Opinião

Da constitucionalidade do artigo 21, §4º da Lei 8.429, introduzido pela Lei 14.230

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29 de junho de 2023, 17h17

O Princípio Republicano inaugura a Constituição de 1988, implícito que se encontra na cabeça do artigo 1º da Carta Política. É uma de suas decorrências naturais, a responsabilização dos gestores pelo trato com a res publica, seja no âmbito criminal, cível ou político-administrativo.

No aspecto criminal, recordamo-nos, de imediato, dos tipos penais previstos no Título XI do Código Penal Brasileiro, que cataloga os crimes contra a Administração Pública, praticados por agentes públicos (intraneus), e particulares (extraneus) que com aquele concorram de qualquer forma.

Há, ainda, infrações político-administrativas, equivocadamente denominadas crimes de responsabilidade  equivocada terminologia, pois, de infrações penais não se tratam  e que sujeitam o infrator a perda do mandato eletivo em julgamento realizado pelo Poder Legislativo ou por Tribunal Especial, conforme o caso.

Tais crimes de responsabilidade, cuja iniciativa legislativa é privativa da União, no lastro da Súmula Vinculante nº 46, variam de acordo com o cargo ocupado pelo agente público:

O presidente da República e o vice, pela prática de crime de responsabilidade previsto no artigo 85 da Constituição e na Lei nº 1.079/1950, serão processados e julgados pelo Senado Federal, após juízo de admissibilidade da acusação por 2/3 da Câmara dos Deputados, na forma dos artigos 86 e 52, I, da CF, bem assim, algumas autoridades que, em concurso, pratiquem crimes a ele conexos (Processo de Impeachment).

Governadores e ministros de Estado se sujeitam ao processo de responsabilidade, conforme previsto na Quarta Parte da Lei nº 1.079/1950, reservando-se a estes um julgamento por Tribunal misto, composto por integrantes da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça do respectivo ente federativo, nos moldes do artigo 78, §3º da mencionada lei.

Prefeitos municipais, à seu turno, ficam sujeitos ao julgamento pela Câmara Municipal de Vereadores na hipótese de cometimento de crimes de responsabilidade, consoante previsão do artigo 4º do Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967.

A propósito, oportuno registrar que o Decreto-Lei nº 201/1967, não traz apenas previsão de crimes de responsabilidade, de cunho político-administrativo, uma vez que estabelece, ainda, no artigo 1º, típicas infrações penais reservadas aos prefeitos, com previsão de pena privativa de liberdade e processadas mediante ação penal pública incondicionada.

Por fim, no âmbito cível, a principal ferramenta na responsabilização do agente público é, sem dúvidas, a ação civil pública por ato de improbidade administrativa, cuja matriz constitucional remete ao parágrafo quarto do artigo 37 da Carta de Outubro, que assim estabelece:

"§4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível".

Importante recordar, nesta linha de intelecção, que o Supremo Tribunal Federal entende que os agentes públicos estão sujeitos a um duplo regime sancionatório [1], uma vez que se submetem tanto à responsabilidade administrativa por "crimes de responsabilidade", quanto à responsabilização civil, por atos de improbidade.

Na verdade, rectius, tripla responsabilidade, eis que, conforme já apontado linhas atrás, há ainda a responsabilidade criminal por eventual conduta que preencha os elementos de fato típico, ilícito e culpável, previsto em lei.

A única autoridade pública que está imune ao duplo regime é o presidente da República, segundo a Corte Suprema. Na realidade, não é correto afirmar que não responde por ato de improbidade administrativa. É que, no caso do presidente da República, o próprio constituinte arrola os atos que atentam contra a probidade da administração na categoria de crime de responsabilidade (CF, artigo 85, inciso V), tratando-se, logo, de infração político-administrativa de competência do Senado (CF, artigos 86 c.c 52, I).

Desvelado este intrincado sistema sancionatório, cuja fundação se inicia na Carta Constitucional e cuja arquitetura serpenteia pela legislação infraconstitucional, inclusive em atos normativos pré-constitucionais, pretendo reservar a atenção do leitor ao regime específico de responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa, pois é dele que vou tratar no presente articulado.

Pois bem. Com intuito de regulamentar o acima transcrito parágrafo quarto do artigo 37 da Constituição, o legislador infraconstitucional editou a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que versa sobre os atos de improbidade administrativa e estabelece as respectivas sanções e gradações.

Como é de amplo conhecimento na comunidade jurídica, recentemente sobreveio profunda reforma legislativa, conduzida pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, alterando sobremaneira o regime de responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa, tratando de questões como exigência de elemento subjetivo doloso (necessariamente), redefinindo os prazos prescricionais e seu termo inicial, prevendo causas de suspensão e interrupção da prescrição, prescrição intercorrente, legitimidade ativa, enfim.

As alterações foram tão significantes que levaram alguns a afirmar que se trata de uma nova lei de improbidade administrativa.

A doutrina, a jurisprudência e os articulistas, se debruçam sobre as alterações, proliferando-se textos jurídicos, sobretudo versando sobre a (ir) retroatividade das novas disposições normativas, já que, ao tratar de direito administrativo sancionador, aplicar-se-iam (ou não?!) as garantias constitucionais previstas para o Direito Penal, como a retroatividade da lei mais benéfica (CF, artigo 5º, inciso XL).

Neste ponto, por enquanto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento no Agravo em Recurso Extraordinário nº 843.989, com repercussão geral reconhecida, fixou tese (Tema 1.199) afastando a possibilidade de retroatividade das novas disposições para alcançar casos com trânsito em julgado. Assim, apenas processos em andamento e sem julgamento definitivo, receberiam o influxo das alterações.

Mas nossa análise, por ora, se debruça em outro ponto curioso da reforma legislativa, que é o artigo 21, §4º, que assim dispõe:

"Artigo 21. […] §4º A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)".

A dúvida sobre a (in)constitucionalidade da referida disposição reside na sua amplitude. Explicarei.

Não desconheço do princípio da independência das instâncias, implícito nas disposições do artigo 935 do Código Civil [2], artigo 126 da Lei nº 8.112/90 [3] e artigos 65, 66 e 67 do Código de Processo Penal [4], que estabelecem a comunicação da decisão definitiva, no âmbito criminal, quando verse sobre existência do fato ou sua autoria, mas, tal princípio não suporta interpretação tão extensiva a ponto de autorizar a comunicação de toda e qualquer decisão proferida no âmbito criminal.

O dispositivo em exame faz expressa remissão ao artigo 386 do Código de Processo Penal, que assim estabelece:

"Artigo 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:

I – estar provada a inexistência do fato;
II – não haver prova da existência do fato;
III – não constituir o fato infração penal;
IV – estar provado que o réu não concorreu para a infração penal;
V – não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal;
VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (artigos 20, 21, 22, 23, 26 e §1º do artigo 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência;
VII – não existir prova suficiente para a condenação".

De imediato, é possível verificar que apenas as hipóteses elencadas nos incisos I (prova da inexistência do fato) e IV (prova de que o réu não concorreu para a infração penal), autorizam a comunicação da decisão proferida no âmbito criminal para as demais esferas.

Tal diálogo se justifica porque, presume o legislador, que a jurisdição penal, como instrumento de ultima ratio de controle social, possui cognição mais profunda e exauriente que as demais esferas, de modo que, evitando incompatibilidade entre decisões judiciais diversas, estabelece a predominância da decisão proferida no processo penal quando reconhecer, categoricamente, a inexistência do fato ou a não participação do réu no fato apurado.

Contudo, ao determinar que a absolvição criminal impede o trâmite da ação civil por ato de improbidade administrativa em qualquer das hipóteses acima, obstaria a responsabilização do agente público pela prática de ato ímprobo, por exemplo, quando este não caracterizasse, simultaneamente, ilícito penal.

Da mesma forma, ocorrendo absolvição criminal por falta de provas, tal decisão impediria o trâmite da ação civil pública, o que configura evidente retrocesso na proteção do patrimônio público e da moralidade no âmbito administrativo.

Outra possibilidade que se descortina absurda é a possibilidade de absolvição por reconhecimento de uma causa excludente de ilicitude (justificante) ou da culpabilidade penal (dirimente), conceitos próprios do Direito Penal, que compõem a estrutura do fato típico penal, e que não possuem nenhuma relação com o conceito de ato de improbidade administrativa, obstar o trânsito da ação civil.

E mais, basta, segundo o dispositivo analisado, a decisão colegiada que imponha ou confirme a absolvição em qualquer das hipóteses previstas no artigo 386 do Código de Processo Penal, não sendo necessário o trânsito em julgado da decisão absolutória.

Neste aspecto, a norma em exame viola o princípio da proporcionalidade, em sua vertente de proibição de proteção deficiente dos bens jurídicos (untermassverbot), pois o constituinte veicula imperativo de tutela ao Estado na proteção da moralidade administrativa e do patrimônio público, imposição não observada pelo legislador ordinário.

Sob outro vértice, o princípio da vedação ao retrocesso sugere que atingido determinado nível de concretização de direito fundamental não é legítima a intervenção legislativa que recue esse grau de proteção. Antes reservado ao campo dos direitos sociais, o efeito cliquet atualmente é identificado nos vários campos de interesse de tutela estatal, podendo se colher da jurisprudência da Corte Suprema, menções à vedação ao retrocesso ambiental, civil, consumerista, eleitoral, e, em especial, institucional.

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, tombada sob o nº 7.236, onde impugna, entre outros, o dispositivo examinado neste artigo.

Parece evidente, neste breve análise, a inconstitucionalidade do artigo 21, §4º, da Lei nº 8.429/92, com redação dada pela Lei nº 14.230/2021, por ofensa ao princípio da independência das instâncias, da proporcionalidade (vedação de proteção deficiente), e, reflexamente, do princípio da inafastabilidade da jurisdição (CF, artigo 5º, inciso XXXV).

 


[1] "Sujeição dos Agentes Políticos a Duplo Regime Sancionatório em Matéria de Improbidade. Impossibilidade de Extensão do Foro por Prerrogativa de Função à Ação de Improbidade Administrativa. 1. Os agentes políticos, com exceção do Presidente da República, encontram-se sujeitos a um duplo regime sancionatório, de modo que se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de improbidade administrativa, quanto à responsabilização político-administrativa por crimes de responsabilidade. Não há qualquer impedimento à concorrência de esferas de responsabilização distintas, de modo que carece de fundamento constitucional a tentativa de imunizar os agentes políticos das sanções da ação de improbidade administrativa, a pretexto de que estas seriam absorvidas pelo crime de responsabilidade. A única exceção ao duplo regime sancionatório em matéria de improbidade se refere aos atos praticados pelo Presidente da República, conforme previsão do artigo 85, V, da Constituição. (Pet 3240 AgR, relator(a): ministro TEORI ZAVASCKI, relator(a) p/ Acórdão: ministro ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-171 DIVULG 21-08-2018 PUBLIC 22-08-2018)".

[2] Artigo 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

[3] Artigo 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.

[4] Artigo 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Artigo 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

Artigo 67. Não impedirão igualmente a propositura da ação civil:

I – o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação;

II – a decisão que julgar extinta a punibilidade;

III – a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime.

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