Território Aduaneiro

De onde vem o Poder da Aduana?

Autor

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

20 de junho de 2023, 11h14

O Estado decide o que entra e o que não pode entrar no seu território, não permitindo, inclusive, que as pessoas tragam alguns bens ou riquezas próprios ou de uso pessoal. Na verdade, o Estado ostenta o poder de estabelecer o que pode ser importado, de onerar a importação com tributos, de estabelecer medidas de defesa comercial, e proibir  por motivos de interesse da sociedade ou por motivos econômicos, de saúde, de preservação do meio-ambiente, de segurança pública etc.  a entrada de certos bens.

O Estado possui a prerrogativa de até mesmo se apropriar, confiscar, ou, na linguagem aduaneira, aplicar o perdimento em bens ou mercadorias proibidas ou que tenham entrada irregular.

Spacca
Todo esse poder do Estado no controle de suas fronteiras não é exclusivo do Brasil e está relacionado à soberania. Assim, o poder nas fronteiras parece mais intenso do que aquele executado internamente pelos mesmos órgãos do Poder Executivo. Contudo, em um Estado democrático de Direito, mesmo poderes relacionados à soberania, que restrinjam a liberdade dos pessoas, devem ser exercidos com supedâneo na Constituição.

Pois bem, o artigo da Carta Magna que tratou desse poder foi o 237, o qual serviu para fundamentar importantes posicionamentos do STF (Supremo Tribunal Federal) na seara aduaneira. Mas esse artigo, muitas vezes, passa despercebido. Não vemos muita discussão doutrinária sobre o tema. Então, a proposta ao leitor é aproveitar esta coluna para conversarmos sobre esse importante fundamento constitucional do Poder da Aduana. Vamos?

O artigo 237 da Constituição atribuiu ao Ministério da Fazenda a competência para exercer a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, que são essenciais aos interesses fazendários.

Em termos de localização, o artigo ficou na parte final da Constituição, depois de um artigo que trata dos serviços notariais e antes de outro que dispõe sobre a venda de combustíveis. Ou seja, o artigo 237 está em trecho que não trata da estrutura e das competências do Estado, gerando a impressão de que esse final foi reservado para matérias residuais, que não têm ligação lógica ou de conteúdo entre si.

Passando para o conteúdo, examinemos os "interesses fazendários". Esses interesses não correspondem estritamente ao objetivo de arrecadar tributos, mas abrangem todo aspecto que seja relevante para a economia nacional, como, verbi gratia, balanço de pagamentos, proteção de segmentos da economia ou indústria nacionais e medidas contra concorrência desleal no comércio exterior.

O controle do fluxo das transações internacionais pode se dar mediante a instituição e cobrança de tributos sobre o comércio exterior. O imposto sobre a exportação é utilizado inclusive para desestimular a saída de insumo nacional, e o imposto sobre a importação serve, mundo afora, e observados os limites e compromissos assumidos em acordos internacionais, para onerar o bem importando em proveito do bem nacional [1].

Como sabemos, na importação, são cobrados também os tributos similares aos que incidem sobre os bens nacionais, por exemplo, imposto sobre operações com produtos industrializados (IPI), imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação e serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), contribuição para os programas de integração social e de formação do patrimônio do servidor público (contribuição para o PIS/Pasep), contribuição para o financiamento da seguridade social (Cofins), contribuição de intervenção no domínio econômico incidente sobre a importação e a comercialização e petróleo e seus derivados, e álcool etílico (Cide-Combustíveis), com o objetivo de impor sobre o bem importado a mesma carga tributária incidente sobre bem nacional [2].

Além dos tributos, correspondem aos interesse fazendários as restrições e proibições de importação, inclusive aquelas de natureza econômica, e.g., a proibição da importação de bens usados, assim como as medidas de defesa comercial  medidas antidumping, medidas compensatórias e medidas de salvaguarda. Revelou-se comum a adoção de tais institutos pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Essa política tem de se dar com parcimônia, em caráter complementar e sob o controle do Ministério da Fazenda, que deve permanecer sob a guarda e competência dessa pasta, conforme estabelece a Constituição.

Importante mencionar que há ainda outros órgãos que atuam no controle e na fiscalização do comércio exterior, como o Departamento da Polícia Federal [3], a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Ministério da Agricultura e Pecuária, o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), os quais devem observar competência do Ministério da Fazenda, no que interessar à fiscalização aduaneira, e a precedência  nas zonas primárias de portos, aeroportos e pontos de fronteira  da autoridade aduaneira, da Secretaria Especial da Receita Federal, órgão do Ministério da Fazenda [4].

A importância do artigo 237 da Constituição como fulcro jurídico do poder da Aduana (dentro da Receita, dentro do Ministério da Fazenda) para controlar e fiscalizar o comércio exterior fica evidente na jurisprudência. Vejamos o posicionamento emblemático adotado pelo STF.

No RE 202.313/CE, de 1996, a questão era a proibição, pela Portaria do Decex nº 08, de 1991, da importação de carros usados. A decisão foi pela legitimidade da proibição com fulcro no artigo 237 da Constituição. Transcreve-se interessante parte do voto do ministro Maurício Corrêa

"É claro que, pelo artigo 237 da Constituição Federal, a fiscalização e o controle do comércio exterior ficam a critério do Ministério da Fazenda que por sua autorização constitucional poderá, evidentemente, até por portaria, impedir o ingresso de produtos desse tipo no território nacional, a menos que sobre essa importação incida o respectivo tributo; por outro lado a hipótese não guarda nenhuma isonomia com carros novos.
Imaginem se fossem abertos os nossos portos para os carros usados, sem que houvesse a devida taxação, a pretexto de isonomia, com referência a outros bens! Seria um pandemônio o que isso traduziria. E muito mais: o nosso país, em termos de carros usados, transformar-se-ia num parque de sucatas e carcaças velhas, além de provocar o desmantelamento da indústria nacional, que não é tanto nacional."

Da leitura do trecho de voto transcrito, podemos verificar que realmente o STF se valeu do artigo 237 da Constituição para justificar proibições de importação estabelecidas sem base legal.

Dessa forma, o STF consolidou o entendimento de que o Ministério da Fazenda pode controlar a entrada de produtos estrangeiros, com fulcro no artigo 237 da Constituição. Essa competência, segundo o entendimento do tribunal, tem base normativa idônea destinada a legitimar, em atenção às exigências impostas pelo interesse nacional, a adoção, dentre outras providências, de medidas destinadas a controlar a entrada em território brasileiro de produto de origem estrangeira  v.g. veículos usados , especialmente quando esse ingresso puder repercutir negativamente sobre a indústria nacional, representando desleal concorrência em desfavor de empresas brasileiras e introduzindo fator de insegurança no mercado interno e de instabilidade nas relações sociais, pelo justo receio da ocorrência de desemprego).

Há várias decisões sobre esse tema e no mesmo sentido, todas com base no artigo 237 da Constituição. Enumeramos algumas que se tornaram precedentes importantes, a saber: RE 199734/CE, RE 205.374-4/CE, de 1997; RE 205577-8/CE; RE 208218-0/CE, de 1997; RE 205674-o/CE; RE 208246-5/PA.

Da análise da jurisprudência, verifica-se, portanto, que realmente o STF se valeu do artigo 237 da Constituição para justificar proibições de importação estabelecidas por meio de portaria, ato infralegal. É possível inferir também que os magistrados se socorrem do artigo constitucional, mas não encontram base doutrinária para subsidiar a discussão, chegam a ter de se valer da imaginação ou da analogia com outros países ou com países "mais desenvolvidos".

Então fica aí uma dica para os leitores que se dedicam ao estudo mais profundo do Direito Aduaneiro no Brasil: a investigação do artigo 237 como fonte do poder de controle do comércio exterior pela Aduana e por outros órgãos do Ministério da Fazenda.

Para aqueles que tenham interesse em mais subsídios sobre o tema, a sugestão é a leitura do meu texto Comentários ao artigo 237 da Constituição do Brasil, no livro Comentários à Constituição do Brasil, organizado por Canotilho, Gilmar Mendes, Ingo Sarlet e Lenio Streck (2ª ed. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, v. 1, p. 2163-2165).

 


[1] A tributação do comércio exterior já teve caráter de fiscalidade. O imposto de importação, cuja receita alcançou 68,16% da arrecadação tributária nacional em 1853, manteve-se sempre em montante superior a 50% da arrecadação até 1913, depois disso, sua importância em termos econômicos decaiu de forma vertiginosa. Atualmente, a receita desse imposto permanece em torno de dois por cento da arrecadação tributária total. O imposto sobre a exportação incide sobre uma pauta muito reduzida de produtos e sua participação na arrecadação fica aquém de um milésimo do total.

Vale lembrar que os acordos internacionais têm um papel importante nesse contexto, pois limitam o poder de tributar a importação e correspondem, precipuamente, ao esforço internacional de abertura do comércio. Por sua vez, as regras internas autorizam o Estado a alterar e majorar o imposto sobre a importação e o imposto sobre a exportação com maior liberdade, o que, de modo predominante, corresponde a objetivos extrafiscais de controle do fluxo comercial internacional, proteção de setores produtivos, proteção dos consumidores, controle cambial etc.

 Considerando esse jogo de forças e também o decréscimo percentual nas receitas concernentes à tributação da importação e da exportação, pode-se afirmar que esses impostos deixaram de ter caráter arrecadatório e permanecem como instrumento de controle e estabelecimento de políticas públicas. No entanto, conforme já se destacou, o interesse fazendário não se restringe somente ao objetivo de arrecadação.

[2] O Artigo III do Acordo GATT 1994 abriga a regra do tratamento nacional. Esta regra serve para corroborar a postura contra atitudes protecionistas, pois prescreve que dentro dos países-membros da OMC deve ser concedido aos bens importados o mesmo tratamento dedicado aos seus similares nacionais.

 Em termos tributários, significa, por um lado, que os valores exigidos pelo Estado, em função de tributos sobre a circulação, a industrialização ou qualquer outra operação interna com bens importados, não podem ser superiores àqueles exigidos em relação a bem nacional. Por outro lado, esse mesmo comando permite que a tributação incidente sobre os bens nacionais seja também imposta sobre os bens de origem estrangeira na ocasião da importação, com o intuito de se promover isonomia.

[3] José Afonso da Silva, com uma concepção um pouco mais estrita da disposição constitucional, afirmou que o artigo 237 veio para resolver um conflito de competência entre a Receita Federal e a Polícia Federal, nos seguintes termos: "a razão do dispositivo está no conflito entre os fiscais do Ministério da Fazenda e a Polícia Federal, esta constitucionalizada, e no artigo 144, com competência para apurar. É razoável que seja funcionário do Ministério da Fazenda que exerça a fiscalização do comércio exterior no caso previsto, porque o que se quer verificar é se os tributos foram corretamente pagos ou se não estará havendo fraude ao Fisco  matéria que é mesmo daquele Ministério, não tendo cabimento a polícia se envolver nela". (Comentário Contextual à Constituição, 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 879).

De todo modo, ainda que a origem do 237 tenha sido para esclarecer a competência da Receita Federal em face da Polícia Federal, a jurisprudência brasileira ampliou bastante o escopo, tornando, efetivamente, esse artigo o fulcro da competência do Ministério da Fazenda, da Receita Federal, da Aduana para fiscalizar e controlar o comércio exterior com vistas aos interesses fazendários.

[4] O artigo 35 do Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 19661, com supedâneo no disposto nos artigos 37, inciso XVIII, e 237 da Constituição, atribuiu precedência à autoridade aduaneira, agente da Secretaria da Receita Federal do Brasil, órgão do Ministério da Fazenda, no que concerne à fiscalização aduaneira nas zonas primárias de portos, aeroportos e pontos de fronteira.

Autores

  • é presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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