Direto do Carf

Competência da Receita para auditar demonstrações de controladas no exterior

Autor

  • Thais de Laurentiis

    é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

21 de junho de 2023, 8h00

A legislação brasileira de tributação de lucros de controladas e coligadas no exterior gera diversas controvérsias e desafios, tanto para os contribuintes quanto para as autoridades fazendárias [1]. Uma vez que tais regras atribuem relevância tributária no Brasil a fatos econômicos ocorridos no exterior, um dos temas controvertidos se refere à competência das autoridades fiscais brasileiras para fiscalizar, por meio da controladora brasileira, as controladas, diretas ou indiretas, no exterior.

Sabe-se que tanto no regime do artigo 25 da Lei nº 9.249/1995, combinado com o artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001, quanto no regime instituído pela Lei nº 12.973/2014, os lucros auferidos pela entidade no exterior devem ser apurados de acordo com a legislação comercial do seu país de domicílio. Em outras palavras, o padrão contábil a ser utilizado será aquele do país da investida. Tanto a Instrução Normativa nº 213/2002, quanto a IN nº 1.520/2014, estabelecem que, na hipótese de o país da investida não ter um padrão contábil, serão utilizados os princípios contábeis geralmente aceitos no Brasil.

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Portanto, temos que, segundo a legislação em vigor, os lucros da controlada no exterior e, em alguns casos, aqueles auferidos por coligadas — tributadas por competência, ou equiparadas a controladas — serão apurados no exterior, segundo os princípios contábeis geralmente aceitos no país da investida.

Com base nesses comentários preliminares, já podemos estabelecer uma primeira premissa, prevista expressamente na legislação, no sentido de que o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) incidirão sobre o lucro contábil apurado no exterior. Ou seja, o lucro da entidade estrangeira não é o seu "lucro real", mas sim um lucro contábil apurado no exterior, com base nos princípios contábeis lá vigentes.

Naturalmente, uma vez que tal lucro contábil será adicionado na base de cálculo do IRPJ e da CSLL devidos pela controladora no Brasil, há interesse das autoridades fiscais brasileiras em verificar sua correção. A questão a ser enfrentada na coluna de hoje diz respeito exatamente ao entendimento do Carf sobre lançamentos tributários que questionam elementos das demonstrações financeiras da investida no exterior.

Nesses casos, adiciona-se à base de cálculo do IRPJ e da CSLL a glosa de despesas registradas na contabilidade da pessoa jurídica estrangeira, que, como vimos, serve de base de cálculo para a tributação brasileira, conforme o artigo 25, § 7º da Lei nº 9.249/95, inserido pela Lei nº 12.973/14 e regulamentado pelo artigo 8º da Instrução Normativa nº 1.520/14.

O problema se instaura diante da dúvida sobre a possibilidade de a Receita Federal exercer atividade de auditoria sobre entidade localizada fora do território brasileiro, o que soa contraintuitivo, pois estaria atuando além de sua jurisdição. Mas, de outro lado, parece razoável assumir que o "dever de colaboração do sujeito passivo não desaparece pelo simples fato de que o resultado da entidade no exterior é apurado segundo as normas contábeis do respectivo país" [2].

A verdade é que o tema da competência das autoridades fiscais para demandar e avaliar documentação relativa às operações das controladas, diretas ou indiretas, situadas no estrangeiro, junto à controladora aqui residente, é bastante carente de regulamentação, tanto em nível legal como infralegal. Pode-se afirmar mesmo que a atividade de fiscalização tributária como um todo é carente de uma regulamentação legal mais ampla no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, fica a questão lançada ao intérprete.

Sustentam os contribuintes que, analisando a disciplina de tributação individualizada das controladas diretas e indiretas instituído pela Lei nº 12.973/14, a base de cálculo — lucros auferidos pela controlada no exterior — corresponde aos demonstrativos financeiros da sociedade estrangeira, elaborados conforme as normas contábeis do país de sua residência. Dessa forma, o reenvio ao resultado apurado nas demonstrações contábeis da controlada estrangeira faz com que a competência da Receita Federal cinja-se à verificação da conformidade do montante tributado no Brasil, tendo como base os respectivos controles.

Nesse sentido, a Receita careceria de competência para solicitar informações e documentos de empresas estrangeiras, por meio suas controladoras brasileiras, uma vez que estaria fiscalizando empresas situadas em território alienígena e indo na contramão do quando disposto na Lei nº 12.973/14.

Reforçando esse argumento, sustenta-se que o modelo de tributação em bases universais vigente no Brasil não poderia jamais atribuir competência ao Fisco brasileiro para auditar as contas de uma pessoa jurídica domiciliada no exterior e, pior, fazendo-o à luz da interpretação que o Fisco brasileiro tenha da lei brasileira.

Ao revermos as decisões do Carf sobre a matéria, identificamos precedentes onde foi rejeitada a possibilidade de as autoridades fiscais contestarem aspectos das demonstrações financeiras da entidade investida no exterior.

Foi o que se passou no Acórdão nº 1401-003.052, julgado na sessão 12 de dezembro de 2018. Esse caso tem como origem lançamento tributário glosando despesas administrativas da controlada no Peru, resultando em ajustes na controladora no Brasil. Vale salientar que, no caso concreto, a controladora no Brasil não apresentou qualquer documentação relativa aos custos e gastos controlado no exterior.

Em julgamento da matéria via recurso de ofício, entendeu o Colegiado que para que a fiscalização pudesse exigir comprovação dos elementos que compuseram as demonstrações financeiras da controlada no exterior, seria necessário que apontasse algum aspecto de inconformidade das demonstrações em questão com as normas brasileiras. Isso com base numa leitura do artigo 6º, §§5º e 6º da Instrução Normativa SRF 213/2002.

Também apreciando a matéria devolvida ao Carf via recurso de ofício, no Acórdão 1302-004.272, da sessão de 22 de janeiro 2020, o Colegiado manteve a decisão da DRJ quando afirmou que inexiste previsão legal que autorize a Receita a realizar procedimentos fiscalizatórios ou mesmo a revisar as demonstrações financeiras de pessoas jurídicas estabelecidas em países estrangeiros. A origem desse processo foi auto de infração em que foram glosadas as despesas financeiras de controlada sediada na Áustria.

Todavia, contrariamente a este entendimento, foram proferidas decisões nas quais se argumentou que as autoridades fiscais teriam sim competência para auditar as demonstrações financeiras da entidade investida no exterior.

Citamos, nesse sentido, o Acórdão nº 1201-001.690, de 17 de maio de 2017. Na contramão das colocações trazidas no início do presente artigo, a referida decisão numa leitura do artigo 25, incisos I e IV da Lei nº 9.249/95, afirma que "as entidades no exterior devem demonstrar a apuração dos lucros de acordo com as normas da legislação brasileira, o que, por via de decorrência, permite à autoridade fiscal perquirir e investigar todo os fatos e documentos de suporte a essa obrigação". Para corroborar sua conclusão, o relator coloca que entendimento em sentido contrário fecharia os olhos à possibilidade de o Brasil celebrar acordos para troca de informações e investigações conjuntas. Todavia, pela leitura do relatório e do voto, não foi possível depreender se no caso concreto existia esse acordo ou se ele foi utilizado para a obtenção das informações. Destacamos que a glosa em debate se referia a despesas incorridas com desapropriações na Angola (sede da sucursal), com a consequente apuração lucro no exterior a ser tributado no Brasil

Nesse mesmo sentido, por voto de qualidade, a 1ª Turma da 2ª Câmara da 1ª Seção do Carf, no Acórdão 1201-003.681, de 11 de março de 2020, concluiu que a autoridade fiscal brasileira tem autorização para auditar as demonstrações financeiras das filiais, sucursais, controladas ou coligadas, no exterior, "que embasarem as demonstrações financeiras da pessoa jurídica no Brasil (controladora), e, no caso de apuração de irregularidades, tem o poder-dever de efetuar o lançamento de ofício, nos termos do artigo 142 do CTN". Importante ressaltar que, nesse caso, a glosa dizia respeito a despesas com pagamento de propina, ou seja, um contexto fático bastante diferente do processo administrativo precedente julgado pela mesma Turma.

Sergio André Rocha já se manifestou sobre o tema em trabalho acadêmico, do qual extraímos os seguintes parágrafos [3]:

"Um aspecto importante a ser analisado refere-se à competência das autoridades da Receita Federal do Brasil para solicitar documentos re­ferentes às operações das controladas diretas ou indiretas de empresas brasileiras, junto à controladora residente no Brasil.
O tema dos limites à fiscalização tributária é um dos mais carentes de tratamento legislativo, praticamente não havendo regras sobre a matéria. De toda maneira, somos da opinião de que as autoridades brasileiras carecem de competência para solicitar informações e documentos de empresas estrangeiras, notificando suas controladoras brasileiras.
Com efeito, não tendo as autoridades fiscais brasileiras competência para fiscalizar as empresas não residentes, não pode forçar a empresa residente no Brasil a lhe fornecer informações e documentos sobre tais empresas estrangeiras.
Existe um canal institucional para que autoridades brasileiras ob­tenham informações sobre empresa estrangeira e tal canal é a troca de informações, baseada em tratado internacional.
Tanto assim que a existência da troca de informações foi prevista pelo artigo 78 da Lei 12.973 como um requisito para a consolidação. Somente na ausência de tratado de troca de informações e, ainda assim, apenas se o contribuinte quiser consolidar os resultados da investida no exterior, exige-se a apresentação de documentação suporte das operações da controlada.
Desta forma, não restam dúvidas quanto à incompetência das auto­ridades fiscais brasileiras para 'fiscalizar' empresas estrangeiras por intermédio da empresa brasileira."

Veja-se que a posição defendida nessa passagem não é no sentido de que as autoridades fiscais brasileiras não poderiam verificar a contabilidade da entidade no exterior, mas sim de que tal auditoria somente seria possível utilizando-se a via da troca de informações, de modo que os auditores da Receita Federal não teriam competência para requerer documentos, esclarecimentos ou informações diretamente à controladora ou coligada residente no Brasil.

Também no sentido de apresentar limites à fiscalização internacional pela Receita, Ramon Tomazela Santos afirma [4]:

Porém, a capacidade de colaboração do sujeito passivo não pode ser explorada de forma ilimitada pelo Fisco, estando sujeita a diversos limites, como aqueles estabelecidos pela proteção contra arbítrios, pelo postulado da proporcionalidade, pela proibição contra excessos, pelo interesse público e pelo dever de motivação.
Daí decorre que o direito do Fisco de solicitar informações e documentos a respeito das entidades no exterior deve ser examinado em cada caso concreto, a partir da análise da viabilidade física, jurídica e econômica de cada solicitação. Assim, a capacidade colaborativa demanda uma análise das possibilidades do sujeito passivo de fornecer informações no interesse da arrecadação e da fiscalização tributária.

Como colocado alhures, é o lucro líquido da empresa estrangeira que guiará as consequências na apuração do lucro real a ser oferecido à tributação no Brasil, pela controladora. Nesse passo, apresentam-se as colocações de Alexandre Evaristo Pinto e Luis Henrique Toselli, apontando que somente os dados contábeis criados artificialmente para diminuir ou neutralizar o lucro societário é que poderiam ensejar ajustes de ofício pela fiscalização.

Necessário segregar, assim, 1) a hipótese de a Receita Federal questionar um critério contábil adotado no exterior, com fundamento na legislação do país de domicílio da controlada [5]; 2) da acusação de fraude ou simulação atinente ao lançamento contábil da despesa. Enquanto a primeira situação é vedada pela legislação em vigor, a segunda configura procedimento razoável e que não encontra vedação legal [6].

Essas colocações doutrinárias são relevantes sob a luz dos princípios constitucionais a respeito da matéria, quais sejam, a territorialidade e a soberania nacional, bem como os mandamentos estampados no artigo 4º da Constituição Federal, quando estipula que a nossa República se rege, nas suas relações internacionais, pelos princípios da independência nacional; não-intervenção; igualdade entre os Estados e solução pacífica dos conflitos.

De todo esse cenário, percebemos que o tema ainda não está pacificado no Carf, além de ser objeto de manifestações doutrinárias bastante atuais. Numa síntese, há três posições fundamentais postas para o debate: 1) a de que nenhuma auditoria das autoridades fiscais brasileiras sobre a contabilidade e documentação suporte referente aos resultados das controladas no exterior é possível, por falta de amparo legal; 2) a de que tal competência pode ser exercida dentro de determinadas balizas, como se dar via troca de informações, jamais permitindo excessos pelo poder de fiscalização ou questionando o critério contábil adotado com base na legislação estrangeira pertinente; 3) e a de que tal auditoria sobre a controladora é ampla e plenamente possível pela legislação ora em vigência, sendo obrigação funcional do auditor fiscal brasileiro fazê-la.

Como na Ética de Aristóteles, talvez a virtude esteja no caminho meio.

 


[1] Nessa coluna, pudemos tratar de uma delas, especificamente interpretação de tratados para a tributação de controlas e coligadas no exterior: https://www.conjur.com.br/2022-ago-10/direto-carf-lucros-controladas-exterior-tratados-debate-carf

[2] SANTOS, Ramon Tomazela. O Regime de Tributação dos Lucros Auferidos no Exterior na Lei nº 12.973/2014. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro: 2017, p. 80.

[3] ROCHA, Sergio André. Tributação de Lucros Auferidos por Controladas e Coligadas no Exterior. 3 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022. p. 355-356.

[4] SANTOS, Ramon Tomazela. O Regime de Tributação dos Lucros Auferidos no Exterior na Lei nº 12.973/2014. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro: 2017, p. 81.

[5] Ou na legislação brasileira, quando aplicável.

[6] PINTO, Alexandre Evaristo e TOSELLI, Luis Henrique. Dos lucros contábeis registrados por controladas localizadas no exterior e os limites jurídicos para a glosa de despesas neles registradas. In Revista de Direito Contábil Fiscal. São Paulo. Vol. 3. Num. 5. Jan/jun. 2021. pp.  15 a 28.

Autores

  • é conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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