Opinião

Cabimento de mandado de segurança nos juizados especiais cíveis

Autor

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

30 de junho de 2023, 6h32

Um dos temas mais polêmicos do universo ligado à utilização excepcional do mandado de segurança visando impugnar decisão judicial diz respeito ao seu cabimento no microssistema dos juizados especiais cíveis e criminais.

Além do próprio debate acerca da necessidade (ou não) de uniformização das três normas que tratam dos juizados, a restrição recursal e, consequentemente, o próprio cabimento do MS sofrem grandes variações interpretativas, inclusive no que respeita ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, como restará claro na sequência deste texto.

O primeiro aspecto a merecer reflexão diz respeito, do ponto de vista teórico e prático, ao cabimento do mandamus contra pronunciamento judicial oriundo dos juizados especiais cíveis e criminais (Lei 9.099/95).

O assunto não é novo. A restrição ao cabimento do mandado de segurança, a rigor, não se refere apenas aos juizados especiais, mas sim em relação à sua impetração contra ato judicial.

Neste cenário, é possível afirmar que, caso de decisão judicial, o cabimento do remédio constitucional deve atender, no mínimo, os seguintes requisitos: decisão irrecorrível (ou com recurso sem efeito suspensivo legal); demonstração de ilegalidade ou teratologia no julgado ou impetração por terceiro prejudicado (Enunciado 202, da Súmula da Jurisprudência dominante do STJ). No tema, vale citar passagem da Ementa do Acórdão RMS 65.228 (4ª Turma do STJ – relator: ministro Raul Araújo – J. em 14/12/2021 – DJe 1/2/2022):

"Fora das circunstâncias normais, a doutrina e a jurisprudência majoritárias admitem a impetração de mandado de segurança contra ato judicial, ao menos nas seguintes hipóteses excepcionais: a) decisão judicial manifestamente ilegal ou teratológica; b) decisão judicial contra a qual não caiba recurso; c) para imprimir efeito suspensivo a recurso desprovido de tal atributo; e d) quando impetrado por terceiro prejudicado por decisão judicial".

Atendidos esses requisitos, passa-se a análise do cabimento do writ no âmbito dos juizados especiais cíveis e criminais. Nesse microssistema não há previsão de recurso contra os pronunciamentos que não são qualificados como sentença, o que gera na prática uma disseminação do uso do mandado de segurança contra decisões interlocutórias que apreciam, por exemplo, pedidos de tutelas provisórias, ao contrário da previsão contida nas Leis nºs 10.259/2001 (juizados especiais federais artigo 5º) e 12.153 (juizados especiais da fazenda pública artigo 4º), que consagram a possibilidade de manejo de recurso em face de decisão que concede tutela provisória de urgência (cautelar ou antecipada).

Dito de outra forma: enquanto nos juizados federais e da fazenda pública há a previsão de recurso contra as decisões interlocutórias que apreciam as tutelas de urgência, a falta de regulamentação específica nos juizados cíveis e criminais gera dois grandes debates práticos: ou se estende a possibilidade recursal também a este microssistema, em analogia com os outros dois, ou se abre a oportunidade de irresignação desses pronunciamentos (atendidos os requisitos postos acima), por meio de mandado de segurança.

A questão é saber se efetivamente o writ constitucional é cabível nesse microssistema, levando em conta os princípios ensejadores dos juizados especiais e o posicionamento oriundo de precedente qualificado do Supremo Tribunal Federal.

Destarte, em decisões reiteradas, a partir do entendimento firmado no RE 576.847 (Tema 77/Rerg), em que foi reconhecida a repercussão geral e apreciado o mérito (com eficácia vinculante), o Supremo Tribunal Federal consagra o incabimento de mandado de segurança visando impugnar decisões oriundas dos juizados especiais (AI 857.811 AgR / PR – rel. min, Ricardo Lewandowski. 2ª T. J. em 16/4/2013 – DJe 29.04.20213; RE 650.293 AgR / PB – rel. min. Dias Toffoli – J. em 17/4/2012 – 1ª T – DJe- 22/5/2012).

Contudo, mesmo com o resultado deste Tema 77/Rerg, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou diversas vezes essa questão, inclusive com posicionamentos recentes acerca do órgão jurisdicional competente para a apreciação e julgamento do writ, a depender do objeto e da pretensão nele contida.

A realidade não pode ser afastada: há um grande número de ações que tramitam no microssistema dos juizados especiais cíveis e criminais, o que gera inúmeros pronunciamentos interlocutórios irrecorríveis, abrindo espaço para o debate quanto ao cabimento do MS como instrumento de controle decisional.

De fato, a prática indica que é comum sua impetração neste microssistema, especialmente nos casos em que o magistrado concede (ou nega) tutela provisória determinando conduta, sob pena de incidência de multa (artigo 536, § 1º, do CPC/15). Ora, em hipóteses como esta, o interessado provavelmente impetrará mandado de segurança visando discutir o eventual vício na decisão, pretendendo, em última análise, afastar os efeitos da interlocutória que seria recorrível apenas ao final do procedimento.

Portanto, é razoável defender o cabimento de mandado de segurança em face das interlocutórias proferidas nos juizados especiais cíveis e criminais em situações específicas e atendidos os requisitos antes expostos, mesmo com o resultado do Tema 77/Rerg.

Uma coisa é certa: os juizados especiais não estão vinculados, no ambiente recursal, ao tribunal local. Logo, em caso de mandamus impetrado visando impugnação do mérito (error in judicando ou error in procedendo) da decisão do juiz da Vara de juizados, a competência para a apreciação é no âmbito do próprio sistema dos juizados, na respectiva Turma Recursal. Este assunto foi discutido diversas vezes no Superior Tribunal de Justiça que, inclusive, editou o Enunciado nº 376 de Súmula da sua Jurisprudência dominante, com a seguinte redação:

"Compete à turma recursal processar e julgar o mandado de segurança contra ato de juizado especial".

No tema, há o Enunciado nº 62 do Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje), com a seguinte redação:

"Cabe exclusivamente às Turmas Recursais conhecer e julgar o mandado de segurança e o habeas corpus impetrados em face de atos judiciais oriundos dos Juizados Especiais".

Ainda quanto ao órgão competente para a apreciação e julgamento do writ, é importante fazer um corte do ponto de vista prático: mandado de segurança impetrado visando impugnar a própria competência do microssistema dos juizados especiais não pode ser apreciado pela Turma Recursal, tendo em vista que também compõe este sistema logo, também é incompetente.

A jurisprudência da Corte da Cidadania também enfrenta esta situação, consagrando importante exceção: não pode o mandamus ser apreciado pela Turma Recursal, sendo inaplicável o Enunciado 376 de Súmula da Jurisprudência Dominante do STJ. A rigor, neste caso, a competência é do próprio tribunal estadual ou distrital, como se observa nos seguintes julgados:

"Nesse sentido, consoante esclarecido, nos termos do Enunciado Sumular nº 376/STJ, em regra, 'compete à turma recursal processar e julgar o mandado de segurança contra ato de juizado especial'. Por outro lado, excepcionalmente, o conhecimento da impetração de mandado de segurança competirá aos tribunais de justiça no exercício do controle de competência dos juizados especiais (RMS nº 48.413/MS, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 4/6/2019)" AgInt no RMS 67753 / SC – rel. min. Francisco Falcão – 2ª Turma/STJ – J. em 30.05.2022 – DJe 02/06/2022.

"Consoante a jurisprudência do STJ, admite-se a impetração de Mandado de Segurança perante os Tribunais de Justiça dos Estados para o exercício do controle de competência dos juizados especiais, ficando a cargo das Turmas Recursais, conforme dispõe a Súmula 376 do STJ, o Writ que tenha por escopo o controle de mérito dos atos de juizado especial. Precedente: RMS 46.955/GO, rel. min. Moura Ribeiro, 3ª Turma, DJe 17/8/2015". AgInt no RMS 66.360 / SP rel. min. Herman Benjamin 2ª Turma J. em 16/11/2021 DJe 10/12/2021.

Mais recentemente, o assunto também foi tratado no AgInt no RMS 70151/MS (2ª Turma rel. min. Humberto Martins  J. 17/4/2023) com o seguinte trecho na ementa do acórdão:

"Compete à turma recursal processar e julgar o mandado de segurança contra ato de juizado especial nos termos da Súmula n. 376/STJ. Contudo, excepcionalmente, admite-se o conhecimento da impetração de mandado de segurança nos tribunais de justiça para exercício do controle de competência dos juizados especiais, conforme o precedente RMS n. 48.413/MS, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 4/6/2019".

No mesmo sentido, vale a leitura de dois recentes acórdãos do Superior Tribunal de Justiça: RMS 67746 (4ª T rel. Maria Isabel Gallotti j. 25.04.2023 DJe. 25.05.2023) e AgInt no RMS 70.880/SP rel. min. Nancy Andrighi 3ª T DJe 25/5/2023.

Em outro julgado de 2023, a 4ª Turma da Corte da Cidadania reconheceu, ao apreciar um Recurso Ordinário em Mandado de Segurança, que a competência originária deve ser do Tribunal de Justiça, na hipótese que o writ visa a garantia do direito de demandar perante os juizados especiais à associação de moradores ou de proprietários. Esta é a Ementa do julgado:

"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE DE COMPETÊNCIA. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO PERANTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ART. 8º DA LEI 9.099/95. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES OU DE PROPRIETÁRIOS. LOTEAMENTO URBANO. AÇÃO DE COBRANÇA. TAXA DE MANUTENÇÃO. VALOR DA CAUSA. CRITÉRIO PREPONDERANTE. OPÇÃO DO AUTOR. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL. 1. Embora sem previsão no rol do art. 8º, § 1º, da Lei 9.099/95, a jurisprudência desta Corte admite que o ente condominial litigue perante o Juizado Especial para cobrar a quota condominial. 2. Por similaridade com o condomínio, estende-se à associação de moradores ou de proprietários o direito de demandar, perante o Juizado Especial, em busca do adimplemento da taxa de manutenção, pela compreensão de que existe a representação dos interesses mediatos de pessoas físicas. 3. Havendo a sentença negado a possibilidade de a Associação ser parte perante o Juizado Especial, cabível o mandado de segurança perante o Tribunal de Justiça para delimitar a competência daquela Justiça Especializada. 4. Não mais existindo o procedimento sumário após a entrada em vigor do CPC de 2015, a competência para o processo e julgamento de ação de cobrança – seja ajuizada por condomínio, seja por associação de moradores – depende de o valor da causa se situar dentro da alçada prevista no inciso I do art. 3º da Lei 9.099/95. Atendido esse critério quantitativo de competência, cabe ao autor a opção pela via do Juizado Especial ou da Justiça Comum Estadual. 6. Recurso ordinário provido". RMS 67746 / SP 4ª Turma rel. min. Maria Isabel Gallotti J. em 25/04/2023 DJe 25/05/2023.

Aliás, após o resultado do MS da turma recursal dos juizados (nas hipóteses em que está e o órgão competente), o recurso eventualmente manejado poderá ser o ordinário ou excepcional, a depender da denegação ou concessão da segurança. O Supremo Tribunal Federal afirmou que não é o órgão jurisdicional competente para apreciar o recurso ordinário eventualmente interposto em face de acórdão da turma recursal que tenha denegado a segurança. Vale transcrever uma passagem:

"A jurisprudência do STF é firme no sentido de que não lhe compete julgar recurso ordinário interposto contra decisões denegatórias de mandado de segurança proferidas por turma recursal vinculada ao sistema de juizados especiais". RMS 36462 AgR Tribunal Pleno/STF. rel. min. Luiz Fux. J. em 03/04/2020 – DJ 23/04/2020.

É necessário, portanto, destacar as variáveis acerca da competência para a apreciação do mandado de segurança no âmbito dos juizados especiais cíveis e criminais, tendo em vista que o controle de mérito da decisão é atribuição da própria turma recursal, ao passo que a análise da competência de atuação do microssistema dos juizados deve ser feita pelo tribunal local.

Por derradeiro, como já mencionado, o cabimento de recurso contra as tutelas de urgência nos juizados federais e da fazenda pública acaba por esvaziar o grande número de hipóteses de incidência de MS visando a discussão meritória, restando vivo ainda o debate de seu cabimento nos respectivos Tribunais Regionais Federais visando a preservação da competência do sistema.

Autores

  • é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), doutor e mestre (Universidade Federal do Pará), professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), procurador do estado do Pará e advogado.

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