas manifestações, mas sem a vinda de conteúdo materialmente útil à comprovação do cumprimento do plano", eis que tanto o juízo quanto o administrador atuaram em prol da recuperação da empresa, atendendo praticamente todos os pedidos do Grupo Cultura e, este último, na mediação principalmente com os bancos.

Não obstante o empenho de todos os envolvidos, credores, judiciário, auxiliares da justiça, a maior interessada, a recuperanda não logrou cumprir com seu compromisso e nem conseguiu ajustar o plano para que fosse possível cumpri-lo ou prestar qualquer esclarecimento à sociedade que tanto acreditou em sua recuperação.

Mesmo assim, recorreu da decisão, alegando que foram pagos mais de R$ 12 milhões em créditos concursais, razão pela qual entendem não ser caso de convolação da recuperação judicial em falência.

Inicialmente foi concedida liminar pelo TJ-SP, suspendendo os efeitos da falência. No entanto, ao final foi negado provimento ao recurso, mantendo o decreto da falência.

A Livraria Cultura recorreu da decisão, requerendo mais uma vez a concessão de efeito suspensivo dos efeitos da falência, sob a alegação de que não foi indicado na decisão que decretou a falência quais obrigações do plano de recuperação não foram satisfeitas. Além disso, ressaltou a sua importância para a sociedade. O que foi negado pelo TJ-SP.

Inconformada, a falida ingressou com ação de tutela antecipada antecedente no STJ (Superior Tribunal de Justiça), que atendeu seu pedido, e suspendeu o decreto da falência, dando mais uma chance para a superação da crise e a conservação das duas últimas lojas que resistiram nesses últimos anos, incluindo a mais importante delas, no Conjunto Nacional. O teor da decisão ainda não foi publicado, para que possa ser analisado.

No entanto, ante o cenário apresentado, dificilmente a suspensão do decreto da falência persistirá. Isso porque, não obstante os recursos interpostos, a empresa continua a não demonstrar o cumprimento do plano de recuperação e/ou o pagamento aos seus credores.

Além disso, a proprietária das lojas que ocupa no icônico Conjunto Nacional, em São Paulo, requereu expedição do mandado de despejo, pois a dívida com a Prefeitura de São Paulo pelo não pagamento do IPTU e também de condomínio só aumenta, pois a Livraria Cultura não paga os valores devidos mensalmente.

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