Opinião

Comunicação não violenta no Direito Previdenciário: 'difícil exercício de viver em paz'

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

21 de junho de 2023, 6h33

Quem me conhece sabe que sou adepto da "comunicação não violenta", o que coincide com a intenção de criar uma qualidade de vínculo necessário ao atendimento das necessidades de todos, sem rótulos ou termos que ameassem, nos autos do processo judicial, a autonomia do juiz, do perito, enfim.

A desembargadora Taís Schilling Ferraz expressou sua preocupação com a linguagem violenta empregada no curso do processo: "A litigiosidade a que aqui se faz referência revela-se, dentre outros elementos, no grande volume de casos novos que, a cada ano, aportam no Poder Judiciário, bem como no intenso confronto que se estabelece no curso do processo, evidenciado especialmente nas taxas de recorribilidade e na linguagem violenta empregada nas manifestações das partes, do juiz e de eventuais intervenientes. Tais fatores combinados exteriorizam um grau de beligerância e de intolerância que parece só encontrar precedentes no próprio modelo brasileiro de judicialização". [1]

Victor Soares/Secretaria da Previdência Social
Victor Soares/Previdência Social

Não é tarefa fácil. Isso precisa ser exercitado todos os dias. Precisamos enxergar a humanidade no outro: "ver no outro um outro eu". Assim, por exemplo, não é legal esse apelo à consciência do juiz, como se ele não tivesse consciência — o dito carrega consigo o não dito (ninguém vai morrer por causa do juiz — não se pode ver isso como um dilema moral, mas como uma decisão).

Alguns advogados tentam transformar a decisão numa questão moral e fazer o juiz não dormir! A questão é tomar consciência das necessidades e preocupações de cada um, inclusive dos problemas de ordem prática (e.g.: elevado número de processos ou recursos possíveis, o baixo número de juízes, metas, etc.). O CNJ vem mirado bastante na quantidade de processos julgados (nas estatísticas), como se um Judiciário ideal fosse um Judiciário sem processos.

Assim, quando o assunto é qualidade e sobrecarga de processos, o magistrado brasileiro enfrenta um irônico dilema, ao passo que, ao mesmo tempo em que ele está correndo contra o tempo e seus limites físicos, para, da melhor forma possível, levar ao cabo suas funções, cogitar a necessidade de se estender além do esperado para colher melhores informações técnicas, por meio da realização de provas, ou na elaboração de decisões melhor fundamentadas implicaria, por sua vez, "maior acúmulo de processos, fazendo que com o problema da morosidade da justiça se agrave cada dia mais e lhe seja ainda creditado".[2] O cidadão, por sua vez, é condenado a suportar sozinho não apenas o ônus da demora, mas da evidente ausência de jurisdição.

Por outro lado, é difícil conciliar o "constrangimento epistemológico" de que fala Lenio Streck, decorrente da linguagem pública construída na intersubjetividade, e a utilização da comunicação não violenta, pois criticar uma decisão — uma crítica fundamentada — sempre gera algum desconforto no destinatário, mormente quando vai de encontro à subjetividade do juiz como critério último de decisão. A crítica não pode ser recebida como um ataque, mas como uma oportunidade para se qualificar o debate. É por isso que não podemos deixar a linguagem privada se sobrepor à pública. A melhor justificativa será aquela que conseguir articular coerentemente todos os elementos (regras, princípios, precedentes, doutrina, etc.).

Mesmo ciente de tudo isso, os conflitos acontecem, quiçá por falta de uma pré-compreensão adequada do papel de cada uma das partes que compõem a relação processual (e.g.: uma ação previdenciária nunca será contra o INSS!). Entramos, mesmo sem querer, em lutas pelo poder sempre que alguém se convence de que está certo e/ou quando caímos na "prepotência das verdades absolutas". Pedidos convertem-se em exigências e, por vezes, numa ameaça à autonomia do perito, do juiz, do advogado, etc. Neste nível, muita energia é investida em autodefesa ou contra-ataque. [3] Em determinadas turmas, argumentos de autoridades revelam que o juiz ainda se vê como o único destinatário das provas, o que pode se manifestar de diferentes formas, quase sempre, com base na equivocada ideia de "livre convencimento". [4]

A prova, abstraindo o entendimento particular do juiz, é das partes, do processo. Nesse sentido, Streck denuncia uma espécie de delegação em favor do "Privilégio Cognitivo do Juiz". É possível se visualizar algo assim quando, mesmo sabendo o que é um mecânico (e.g.: de carros), ou seja, mesmo admitindo o contato do mecânico com óleos e graxas, agentes químicos inerentes à função, o julgador não abre mão do seu poder de (in)deferir o pedido de prova pericial e/ou admitir como suficiente o formulário PPP (para negar), como se a ele fosse possível conduzir a produção de provas conforme sua consciência e, pior ainda, negar não apenas uma linguagem pública sobre as garantias processuais, mas o mundo prático. [5]

A questão que se coloca é: como preservar e comprovar os fatos alegados diante desse tipo de postura, que visa justificar tão-somente a autoridade do juiz (seus poderes instrutórios)? Não sou adepto da linguagem do "(in)justo", no sentido de uma pretensão de correção (moral) do direito, não para efeitos de argumentação jurídica. Agora, fato é que poucas situações ainda são consideradas "injustas". Não existem injustiças que devamos reparar, ou tragédias que possamos evitar.

A rigor, o processo cumpre sua finalidade com uma decisão que, ao fim e ao cabo, julga (im)procedente o pedido, que transita em julgado e faz coisa julgada. Num processo em que ao autor foi negado o direito processual de prova (testemunhal e pericial) — tomando o julgador, como prova definitiva da não exposição a agentes nocivos (questão controvertida), um formulário produzido fora do processo —, os advogados ainda são instados a assumir, além dos danos sofridos, a culpa pela atuação deficitária.

Acho que não é difícil se colocar no lugar do outro… saber como é depender da justiça e ter, naquele que depositamos nossas esperanças, todos os pedidos de prova negados.

Mas voltando à violência empregada no diálogo judicial. Desde "os seus argumentos são risíveis", passando por petições com linguagem truculenta ou desesperada (e.g.: com fonte 40 e destaque em amarelo!), até aquele juiz que intima as partes sobre o interesse de manter os embargos de declaração sob pena de multa, o que fica claro é um comportamento motivado pelo medo, pela raiva, pela culpa, etc. Precisamos tentar entender os sentimentos e necessidades por trás de tudo isso, a fim de restabelecer a confiança e o respeito mútuo entre as partes.

As partes devem agir e interagir entre si com boa-fé e lealdade, na busca da correta aplicação das normas previdenciárias ao caso concreto. O processo previdenciário não se resume a declarar um vencedor ou perdedor. Ante a natureza social da demanda previdenciária, prejudicar um cidadão por uma prova mal colhida durante o processo, é um "dano a toda uma visão social que merece o Direito Previdenciário", como bem disse Nefi Cordeiro, quando ainda desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Para o ministro aposentado do STJ (Superior Tribunal de Justiça), não se pode prejudicar o segurado com fundamento numa atuação deficitária do seu advogado, do juiz, enfim, de todos aqueles que estavam operando no processo. [6]

O outro não precisa ser "aquele cujos desejos se opõem aos meus, cujos interesses chocam com os meus, cujas ambições se erguem contra as minhas, cujos projetos contrariam os meus, cuja liberdade ameaça a minha, cujos direitos usurpam os meus". Jean-Marie Muller alerta: "O outro não me quer forçosamente mal; talvez até me queria bem, mas não o sei".[7] Em tempos de guerra, precisamos apostar no diálogo. Palavra é "pá-que-lavra". Recomendo a todos o estudo da Comunicação Não Violenta. Antes de qualquer outra coisa, essa é uma lição de humildade!

 

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Bah1: FERRAZ, Taís Schilling. O excesso do acesso à justiça e a insistente aposta nos sintomas como forma de dar tratamento à litigiosidade. Interesse Público [Recurso Eletrônico]. Belo Horizonte, v.23, n.128, jul./ago. 2021. Disponível em: https://dspace.almg.gov.br/handle/11037/41776. Acesso em: 24 set. 2021.

Bah2: PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 111.

Bah3: ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2021.

Bah4: O CPC/2015 acabou com o “livre convencimento” (artigo 371) e, ainda, introduziu a exigência de coerência e integridade (artigo 926).

Bah5: Existe uma linguagem pública construída na intersubjetividade, na experiência compartilhada. Desse modo, até mesmo na literatura: “Supunha – já que a via algumas vezes com as mãos sujas de óleo e munida de uma chave inglesa – que tivesse uma função de caráter mecânico em alguma das máquinas romanceadoras.” ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 20.

Bah6: TRF4, AC 5008306-39.2011.404.7112, Rel. p/ Acórdão Ricardo Teixeira do Valle Pereira, Quinta Turma, j. 22/07/2013.

Bah4: MULLER, Jean-Marie. O princípio de não-violência. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p. 16.

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  • é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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