Opinião

Supremacia constitucional e o caso dos precatórios para pagamento de outorga

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22 de junho de 2023, 19h42

A aplicabilidade de normas constitucionais é tema tormentoso no Direito, com importantes implicações em quase todos os seus ramos. Não à toa diversos autores se dedicam à matéria, construindo variadas classificações. No momento, o tema voltou à tona no setor de infraestrutura. A razão disso é a controvérsia que evoca a mais antiga das classificações das normas constitucionais à luz da aplicabilidade elaborada por Ruy Barbosa.

Tudo por força da Emenda Constitucional nº 113/2021, que, ao alterar o artigo 100, § 11, inciso III, da Constituição, previu, "com auto aplicabilidade para a União", a faculdade de o credor ofertar precatórios para "pagamento de outorga de delegações de serviços públicos".

Sob influência do direito norte-americano, Ruy Barbosa distinguia as normas constitucionais em duas espécies, cujos nomes são autoexplicativos: autoaplicáveis e não autoaplicáveis. Como visto, o dispositivo constitucional estabeleceu que a regra por ele veiculada tem autoaplicabilidade para a União, ou seja, trata-se de um exemplo daquelas normas "aplicáveis desde logo, vale dizer, revestidas de plena e imediata eficácia jurídica, por regularem, plena e imediatamente as matérias, situações ou comportamento de que cogitam".[1]

Não é comum que o texto constitucional facilite tanto ao intérprete, indicando o grau de aplicabilidade da norma, mas foi exatamente o que fez no caso do uso de precatórios para pagamento de outorga. O surpreendente é que, mesmo assim, há polêmica. O caráter autoaplicável da regra foi questionado desde a sua inclusão no texto constitucional, tanto sob a justificativa de necessidade de regulamentação prévia, quanto pela alegação de que seria necessária previsão específica no respectivo edital de licitação.

Foi nesse contexto que foi editada a Portaria Normativa nº 73/2022 da Advocacia-Geral da União (AGU), tratando dos procedimentos a serem observados por órgãos e entidades públicas federais. Contudo, em março, a AGU revogou a portaria e constituiu um grupo de trabalho com vistas à edição de novo instrumento normativo, que conferisse "mais segurança jurídica ao procedimento".[2] Na oportunidade, recomendou que se aguardasse a nova regulamentação, deixando que cada órgão ou entidade federal conduzisse o tema diretamente no âmbito de suas outorgas de delegações de serviços públicos.

Ocorre que, recentemente,[3] o assunto ganhou novos contornos com dois movimentos realizados pela Advocacia-Geral da União: (i.) o Despacho nº 116 do Advogado-Geral da União e (ii.) a consulta pública sobre a proposta de norma para regulamentação do uso de precatórios.[4] Ambas as movimentações geram preocupações quanto ao sentido para o qual caminham: o amesquinhamento do direito, garantido pela Constituição, de utilização dos precatórios como forma de pagamento.

Por meio do Despacho nº 116, a AGU determinou aos seus órgãos vinculados que: (i) sobrestem todos os processos de análise de precatórios para os fins do § 11º do art. 100 da CF até a elaboração do novo ato normativo e (ii) orientem, além de outros órgãos e entidades, os respectivos ministérios e agências reguladoras a igualmente sobrestarem seus processos e se absterem de dar quitação ao pagamento de outorgas mediante utilização de precatórios.[5]

Para agravar a situação, a determinação do AGU veio desacompanhada de orientação no sentido de suspender as obrigações de pagamento durante o período, brecando, através de norma infralegal, a aplicação de norma constitucional autoaplicável. Assim, os interessados precisam batalhar, administrativa ou judicialmente, para que seus prazos para pagamento de outorgas também sejam suspensos.

Contudo, mesmo diante da iminente regulamentação, que, ao menos em tese, colocaria fim a esse imbróglio que impede o exercício do direito constitucional, o cenário que se avizinha não é animador. A minuta do ato normativo posta em consulta pública desrespeita, igualmente, a natureza da norma porque, para além de procedimentalizar a utilização do precatório, restringe o exercício do direito.

Para ilustrar a crítica feita, este texto destaca três obstáculos ao pagamento de outorga com precatórios inseridos na proposta de norma: (i.) a necessidade de previsão em edital, que fixará condições e limites para sua aceitação (artigo 2º, § 4º), (ii.) a possibilidade de fixação de limite global anual de valor para cada hipótese constitucional de utilização de precatórios como pagamento (artigo 32) e (iii.) o dever de o órgão ou a entidade exigir garantia do requerente (artigos 20 e 21) — mesmo tratando-se o precatório judicial de crédito líquido e certo expedido por um dos Poderes da República.

A proposta da AGU e as suas implicações não estão afinadas com o texto constitucional e são incompatíveis com a natureza autoaplicável da norma. Isso porque é preciso distinguir os dois tipos de regulamentação infralegal:[6] (i) aquela imprescindível para o exercício de determinado direito, necessária apenas para as normas não autoexecutáveis — não se aplicando, portanto, à questão dos precatórios, e (ii.) a que serve apenas para garantir o tratamento isonômico entre os particulares perante a Administração, isto é, regulamento prescindível, de norma autoexecutável, mas que "uniformiza, processual e materialmente os comportamentos a serem adotados em face dos critérios que elege e das pautas que estabelece para os órgãos e agentes administrativos". [7]

A natureza do ato normativo que pode ser editado para disciplinar o art. 100, § 11, inciso III, da Constituição é da segunda espécie, servindo apenas à padronização do comportamento da Administração. Afirma-se isso especialmente porque a regra constitucional analisada, além de autoaplicável, é dotada de eficácia plena,[8] já que cria direito subjetivo suficientemente concreto e definido ao administrado, desfrutável desde logo, sem nenhuma previsão de edição de futuras disposições legislativas restritivas.[9] Isso é, não deixa espaço para que uma futura atuação legislativa, muito menos, administrativa, reduza direito tão bem delineado em sua hipótese de incidência, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade.

Evidentemente, não se nega a utilidade de a Administração regulamentar os dispositivos constitucionais, a fim de garantir a melhor execução possível das normas. Mas é preciso clareza: a norma constitucional, naquilo que já estabeleceu, vincula a regulamentação, o que, no caso dos precatórios, não abre margem para suspender o exercício de um direito veiculado por norma autoaplicável, que produz efeitos independentemente de regulamentação,[10] tampouco para criar obstáculos ou esvaziar o exercício do direito.

A Constituição é explícita: o precatório foi equiparado a moeda para as hipóteses do seu § 11º do artigo 100 e, por essa razão, constitui modo de pagamento plenamente aplicável às outorgas de concessões federais, sendo obrigação da União aceitá-lo e direito do credor oferecê-lo. Qualquer previsão contrária a isso torna a regulamentação inconstitucional.

Portanto, o caminho para a Administração Pública é claro: (i.) reconhecer que o direito constitucional à utilização do precatório como forma de pagamento é autoaplicável, aceitando, desde já — enquanto é gestada a norma infralegal —, pagamentos com essa “moeda”, seja para novas outorgas, seja para aquelas já delegadas, e (ii.) alterar a proposta do ato normativo para que não descumpra a regra constitucional, limitando-se a garantir segurança jurídica quanto ao procedimento.

 


[1] MEIRELLES TEIXEIRA, José Horácio. Curso de direito constitucional. Texto organizado e atualizado por: Maria Garcia (a partir das apostilas de suas aulas na PUC/SP). 2. ed. Florianópolis. Florianópolis: Conceito editorial, 2011, p. 287. O autor mencionado, ao abordar o tema das normas autoaplicáveis, descreve o percurso inicial da teorização sobre a aplicabilidade das normas constitucionais: “[a] estas normas a doutrina norte americana (…) denomina self-executing, self-acting, ou self-enforcing, e os autores brasileiros, o insigne Ruy Barbosa à frente, divulgando-a entre nós, adotaram como correspondentes, em vernáculo, as expressões auto-aplicáveis, auto-executáveis, aplicáveis por si mesmas; e às que careciam de aplicabilidade imediata, por necessitarem, para isso, da complementação das normas ordinárias, denominava not self-executing, ou not self-acting, que os nossos juristas traduziram por “não auto-aplicáveis”, ou não auto-executáveis”. (idem, p. 287).

[3] Logo após ter sido noticiado que a ANAC teria reconhecido a possibilidade de precatórios como forma de pagamento das outorgas dos aeroportos de Belém (PA) e Macapá (AP), conforme informação divulgada em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2023/05/contrariando-ministro-anac-aceita-precatorio-em-pagamento-de-concessao.shtml Acesso em 18/05/2023 às 16h10.

[4] A consulta pública foi iniciada no dia 14/06/2023, com a previsão de encerramento no dia 24/06/2023. O formulário consta no link abaixo:

https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSdZCw77wtevvzXGa_U4H8jTKLPnaqaoQh9fBPvlT8WTNzj9Dg/viewform

[5] Mesmo não sendo vinculante, essa nova orientação muito provavelmente será seguida pela Administração Federal, em razão de as consultorias jurídicas dos ministérios e das agências reguladoras serem subordinadas ao Advogado-Geral da União.

[6] Apesar de não reconhecer a possibilidade jurídica de regulamentação de norma autoexecutável, Sílvio Luís Ferrera da Rocha deixa claro a existência de dois papéis possíveis para os regulamentos, o que se aproxima daquilo que entendemos ser a distinção entre regulamento necessário à execução da lei e regulamento prescindível à execução da lei: “[a] lei precisa ser complementada com instrumentos que a tornem operativa; ou dado o uso indistinto de termos vagos ou imprecisos, o regulamento surge com o propósito de lhe dar significado uniforme perante a Administração, evitando, com isso, a possibilidade de tratamento desigual perante situações idênticas.”. (ROCHA, Sílvio Luís Ferrera da Rocha. Manual de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, p. 268).

[7] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2021, p. 290.

[8] As normas de eficácia plena têm como característica distintiva, além de possuírem, de imediato, aptidão para produzir todos os seus efeitos jurídicos, sem a necessidade de intermediação legislativa, veicularem direitos que “não podem ser restringidos pelo legislador” (SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. Ed. 3. Reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 372).

[9] A norma (art. 100, § 11, inciso III) utiliza conceitos determinados para configurar o direito por ela estabelecido: “oferta de créditos líquidos e certos (…) reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial”, “pagamento”, “outorga”, “delegações de serviço público” e “espécies de concessão negocial”, o que é característico das normas de eficácia plena. Elas se diferenciam das normas de eficácia contida justamente na margem que é conferida ao legislador para restrição do exercício do direito previsto na Constituição Federal, sempre por expressa previsão ou por indeterminação dos conceitos utilizados. Nesse sentido, a definição dada por José Afonso da Silva às normas de eficácia contida não deixa dúvidas: “são aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos à determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nela enunciados" (SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 114).

[10] Nessa linha, Roque Antonio Carrazza afirma, em lição relativa ao direito tributário, mas aplicável aos demais ramos do direito público, que “se as disposições regulamentares, conquanto utilíssimas para a melhor aplicação da lei tributária, não forem de todo imprescindíveis, ela atuará apesar da ausência do regulamento, que lhe conferiria plena eficácia. O próprio Poder Executivo deve encontrar meios para cumprir integralmente a obrigação que lhe foi imposta pela lei.” (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 425).

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