Observatório Constitucional

O Supremo Tribunal Federal já julga com perspectiva de gênero

Autor

  • Christine Peter da Silva

    é doutora em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília professora titular de Direito Constitucional do UniCeub-DF e secretária-geral do Tribunal Superior Eleitoral.

17 de junho de 2023, 8h00

O tema escolhido para minha reflexão semestral no Observatório da Jurisdição Constitucional, grupo a que me vinculo desde as primeiras ideias, é o julgamento com perspectiva de gênero, no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A par de explicitar as premissas do referido protocolo, especialmente aquelas expressamente registradas na Resolução do CNJ nº 492/2023, serão apresentados dois precedentes do STF em que a perspectiva de gênero esteve presente no julgamento.

O Estado democrático de Direito brasileiro, ao reconhecer, na Constituição e nas leis, a igualdade formal entre homens e mulheres, potencializa a igualdade material [1], meta que constitui e é constituída pela ideia de democracia paritária [2]. A igualdade material entre os cidadãos e cidadãs de uma nação tem consequências para toda a sociedade, pois tanto no plano dos direitos individuais, quanto no âmbito dos direitos coletivos e das políticas públicas, a igualdade de gênero apresenta-se como fator decisivo para o desenvolvimento sustentável, tanto sob o ponto de vista econômico, quanto sócio-cultural.

Tal igualdade material ou substantiva só é possível num ambiente de respeito aos diálogos constitucionais multiníveis, de modo que é necessário refundar o constitucionalismo contemporâneo para nele incluir vozes, pensamentos, vivências e experiências de todos e todas que foram alijados do processo inaugural desse movimento. É preciso enfrentar o fato de que, na maioria das experiências de exercício de poder dos séculos XIX e XX, as mulheres não estavam presentes, de modo que as decisões judiciais que se firmaram como precedentes de um determinado tema, em determinada localidade, é a revisitação histórica desejável para constranger os sistemas de poder a alcançarem uma democracia paritária.

Para que isso possa se consolidar, torna-se imperioso desconstruir argumentos jurídicos presentes nas decisões judiciais paradigmáticas, utilizando da dogmática jurídica feminista para reconstrução dos direitos fundamentais, de modo que o Direito contribua para a igualdade de gênero. É nesse ponto que se torna imperioso revisitar a doutrina acerca do princípio da dignidade humana, pois proposta e criticada por homens, cujos olhares ainda não se revelam, em sua maioria, inclusivos e plurais.

A dignidade da pessoa humana também se apresenta como premissa inafastável do Estado democrático de Direito, tendo a igualdade material, nesse contexto, como garantidora da inclusão de todas e todos que foram alijados do processo de sua consolidação.

Sobre a diferença entre igualdade material e formal importante relembrar aqui as lições de Flávia Piovesan, sobre as três vertentes no que tange à concepção da igualdade: "a. igualdade formal, reduzida à fórmula 'todos são iguais perante a lei' (que no seu tempo foi crucial para a abolição de privilégios); b. igualdade material, correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo critério socioeconômico); e c. igualdade material, correspondente ao ideal de justiça como reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios)" [3].

O protocolo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o Julgamento com Perspectiva de Gênero, como diretriz administrativa para os membros e membras do Poder Judiciário, revelou-se um importante passo na caminhada metodológica em direção à concretização do direito fundamental à igualdade de gênero, expressamente reconhecido pelos constituintes de 1987-1988.

O referido protocolo institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas quanto à concretização transversal dos direitos humanos, levando em consideração as questões de gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional. Também consta expressamente da regulamentação, que institui o protocolo no mundo jurídico brasileiro, a criação de um comitê de acompanhamento e capacitação sobre os julgamentos com perspectiva de gênero no Poder Jediciário, bem como o comitê de incentivo à participação institucional feminina nesse ramo de poder.

O protocolo, agora fortalecido pela força normativa da Resolução do CNJ nº 492/2023, reforça a metodologia da pergunta da mulher, um dos mais importantes vetores, no plano da metodologia constitucional, para os julgamentos com perspectiva de gênero. A pergunta da mulher deve ser uma meta coletiva de todos os magistrados e magistradas para julgamento dos feitos sob sua competência e emerge da doutrina de Katherine Bartlett, já no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 [4], como uma metodologia que considera a voz e a opinião das mulheres como expressões democráticas relevantes, que merecem ser levadas a sério, especialmente na seara de concretização dos direitos humanos e fundamentais.

A hermenêutica constitucional, que pressupõe a pergunta da mulher, busca identificar e desafiar os elementos da dogmática jurídica que discriminam por gênero e raciocinar a partir de um referencial teórico segundo o qual as normas jurídicas e constitucionais são respostas pragmáticas para dilemas concretos das mulheres reais, mais do que escolhas estáticas entre sujeitos opostos ou pensamentos divergentes. Também busca aumentar as possibilidades de colaboração entre diversas visões e experiências vivenciadas, tanto por homens, quanto por mulheres, engajadas e comprometidas com a igualdade de gênero [5].

São muitas as premissas e justificativas do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero no Brasil, mas, de forma geral, o principal objetivo fundamental da República Federativa do Brasil é promoção do bem de todos e todas, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, IV, da Constituição Federal).

O direito fundamental à igualdade em direitos e obrigações entre homens e mulheres (artigo 5º, I da Constituição da República) pressupõe a igualdade de gênero como expressão da cidadania e da dignidade humana, princípios fundamentais da República Federativa do Brasil e valores do Estado democrático de Direito. Assim, o protocolo prestigia os princípios fundamentais expressamente postos no texto constitucional de 1988.

Mas também não se pode perder de vista as normas internacionais mencionadas na Resolução do CNJ nº 492/2023, tais como a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.377/2022), bem como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher — Convenção de Belém do Pará (Decreto nº 1973/1996).

A Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial também é invocada para reforçar o dever de todos e todas se absterem de incorrer em ato ou prática de discriminação, bem como o de zelar para que autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com essa obrigação, em todas as esferas, para fins de alcance da isonomia entre mulheres e homens (artigo 2º, "b"-"g"; e 3º, Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres — Cedaw).

Tem-se a consciência, inclusive expressamente registrada na Resolução do CNJ nº 492/2023, de que os deveres impostos para se modificar padrões socioculturais não são facilmente incorporados, mas o objetivo é alcançar a superação de costumes que estejam baseados na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos (artigo 5º, "a" e "b", Cedaw).

O dever de promoção de capacitação de todos os atores do sistema de justiça a respeito da violência de gênero (artigo 8, "c", da Convenção de Belém do Pará), bem como a recomendação de adequar as medidas que contribuam para a erradicação de costumes que alicerçam essa modalidade de violência (artigo 8, "g", da Convenção de Belém do Pará), impõem o dever de promoção de conscientização e capacitação a todos os agentes do sistema de justiça para eliminar os estereótipos de gênero e incorporar a perspectiva de gênero em todos os aspectos do sistema de justiça (Recomendação nº 33, item 29, "a", do Cedaw).

A principal proposta da Resolução do CNJ nº 492/2023, regulamentadora da aplicação do protocolo de julgamentos com perspectiva de gênero no Brasil, é chamar a atenção dos magistrados e magistradas brasileiras para o devido processo legal substantivo, ou seja, para uma metodologia que diuturnamente questiona sobre uma eventual desproporcionalidade do impacto de suas decisões no universo feminino.

Trata-se, portanto, de análise que se associa à teoria do impacto desproporcional, segundo a qual a concretização de direitos fundamentais, seja por meio de subsunção ou de ponderação, deve estar atenta para um juízo de constitucionalidade em concreto. Não é um tema largamente tratado na doutrina constitucional brasileira, mas que já tem sido parte dos argumentos dos ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal há alguns anos. Um dos casos emblemáticos, nesse contexto, é a ADI 5.422 em que se discutiu a incidência do Imposto de Renda sobre as pensões alimentícias.

Nessa ação direta, a inconstitucionalidade suscitada estava relacionada à incidência do Imposto de Renda sobre os valores percebidos a título de alimentos ou de pensões alimentícias oriundos do direito de família. A discussão estava conectada com o fato de estar presente, ou não, na pensão alimentícia o acréscimo patrimonial, aspecto presente nas ideias de renda e de proventos de qualquer natureza.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que a pensão alimentícia era oriunda do direito de família, e por isso, "não se configura(va) como renda nem proventos de qualquer natureza do credor dos alimentos, mas montante retirado dos acréscimos patrimoniais recebidos pelo alimentante para ser dado ao alimentado. A percepção desses valores pelo alimentado não representa riqueza nova, estando fora, portanto, da hipótese de incidência do imposto".

Assim firmou-se a compreensão de que incidência do Imposto de Renda sobre pensão alimentícia acaba por afrontar a igualdade de gênero, visto que penaliza ainda mais as mulheres, "além de criar, assistir e educar os filhos, elas ainda devem arcar com ônus tributários dos valores recebidos a título de alimentos, os quais foram fixados justamente para atender às necessidades básicas da criança ou do adolescente".

Na mesma toada, deve-se mencionar o Tema 72 da repercussão geral, cujo recurso paradigma era o Recurso Extraordinário 576.967, também um precedente da área tributária. Assim está registrado o referido tema: "Inclusão do salário-maternidade na base de cálculo da Contribuição Previdenciária incidente sobre a remuneração".

O tema foi afetado à sistemática em 26/4/2008, e teve sua repercussão geral reconhecida nos termos da proposta do então relator, ministro Joaquim Barbosa [6]. A descrição do tema restou assim redigida:

"Recurso extraordinário em que se discute, à luz do artigo 195, caput e §4º; e 154, I, da Constituição Federal, a constitucionalidade, ou não, da inclusão do valor referente ao salário-maternidade na base de cálculo da Contribuição Previdenciária incidente sobre a remuneração (artigo 28, § 2º, I da Lei nº 8.212/91 e artigo 214, §§ 2º e 9º, I, do Decreto nº 3.048/99)".

O processo foi incluído em pauta e teve julgamento iniciado em 6/11/2019, no plenário presencial. Nessa oportunidade, após os votos dos ministros Roberto Barroso (relator), Edson Fachin, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, o ministro Marco Aurélio pediu vista dos autos. Em 15/6/2020, o ministro Marco Aurélio liberou o processo para continuidade de julgamento, que ocorreu em plenário virtual [7].

Em suas razões recursais, o recorrente sustentou que a contribuição previdenciária incide somente sobre os pagamentos efetuados em razão da contraprestação de serviços, o que não ocorre no período de fruição da licença maternidade. Apontou que o salário maternidade não se enquadra nos conceitos de "folha de salários" ou "demais rendimentos do trabalho" previsto no artigo 195, I, "a", da Constituição e que não compete ao legislador ordinário criar fonte de custeio para a seguridade social que não se enquadre nas hipóteses estabelecidas nesse artigo [8].

O Supremo Tribunal entendeu que "o salário maternidade não pode compor a base de cálculo da contribuição previdenciária a cargo do empregador, não encontrando fundamento no artigo 195, I, a, da Constituição. Qualquer incidência não prevista no referido dispositivo constitucional configura fonte de custeio alternativa, devendo estar prevista em lei complementar (artigo 195, §4º). Inconstitucionalidade formal do artigo 28, §2º, e da parte final da alínea a, do §9º, da Lei nº 8.212/91".

O Constitucionalismo Feminista não exclui a análise dos problemas a partir da dogmática-jurídica clássica, entretanto, concorda-se com o ministro Barroso na afirmação de que a existência de uma questão tributária e previdenciária não impede que seja debatido pela corte os efeitos da decisão na vida das mulheres. A utilização de barreiras processuais bem como de discurso que desperdiça a oportunidade de discutir pautas que afetarão a vida das mulheres não é condizente com a Hermenêutica Constitucional Feminista, que é a versão teórica do julgamento com perspectiva de gênero, presente na normativa aqui analisada.

Se a discussão de fundo é tributária, portanto, o protocolo de julgamento com perspectiva de gênero propõe análise sobre como é possível decidir e gerar justiça social, diminuindo exclusões históricas das camadas sociais blindadas ao olhar do Judiciário. As áreas dos direitos humanos e fundamentais não são isoladas, de modo que o direito tributário também deve ser interpretado à luz dos direitos humanos e fundamentais em busca de concretizar o direito à igualdade de gênero para todos e todas.

 


[1] PIOVESAN, Flavia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Cad. Pesqui., São Paulo, v.35, nº124, p.43-55, Apr. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742005000100004.

[2] Em 2015, na cidade do Panamá, foi aprovado, pela Assembléia Geral do Parlatino – Parlamento Latino-americano e do Caribe, o Marco Normativo para consolidar a Democracia Paritária, documento normativo cujo objetivo é ser referência para "a implementação de reformas institucionais e políticas que promovam e assegurem a igualdade substantiva entre homens e mulheres em todas as esferas de tomada de decisão." (ONU MULHERES, 2018, Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Marco-Normativo-Democracia-Paritaria_FINAL.pdf Acesso em 12.12.2020).

[3] PIOVESAN, Flavia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Cad. Pesqui., São Paulo, v.35, nº124, p.43-55, Apr. 2005.

[4] C BARTLETT, Katherine T. Feminist Legal Methods, in Harvard Law Review, Boston, nº 103, p. 829-888, 1990.

[5] BARTLETT, Katherine T. Feminist Legal Methods, in Harvard Law Review, Boston, nº 103, p. 829-888, 1990, p. 833.

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