Direito Civil Atual

Efeitos do pagamento do crédito concursal pelo coobrigado

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26 de junho de 2023, 17h24

A execução do coobrigado pelo credor, em concomitância à habilitação do crédito na recuperação judicial, é prática corrente no meio forense. Logicamente, essa duplicidade de remédios desperta interessantes questões na fronteira entre direito civil e direito da insolvência, especialmente no que concerne ao pagamento. Afinal, a dívida originária é a mesma, e o credor pode recebê-la de devedores distintos, sujeitos a regimes jurídicos também distintos.

A regra do artigo §1º do artigo 49 da Lei 11.101/2005 estabelece que "os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso".

Isso significa que a novação operada pelo plano de recuperação judicial (artigo 59 da Lei 11.101/2005) não produz efeitos em relação ao avalista. O credor da empresa em crise, assim, ainda pode exigir do coobrigado a dívida em sua integralidade e nos seus termos originários.

Além disso, não se suspende a exigibilidade da obrigação incumbida ao avalista: o principal efeito processual associado ao processamento da recuperação judicial, a suspensão das execuções contra a empresa em crise (artigo 6º, §4º, da Lei 11.101/2005), não se aplica às ações ajuizadas "contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória", conforme entendimento fixado em tese[1] e sumulado[2] pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Com efeito, apesar de a obrigação do avalista não ser diretamente afetada pela recuperação judicial, certos fatos podem causar repercussões recíprocas. Um deles, por óbvio, o pagamento [3].

Se, por exemplo, após a aprovação do plano e respectiva concessão da recuperação judicial, o credor receber pagamentos da empresa recuperanda, necessariamente deverá ressalvá-los ao cobrar a dívida do avalista[4], evitando pagamento duplicado.

Questão mais tormentosa diz respeito ao cumprimento do plano de recuperação judicial pela empresa em crise. Ora, neste caso, a empresa pagou aquilo que devia, segundo o plano aprovado. Mas como fica a situação do avalista, cuja obrigação, em tese, não é atingida pela novação?

ConJur
O STJ, ao julgar o REsp 1.333.349[5] sob o rito dos repetitivos, tratou dos efeitos provocados pela aprovação do plano e da resultante concessão da recuperação judicial. O entendimento fixado pela Corte foi de que:

"[…] muito embora o plano de recuperação judicial opere novação das dívidas a ele submetidas, as garantias reais ou fidejussórias são preservadas, circunstância que possibilita ao credor exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impõe a manutenção das ações e execuções aforadas em face de fiadores, avalistas ou coobrigados em geral. Deveras, não haveria lógica no sistema se a conservação dos direitos e privilégios dos credores contra coobrigados, fiadores e obrigados de regresso (art. 49, § 1º, da Lei n. 11.101/2005) dissesse respeito apenas ao interregno temporal que medeia o deferimento da recuperação e a aprovação do plano, cessando tais direitos após a concessão definitiva com a decisão judicial."

Nessa linha, parece certo concluir que o cumprimento do plano não tem como efeito necessário a extinção do aval. Pode acarretar sua extinção, é verdade, nas hipóteses em que houver absoluta identidade entre a dívida novada da empresa devedora e aquela sob a responsabilidade do avalista.

Mas, nas circunstâncias em que isso não ocorrer [que representam a situação recorrente], o credor ainda poderá cobrar eventual diferença do avalista, cuja obrigação goza de autonomia e independência em relação à obrigação avalizada [6].

Também se pode cogitar da situação inversa: o pagamento integral ou parcial da dívida pelo avalista. Nesta hipótese, cumpre adotar alguma cautela, pois embora se admita a cumulação da habilitação do crédito com a execução do coobrigado, não pode o credor receber duas vezes o mesmo crédito.

Esta orientação é de longa data. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 80.936/PR[7], quando ainda detinha competência relativa à aplicação da lei federal, elucidou que:

"o que a lei impede, é que o credor receba, do concordatário e do avalista, o total do crédito de um e outro. […] Há que limitar o recebimento ao total da dívida […]."

O relator ministro Cordeiro Guerra, reproduzindo a doutrina de Miranda Valverde[8], ainda esclareceu:

"Se o credor recebe a percentagem da concordata, volta-se contra o coobrigado para obter o restante do crédito, que completará o seu pagamento integral. Se resolve agir imediatamente contra o coobrigado e dele consegue o pagamento integral, ficará o coobrigado sub-rogado nos direitos do credor satisfeito e receberá do concordatário, exclusivamente, a percentagem, sofrendo o prejuízo do restante."

Perceba-se, nesse sentido, que o espírito presente na atual Lei 11.101/2005 é o mesmo: evitar que o credor receba duas vezes pelo mesmo crédito, impondo a conciliação dos pagamentos recebidos em sede concursal àqueles por ventura recebidos em decorrência de pretensões exercidas/ações movidas em face dos coobrigados [9].

Questão outra respeita aos direitos que o coobrigado adquire, perante a empresa em recuperação judicial, por ter realizado o pagamento total ou parcial da dívida. O principal ponto é definir se esse pagamento gera um "novo" direito, de regresso, ou se opera sub-rogação em relação aos direitos do credor originário.

A propósito, no julgamento do REsp 1.860.368[10], tratando de garantia fidejussória, a 3ª Turma do STJ decidiu que o fiador coobrigado somente passaria ostentar a condição de credor após honrar a obrigação afiançada:

"A celebração de um contrato de fiança não equivale a realização de uma operação de crédito, pois aquele consiste na prestação de uma garantia, a ser acionada tão somente na hipótese de inadimplemento. Na fiança, até que a obrigação garantida não seja descumprida pelo devedor, não há saída de numerário da esfera patrimonial do fiador para a do credor, o que é imprescindível para a constituição de seu crédito contra o afiançado."

Recente decisão do TJ-GO (Tribunal de Justiça de Goiás) [11] adotou idêntico entendimento:

"Assim, a celebração do contrato de fiança não pode ser confundida com a existência do crédito em si, pois o negócio jurídico (fiança) existe desde a realização do contrato, ao passo que o crédito somente se constitui a partir do pagamento da obrigação principal pela parte garantidora. Por isso, somente os créditos de contratos de fiança bancária gerados após o pedido de recuperação judicial não se sujeitam ao processo de soerguimento, nos termos do artigo 49 da Lei 11.101/2005."

Nessa posição, na hipótese de o pagamento ocorrer após o deferimento do processamento da recuperação judicial, o coobrigado deteria crédito extraconcursal em face da empresa devedora, considerando a tese fixada pelo STJ ao julgar o Tema 1.051: "para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador".

Com efeito, em contrapartida, caso se entenda que o pagamento implica sub-rogação, o artigo 349 do Código Civil dispõe como efeito a transferência de titularidade, ao novo credor, de "todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores".

Dessa maneira, estando o débito afiançado/avalizado sujeito à recuperação judicial, o avalista receberia o pagamento de acordo com as disposições do plano em relação ao credor/crédito originário, inclusive assumindo suas eventuais posições processuais (em habilitação, divergência ou impugnação de crédito) ou incumbindo-lhe o seu exercício, caso o credor ainda não o tenha feito [12].

Em decisão monocrática concernente à pagamento realizado por fiador em favor de locatário, o Min. Luis Felipe Salomão consignou o seguinte ao julgar o REsp nº 1.472.317[13]:

"1. A sub-rogação não extingue a relação obrigacional havida entre as partes, havendo meramente substituição do polo passivo, até porque sub-rogação não se confunde com novação. 2. O fiador que paga integralmente o débito objeto do contrato fica sub-rogado nos direitos do credor originário, mantendo-se todos os elementos da obrigação primitiva, com as suas garantias e limitações."

Embora o tema mereça ser aprofundado, esta segunda posição parece mais acertada, em vista do clarividente interesse jurídico e econômico do obrigado em efetuar o pagamento da dívida à qual podia ser obrigado no todo ou em parte, suporte fático do pagamento com sub-rogação, nos termos do artigo 346, inciso III, do Código Civil.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).,

 


[1] “A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções, nem tampouco induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos artigos 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o artigo 59, caput, por força do que dispõe o artigo 49, parágrafo 1º, todos da Lei 11.101/2005" (STJ. REsp n. 1.333.349/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, j. 26.11.2014, DJe 02.02.2015)

[2] Súmula 581/STJ: “A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória.”

[3] Sobre a natureza jurídica do pagamento: “Pagar, como ato-fato, dispensa o nível de rigor exigido para os negócios jurídicos, ressalvados aqueles que se revestem de um nível de formalização dependente, v.g., da capacidade de exercício” (RODRIGUES JR, Otavio Luiz. A imputação do pagamento no Direito Civil brasileiro (um estudo dogmático). Revista de Direito do Consumidor, v. 149, p. 69-91, set./out. 2022. p. 79.

[4] SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo; SCALZILLI, João Pedro. Os efeitos do aval na recuperação judicial e na falência. Revista do Advogado, v. 36, n. 131, p. 109-122, out. 2016.

[5] STJ. REsp n. 1.333.349/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, j. 26.11.2014, DJe 02.02.2015.

[6] RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[7] STF. RE 80.936/PR, rel. Min, Cordeiro Guerra, 2ª T, j. 08.04.1975, DJ 02.06.1975.

[8] MIRANDA VALVERDE, Trajano. Comentários à Lei de falências. Rio de Janeiro: Forense, 1948. v. II. fls. 247.

[9] SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo; SCALZILLI, João Pedro. Os efeitos do aval na recuperação judicial e na falência. Revista do Advogado, v. 36, n. 131, p. 109-122, out. 2016.

[10] STJ. REsp n. 1.860.368/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 05/05/2020, DJe 11.05.2020)

[11] TJGO. Agravo de Instrumento 5352599.28.2020.8.09.0000, rel. Des. Átila Naves Amaral, 3ª CC, j. 14.06.2022, DJe 30.06.2022.

[12] SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo; SCALZILLI, João Pedro. Os efeitos do aval na recuperação judicial e na falência. Revista do Advogado, v. 36, n. 131, p. 109-122, out. 2016.

[13] STJ. REsp n. 1.472.317/RJ, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 11.04.2019, DJe 03.05.2019.

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