Opinião

O federalismo e a relevância para o recurso especial

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29 de junho de 2023, 16h18

O federalismo republicano brasileiro é muito anterior à existência do recurso especial, uma diferença de aproximadamente 100 anos. O nosso pacto republicano, fundado na Constituição de 1891, não teve significativa modificação na sua arquitetura desde a sua criação. Na verdade, o nosso modelo republicano concentrador foi apenas ampliado quando atribuiu continuamente à União mais matérias de competência privativa.

Um exemplo dessa ampliação da competência privativa é no âmbito do direito processual. No início da República não era de competência privativa da União legislar sobre o direito processual. E, assim sendo, logo era permitido que os entes estaduais legislassem sobre o direito processual. Alguns códigos estaduais foram editados, com destaque para o do estado da Bahia e o de São Paulo.

Tal estadualização da legislação processual foi contida com a Constituição de 1934 (artigo 5º, inciso XIX, a, da CF de 1934) e encerrada com a edição do Código de Processo Civil de 1939, primeiro código nacional de processo civil da república brasileira.

Mas o que significa dizer que a União tem competência privativa para legislar sobre determinada matéria ?

Quer dizer, por exclusão, que os demais entes não podem no atual estágio federativo legislar a respeito de determinadas matérias, como, por exemplo: direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho (inciso I do artigo 22 da CF/88).

Cabe mencionar a última matéria que foi inserida no âmbito da competência privativa da União, que é "a de proteção e tratamento de dados pessoais" (incluído pela EC 115/2022), e que decorre do último direito fundamental inserido na Constituição, que "assegura, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais" (artigo 5º, inciso LXXIX).

Cita-se, de modo prático, a discussão atual no âmbito federal a respeito do PL 2.620/2020, cunhado midiaticamente de "PL das Fake News", embora o nome correto e oficial seja pouco citado: "Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet". Mas essa observação é apenas um parêntese.

O que importa saber aqui é que mais uma vez a competência da União foi ampliada para legislar privativamente sobre específica matéria, que é "a proteção e tratamento de dados pessoais", e isso, por outro lado, significa um aviso de exclusão da competência dos demais entendes federados para legislar sobre a referida matéria.

Entendido, portanto, que a União no nosso modelo federativo tem competência privativa para legislar sobre importantes matérias para a vida em sociedade, como o direito civil, o comercial e o processual, é preciso, por consequência, garantir que não apenas a lei seja federal, mas igualmente a sua interpretação.

Para tanto, faz-se necessário um meio de controle para que a lei federal tenha uma aplicação igualitária do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte. E o meio de controle pensado pelo poder constituinte foi a criação de um tribunal superior, o STJ, que tem como missão uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil.

Cada estado da Federação mais o Distrito Federal tem o seu Tribunal de Justiça (27 no total), que faz a interpretação e aplicação da legislação federal diante do caso concreto, que apenas a União tem competência privativa para legislar.

Somados aos Tribunais de Justiça, temos os Tribunais Regionais Federais, o que representa um total de 33 tribunais sob a supervisão do STJ quando se cuida da interpretação e aplicação da legislação federal infraconstitucional.

E esse modelo federativo de competência privativa para legislar e consequentemente de competência privativa para controlar a interpretação da lei tem resultado numa distribuição anual de mais de 400 mil processos para o STJ. Sim, esse número é apenas por ano.

O STJ tem respondido a duras penas à sua missão constitucional, pois em 2022 julgou mais processos (441 mil) do que recebeu (404 mil), atendendo à Meta 1 do CNJ. Mas a sua taxa de congestionamento continua muito alta e sem perspectiva de redução significativa. A taxa de congestionamento do STJ, isto é, o seu acervo em 2022, ficou em mais de 260 mil processos (informação estatística do próprio STJ).

Considerando os magistrados em atividade judicante no tribunal (30 no total), tem-se uma divisão média de mais de 8.000 processos de acervo para cada unidade. A taxa de congestionamento do STJ é realmente muito alta e ela só é reduzida com a efetiva baixa do processo e o STJ "só" baixou 406 mil processos em 2022 (informação estatística do próprio STJ).

Desse modo, a solução pensada foi a de estabelecer uma exigência constitucional de demonstração da relevância da questão de direito federal infraconstitucional discutida no recurso especial. Assim, apenas será julgado aquilo que o STJ entender como relevante diante da sua missão: que é a de uniformizar a interpretação da legislação federal operacionalizada pelos tribunais de origem diante de casos concretos.

Pode-se dizer que temos a solução para a avalanche de processos que são remetidos anualmente para o STJ ?

Muito difícil saber se de fato será uma solução e, principalmente, saber como será operacionalizada essa solução frente a sensibilidade do nosso modelo federativo que tem como pilar de ferro a concentração na figura na União.

Intuitivamente o STJ procura inspiração no modelo da repercussão geral, que foi criado com a EC 45/2004 e continuamente testado e aperfeiçoado pelo Supremo Tribunal Federal desde 2006 (data da Lei 11.418), principalmente por meio de alterações regimentais (ERs 19 de 2006, 21 de 2007; 23, 24 e 27 de 2008; 29 e 31 de 2009; 41 e 42 de 2010; 46 de 2011; 47 de 2012; 52 de 2019; 53 e 54 de 2020).

Contudo, embora seja um modelo de inspiração, que obviamente deve e precisa ser aproveitado, uma questão numérica provoca reflexão: a Constituição tem "apenas" 250 artigos.

A legislação federal infraconstitucional, por sua vez, é incalculável. E não é figura de linguagem a expressão. Apenas o Código Civil de 2002 tem mais de 2.000 artigos e o Código de Processo Civil de 2015, que é relativamente novo, tem mais de 1 mil artigos. Sem contar a Lei de Recuperação Judicial, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Tributário Nacional.

São leis federais extremamente extensas, profundas e sensíveis frente ao nosso modelo federativo concentrador, pois em um determinado estado da Federação uma pessoa física ou jurídica não pode ter um tratamento tributário judicial diferente do que é conferido por outro estado da Federação no mesmo espaço de tempo e em face da mesma lei.

O STJ ainda tem como missão o controle total desse possível desequilíbrio federativo frente às interpretações estaduais que são conferidas pelos tribunais de origem diante dos casos concretos, sem qualquer exigência de demonstração da relevância da questão federal discutida quando da interposição do recurso especial.

Afirmo que "ainda tem" porque a exigência só ocorrerá após a vigência da lei federal que irá regulamentar a relevância para o recurso especial (enunciado administrativo 8 do STJ).

Mas após a lei o STJ poderá recusar a relevância de uma questão federal suscitada em recurso especial e, logo assim, permitir o trânsito em julgado da interpretação estadual conferida pelo tribunal local frente à legislação federal. Esse, sem dúvida, é o efeito prático da recusa da relevância para uma questão federal em sede de recurso especial.

Por isso a preocupação da presente manifestação, que é a de provocar uma reflexão maior sobre o impacto da "nova" missão do STJ sob a perspectiva do pacto federativo brasileiro, que optou por concentrar a competência privativa para legislar sobre matérias federais infraconstitucionais sensíveis à federação na figura da União e o seu controle interpretativo por meio de tribunais superiores.

É cediço que o fluxo processual no âmbito do STJ é incompatível (mais de 400 mil processos distribuídos em 2022) com a sua estrutura jurisdicional, por isso que o caminho da exigência da relevância para o recurso especial é um caminho sem volta (aguarda-se apenas a lei), mas diante da realidade ora posta e da competência federativa do STJ, é preciso refletir com mais profundidade sobre os possíveis impactos para o nosso modelo federativo, que foi inaugurado pelo Constituição republicana de 1891.

Resta-nos, por fim, acompanhar, pois a preocupação numérica é necessária e legítima, já que o STJ precisa julgar menos para julgar julgar melhor (menos de 1% dos processos em 2022 foram julgados originariamente pelo colegiado), mas a preocupação com a preservação do nosso modelo federativo deve ser sempre ressaltada.

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