Opinião

Zanin e o "salão dos passos achados"

Autores

  • Jefferson Carús Guedes

    é doutor e mestre pela PUC-SP professor da graduação mestre e doutor pela UniCEUB – Brasília consultor e advogado em Brasília e São Paulo.

  • Thiago Aguiar de Pádua

    é doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido 2023 no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur. 2018) ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

19 de junho de 2023, 12h23

O recinto que funcionava como antessala do Tribunal do Júri servia como local de espera e angústia para os profissionais do direito e interessados nos julgamentos, que, muitas vezes, caminhavam de um lado para o outro, ansiosamente, à espera do desfecho, sendo, por este motivo, conhecido como "o Salão dos Passos Perdidos", expressão utilizada à época e que se tornou muito conhecida com a publicação da obra biográfica homônima do ministro Evandro Lins e Silva, do Supremo Tribunal Federal, que foi exímio advogado no Tribunal do Júri [1].

Sim! Evandro Lins e Silva foi advogado, defensor da liberdade, chamado por Fábio Konder Comparato de "o Ministério Público da Advocacia". Após atuar como advogado, ocupou os cargos mais importantes da república. Indicado pelo presidente da República, foi chefe do Ministério Público, atuando como procurador-geral da República, chefe da Casa Civil, ministro das Relações Exteriores e, depois, ministro do Supremo Tribunal Federal, de 1963 até ser aposentado compulsoriamente pela ditadura militar, em 1968, quando retorna para a advocacia.

Sua indicação, nomeação e posse no cargo de ministro do STF foi extremamente contestada pela grande imprensa, com perseguição injusta, política e midiática. Alegou-se, indevidamente, proximidade com o chefe do Executivo, algo que somente fazem aqueles que desconhecem a tradição da Suprema Corte, vale dizer, não são essas as credenciais que recomendam ou não uma indicação, como já mencionado por nós em artigo anterior [2], havendo episódios pretéritos de ligação política média [3] e de ligação política intensa [4].

Mereceu, inclusive, um capítulo especial em sua biografia, denominado "O Ministro do Supremo", no item "A batalha no Senado", em que recorda a perseguição feita por Assis Chateaubriand, nos Diários Associados e a massacrante escrita diária de artigos nos periódicos O Jornal e Correio Braziliense, numa cruzada contra o nome de Evandro, aliado ao empenho partidário do PSD pela rejeição da indicação.  Recordou que era tachado de "comunista", e que: "esse trabalho junto ao Senado estava começando a pôr em risco a aprovação do meu nome, porque o PSD fechou questão e tinha a maior bancada" [5].

Por fim, a votação no Senado foi mesmo uma batalha, mas representativa de um bom combate no qual o nome de Evandro foi finalmente aprovado, como ele mesmo disse: "por uma margem muito escassa de votos", em 7 de agosto de 1963, por 29 votos a 23, com três abstenções [6].

A memória de Evandro recordou, ainda, que o mesmo ocorreu meses antes com o ministro Hermes Lima, e que: "há poucos casos de rejeição de ministro. Amarilio Benjamim [TFR] por exemplo, foi rejeitado por falta de elementos, porque na indicação não foi sequer enviado o seu currículo, tanto que seu nome voltou e foi aprovado (…) houve também o caso do ministro Aliomar Baleeiro, que era um homem de grande valor, mas muito sarcástico. No momento da votação no Senado, quando apareceu o resultado, ele tinha sido rejeitado por um voto. Suspenderam a votação, e vieram mais dois senadores que estavam no Hotel nacional, e votaram. De maneira que ele foi aprovado pela margem de um voto apenas" [7].

Há certas semelhanças entre Evandro Lins e Silva e Cristiano Zanin, ora indicado ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, especialmente quanto a perseguição injusta e midiática por causa de sua atuação na defesa da liberdade e da democracia.

Recordemos a inquietante advertência de Reiner Stach, biógrafo de Kafka (Anos Decisivos), de que é uma questão trivial, mas intimidante em suas consequências hermenêuticas, a necessidade de que aquele que escreve sobre um filósofo deve saber pensar, e sobre um escritor, escrever [8].

Sylvio Sirangelo/TRF-4
Sylvio Sirangelo/TRF-4

Muito embora Cristiano Zanin não seja um escritor profissional e nem um filósofo, e nem precisaria sê-lo para ser indicado ao cargo de ministro do STF, possui a essência para o exercício dos dois ofícios e seus predicados: é um livre pensador e um excelente articulador da palavra falada e escrita, assim como Evandro Lins.

Zanin também ocupou o imaginário nacional durante muitos meses e anos até, ao fazer a mais dura batalha de enfrentamento jurídico de que se tem notícia, resistindo ao covarde conluio entre legiões de fanáticos travestidos com insígnias oficiais do estado, dispostos a destruir o país inteiro para conseguir a prisão de um estadista inocente, e que fora anteriormente torneiro mecânico com sólidas e solidárias raízes nordestinas.

Ainda fazendo um paralelo sobre Kafka, e chegaremos ao desfecho deste ponto central ao final do texto, costuma-se dizer que ele nunca dorme, pois não há um fragmento de linguagem que lhe escape, ela não "flui" por si só, e nem transborda pelas margens! Antes, ela é dominada como um bisturi em brasa que atravessa uma pedra.

É o mesmo tipo de precisão que se observou no doutor Zanin (e equipe jurídica) na incansável defesa de um homem já idoso, encarcerado por 581 dias, numa atuação que se confunde com a defesa concreta da própria Democracia e do Estado de Direito.

Zanin não foi advogado no Tribunal do Júri, como Evandro, mas ocupou espaços de antessalas angustiantes, precisando dar e receber notícias que nem sempre eram as melhores, mas muitas vezes eram as mais importantes da vida de muitas pessoas, no mesmo caminhar cuja sonoridade dos passos, tocando o solo sagrado dos tribunais, ecoará eternamente, numa reminiscência de que passos perdidos também podem ser passos encontrados.

Como Evandro, Zanin fez muitas defesas que convocavam o espírito de Kafka, pelo insólito e surreal de acusações que emulavam a narrativa sobre Josef K e O Processo, algo que Zanin soube explicar através da ilustração do Lawfare, em livro publicado e traduzido para inúmeros idiomas, que denunciaram o absurdo, assim como Kafka o fez, a sua maneira, em linguagem literária aterradora.

Zanin, como Evandro, atuou profissionalmente com muita educação, lhaneza e galhardia, demonstrando notável saber jurídico e reputação ilibada, preenchendo os requisitos para a investidura no cargo de ministro do STF, que exigirá, no contínuo exercício do cargo, após a posse, a defesa da Democracia e do Estado de Direito, para a preservação dos direitos fundamentais constitucionalmente tutelados. Não bastasse, teve a fleuma para enfrentar o desdém combinado entre acusadores e julgador, teve a paciência em apontar as aberrações, sem se alterar jamais diante das insinuações feitas pelo juiz, de que estava a prejudicar seu cliente.

O enigma sobre o contorno da atuação de um ministro do STF foi magistralmente explicitado por Fábio Konder Comparato no prefácio ao livro biográfico de Evandro: "Como magistrado, enfim, ao defender com bravura, num momento em que tantos se submetiam timoratamente à força armada, a independência do Supremo Tribunal Federal diante do Poder Executivo, submetido à ocupação militar. Aí está o que significa exercer, em sua plenitude, em qualquer posição profissional ou funcional, a defesa da Constituição e da ordem jurídica" [9].

Isso é o que Zanin fez, ainda como advogado, enfrentando a deformada operação Lava Jato, desmoralizada pelas descobertas da operação spoofing ("vaza jato"), e é o que se espera em termos de defesa da Constituição e da ordem jurídica, vale dizer, defender com desassombro a Constituição e o próprio Supremo Tribunal, alvo de ataques que podem ser atribuídos, em sua gênese, à irresponsabilidade dos autointitulados membros da operação "lava jato" e de sua narrativa kafkiana.

As senhoras e os senhores senadores, todos os congressistas e cidadãos, devem ficar tranquilos com a aprovação da indicação do nome de Cristiano Zanin para o cargo de ministro do STF, pois aonde quiserem fazer acusações levianas e irresponsáveis, ou violações massivas de direitos fundamentais, lá estará um profissional do direito que saberá reconhecer o fato e fazer a única justiça constitucional admissível: aplicar a Constituição Federal como bússola, mapa e escudo!

 


[1] SILVA, Evandro Lins. O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1997.

[2] Falávamos em 2015 sobre a inexistência de riscos na indicação do ministro Edson Fachin. Cfr. "Não cabe comparação de riscos entre indicação de Fachin e Bork", Conjur, de 16/06/2015.

[3] Ligações políticas médias: Alfredo Pinto, deputado federal, ministro do STF (1921-1923), Otávio Kelly, deputado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, ministro do STF (1934-1942), Leitão de Abreu, secretário de Estado, ministro da Casa Civil, ministro do STF (1974-1981); Eloy da Rocha, deputado federal, secretário de Estado, ministro do STF (1966-1977); Prado Kelly, deputado constituinte, presidente da UDN, ministro da Justiça, ministro do STF (1965-1968); Maurício Correia, senador da República, ministro do STF (1994-2004).

[4] Ligações políticas intensas: Epitácio Pessoa, deputado constituinte, ministro da Justiça e Negócios Interiores, procurador-geral da República, ministro do STF (1902-19012), depois senador da República e presidente da República; Carlos Maximiliano, deputado federal, ministro do STF (1936-1941), Cândido Motta Filho, ministro da Educação e Cultura, presidente do PR, ministro do STF (1956-1967), Oswaldo Trigueiro, prefeito de João Pessoa-PB, fundador da UDN, ministro do STF (1965-1975), Aliomar Baleeiro, deputado estadual constituinte, deputado federal constituinte em 1946, secretário de Estado da Fazenda, ministro do STF (1965-1975); Bilac Pinto, deputado federal constituinte em 1946, líder da Bancada da UDN, presidente da UDN, presidente da Câmara dos Deputados, ministro do STF (1970-1978); Hermes Lima, deputado federal, chefe da Casa Civil, ministro de Estado da Previdência e Trabalho, ministro das Relações Exteriores, primeiro ministro, ministro do STF (1963-1969); Paulo Brossard, deputado estadual, líder do PL, secretário de Estado, deputado federal, senador da República, consultor-geral da República, ministro da Justiça, ministro do STF (1989-1994); Nelson Jobim, deputado federal, ministro da Justiça, líder do PMDB, ministro do STF (1997-2006).

[5] Idem, p. 364.

[6] Idem, p. 408.

[7] Idem, p. 367.

[8] Anos Decisivos, p. 20. Mencionamos fragmentos da monumental trilogia sobre vida e obra de Kafka, escrita por Reiner Stach: Kafka: Die Jahre der Entscheidungen (2002); Kafka: Die Jahre der Erkenntnis (2008); Kafka: Die frühen Jahre (2014). A tradução inglesa é igualmente aclamada: The decisive years (cobre o período de 1910 a 1915); The years of insight (cobre o período de 1917 a 1924); e, The yearly years (cobre o período de 1883 a 1910). Notamos, ainda, a tradução portuguesa apenas de Kafka: Os anos decisivos.

[9] Idem, p. 13.

Autores

  • é advogado, parecerista, doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP e professor do UniCEUB.

  • é doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília), autor dos livros "O Common Law Tropical: o caso Marbury v. Madison brasileiro" (Ed. D’Plácido, 2023, no prelo); "Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido, 2021); "A Balzaquiana Constituição” (Trampolim Jur., 2018)". Ex-assessor de ministro do STF, advogado em Brasília e Santa Catarina.

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