Embargos Culturais

Transação tributária na prática, de Paulo Conrado e Juliana Araújo

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

18 de junho de 2023, 8h05

"Até bem pouco tempo, todas as especulações sobre o tema da transação em matéria tributária estavam aprisionadas ao campo das conjecturas, uma vez inexistente lei que a instrumentalizasse em termos práticos." É com essa constatação certeira que Paulo Cesar Conrado e Juliana Costa Araújo organizaram e publicaram uma série de estudos sobre a transação tributária, no contexto da Lei 13.988/2020. Trata-se do livro Transação tributária na prática. Conhecem o assunto. O organizador é juiz federal, a organizadora é procuradora da fazenda nacional. Doutoraram-se pela PUC-SP, orientados, respectivamente, por Paulo de Barros Carvalho e pela Ministra Regina Helena Costa.

Spacca
A Lei 13.988/2020 (Lei Geral de Transação) desdobrou-se da Medida Provisória 899/2019, então conhecida como Medida Provisória do Contribuinte Legal. Os alicerces dessa lei estão na exposição de motivos, assinada pelos então ministros Paulo Guedes e André Mendonça. O texto é datado de 6 de setembro de 2019. Há referências a uma lacuna normativa (que radicava no artigo 171 do CTN, sobre o qual pairava um silêncio), especialmente quanto aos requisitos e condições da transação. Colmatou-se a lacuna.

No núcleo da proposta, o combate à excessiva litigiosidade tributária, a par de referências a custos, eficiência, redução do estoque de créditos, aumento da arrecadação, combate à nociva periodicidade de parcelamentos especiais, especialmente porque, nesse último caso, os vários parcelamentos beneficiavam quem tinha capacidade plena de pagamento. É o caso do Refis, cuja homologação era condicionada à prestação de garantias ou, a critério do interessado, ao arrolamento dos bens que integravam seu patrimônio.

À época dispunha-se também que a prescrição criminal não correria durante o período da suspensão da exigibilidade do crédito tributário, o que resultava na suspensão da pretensão punitiva do Estado, nos casos onde havia crimes tributários. As medidas provocaram intenso debate e suscitaram reflexões em torno da própria natureza do direito penal tributário. Isto é, evidenciou-se uma nova percepção criminológica, no sentido de que o papel do Direito Penal, no caso, seria de mero agente institucional de recolhimento de tributos. Questionava-se criminologia convencional, bem como o papel do aparato repressivo: uma ponte entre o ilícito fiscal e o ilícito criminal.

Até então, como Paulo Conrado e Juliana Araújo apontaram, transitava-se no limitado campo das conjecturas. A indisponibilidade do crédito fiscal e o conteúdo inflexível de interesse público obstaculizavam a transação tributária, no sentir de seus opositores. E eram muitos. Na academia e na burocracia.

Por outro lado, Gustavo Binembojm colocava pá de cá no assunto, no sentido de que o dogma do interesse público, tal como fixado a partir do discurso vanguardista da Revolução Francesa representaria, na verdade, uma quebra das relações isonômicas, bem como marcaria de modo definitivo a superioridade do interesse do governante. Pesquisa que então fiz na jurisprudência indicava que “interesse público” era um mantra que justificava todo tipo de decisão, qual um guarda-roupa no qual cabe qualquer fantasia.

Essa questão está ultrapassada. Os problemas agora são outros. No texto introdutório de Transação tributária na prática, os organizadores/autores tratam do campo instrumental de abrangência da transação tributária, explicando que “a transação apresenta função puramente acessória, instrumental e secundária, sendo imprescindível que outra figura incida extinguindo o crédito”. É nesse ponto que definem que é o pagamento que traduz a verdadeira causa da extinção da obrigação tributária. Isto é, penso, a transação é um meio, a extinção do crédito um fim, e o pagamento a condição necessária para ajuste entre meios e fins.

Os organizadores da obra captaram a importância do ambiente do Código de Processo Civil como incentivo para a regulamentação da transação. Há indícios de uma nova cultura, refratária à litigiosidade e entusiasta da composição. Em 2013, a Advocacia-Geral da União havia produzido e publicado um “Manual de negociação baseado na Teoria de Harvard”, que pode ser um dos elementos que marcam a “virada de chave” evidenciada pelos organizadores. Houve, na compreensão dos organizadores do livro, uma sensibilização do comportamento de alguns atores tributários brasileiros. Apontam, em seguida, as várias vantagens que a transação permite.

A primeira parte do livro cuida de questões gerais, com explicações sobre as modalidades de transação, sobre a transação na ótica da preparação para a extinção da obrigação, sobre o negócio jurídico processual, sobre os efeitos da transação na livre concorrência, além do papel da transação em época de calamidade pública (Covid-19). Uma segunda parte trata da transação no contexto da dívida ativa da União Federal. Uma última parte trata da transação tributária no contencioso administrativo e judicial.

O leitor encontrará em Transação tributária na prática iluminadoras discussões sobre a capacidade de pagamento (Capag, um ponto nevrálgico na transação), sobre o conceito de devedor contumaz, sobre a transação em alguns estados e municípios, a par do tormentoso problema da transação como estabilizador de teses tributárias de fundo.

O livro contém artigos de advogados, pesquisadores e procuradores. É um livro importantíssimo. É importante no contexto de vários trabalhos que tratam do assunto, e eu acrescento aos autores que citei em artigo da semana passada, Tathiane Piscitelli (FGV), Andréa Mascitto (FGV), Thiago de Souza (PGFN), Jersilene Moura (PGFN), Adriano Chiari da Silva (PGFN), Ariane Guimarães (que é do Matos Filho), Glaucia Frascino (que é também do Matos Filho), Etides Yuri Pereira Queirós (que advoga na Bahia e em Brasília), entre tantos outros entusiastas da ideia, na iniciativa privada e no serviço público. Gustavo Caldas (PGFN) e Robinson Barreirinhas (MF) assinaram recente Portaria Conjunta.

A transação é uma negociação, feita pelas partes, onde há renúncias recíprocas, com forte fundamentação legal. Mantém-se os postulados da isonomia e da capacidade contributiva, porquanto se aplica substancialmente a créditos considerados de difícil reparação ou mesmo irrecuperáveis. Há certamente expectativas arrecadatórias, bem como, na essência, uma perspectiva de pacificação do litígio, da tensão e da discórdia.

A transação é poderoso instrumento para enfrentamento de um grave quadro fiscal, agudizado por um contencioso tributário administrativo e judicial que nos lembra Sísifo, a triste figura mitológica condenada eternamente a rolar uma grande pedra até o alto de uma montanha; quando a pedra chegava no topo, rolava novamente montanha abaixo. Sísifo até parece uma execução fiscal desprovida de penhora, ou um mandado de segurança de direito líquido e certo desprovido de liminar.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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